Thursday, February 28, 2008

Delleuze e Guattari: Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2




Finalmente em portguês uma das obras mais essenciais da contemporaneidade

Uma obra nascida do encontro entre o filósofo francês Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari, Mil Planaltos não obedece à estrutura habitual de um livro. Os capítulos, a que normalmente se está habituado, foram transformados em “planaltos”.
Uma estrutura de organização que envia o leitor para uma multiplicidade de possibilidades de conjugação do pensamento, rejeitando a hierarquia em favor de uma organização menos estrutural e mais rizomática. Este é o conceito metológico e, de um modo muito genérico, diz respeito a um modo de pensar que não conhece princípios absolutos, mas pontos de experiência.
Fazer uma recenção desta obra, uma das mais fundamentais na história do pensamento mundial, é revisitar os conceitos que os autores propõem discutir, analisar, revisitar e, logo, uma impossibilidade. O modelo é uma necessidade interna do pensamento, que não conhece estruturas lineares, é um livro “que não tem objecto, nem assunto, faz-se de matérias diversamente formadas, de datas e de velocidades muito diferentes.” (p.22)
As estruturas binárias (dentro/fora, interior/exterior, forma/material, expressão/conteúdo) são vistas como modelos dominantes do pensamento Ocidental, e rejeitadas dada a sua falsa heterogeneidade. A estrutura rizomática proposta, conceito chave para a compreensão do pensamento de Deleuze, define-se pela ausência de hierarquia ou unidade última.
Pode encarar-se esta obra como uma intensa e profunda discussão, decisiva para o modo de pensar contemporâneo, sobre assuntos tão diversos como: linguagem, a sociedade de informação, o capitalismo, a expressão. Como sintetizam na introdução: “nós não falamos de outra coisa: as multiplicidades, as linhas, os estratos e segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, os agenciamentos maquínicos e os seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e as suas construções.” (p.23)

Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia 2
De Gilles Deleuze e Félix Guatari
Tradução e Prefácio Rafael Godinho
Assírio & Alvim
656 pág’s
35€

texto publicado no suplemento IN do DN

Wednesday, February 27, 2008

Leni Riefenstahl: o cinema heróico e o pacto com o diabo








“Usei tudo quanto tinha para conseguir o que queria. Nunca houve nada impossível para mim.” Leni Riefenstahl

É a personagem mais difícil de toda a história do cinema. Adolada, desprezada e motivo de combates intensos e apaixonados. Celebrada por uns, demonizada por outros. Só agora o estudo sobre a sua obra começa a assumir contornos mais científicos e menos políticos. Morreu a 8 Setembro de 2003, com 101 anos. Qualquer que seja a posição que se assuma são inegáveis as qualidades cinematográficas e o encantamento que produz as imagens por ela feitas.

Foi a realizadora de Hitler e do terceiro Reich, do primeiro encontro que manteve com ele em Maio de 1932 de conta que ele lhe disse: “assim que chegar ao poder, tem de fazer os meus filmes.” Encantado e enfeitiçado que estava com a dança de Leni à beira mar no filme “A Luz Azul” (1932). Nesta experiência “tive uma visão apocalíptica que nunca conseguirei esquecer”, escreve a realizadora nas suas memórias, ao que acrescenta que a leitura da obra de Hitler “A minha luta” “teve um forte impacto em mim. Confirmei o meu nacional-socialismo depois de ler a primeira página. Senti que um homem que podia escrever um livro daqueles tinha necessariamente de liderar a Alemanha. E fiquei muito feliz que esse tal homem tivesse chegado.”

Ainda que tenha nas suas “Memórias” (1987) assumido a adesão ao terceiro Reich, até ao final da vida reclamou a inocência e o total desconhecimento sobre os horrores que os seus protectores e financiadores estavam a fazer nos campos de morte. A sua biografia é cheia de histórias mal contadas, paradoxos e muitas mentiras, mas ficará para sempre na história como a única mulher realizadora a fazer parte da lista dos 100 melhores filmes de sempre da revista Time. A prova da eficácia da sua obra é a controvérsia que, ainda hoje, alimenta muitas discussões.

Helene Bertha Amalie "Leni" Riefenstahl nasceu em Berlin em Agosto de 1902, no seio de uma família de classe operária. Apesar da persistente resistência do pai, Leni conseguiu, com o apoio da mãe, começar a sua carreira como bailarina herdeira da nova dança de Isadora Duncan. No início dos anos 20 encontrou em Harry Soka, um banqueiro judeu, um protector, amante e mecenas. Para além das peles, jóias e dinheiro que lhe dava, financiou dois espectáculos de dança e, mais tarde, participou nas suas primeiras incursões no cinema.

Mas foi o seu encontro com Arnold Fanck que mudou a sua vida. Convidada em 1924 pelo realizador para o filme “A Montanha da Fé”, Fanck transformou-se no seu mentor e escreveu e editou muitos dos seus filmes posteriores. Factos que Leni quase sempre desmentiu e, em alguns casos, chegou mesmo a apagar os nomes dos seus colaboradores judeus da ficha técnica dos filmes.

A atmosfera e o envolvimento que se vê nestes seus primeiros filmes de montanha em que os personagens vivem relações de fusão com a natureza, com a beleza e com os ideais heróicos e puros, são depois transpostos para as filmagens dos comícios de Nuremberga. Para o influente critico e teórico de cinema Siegfried Kracauer, já aqui existia “uma espécie de idealismo heróico” que era “parente próximo do espírito nazi” já em luta pelo poder.

Mas foi com os filmes sobre os nazis, primeiro em “A Vitória da Fé” (1933) e depois em “O Triunfo da Vontade” (1935), que ficou famosa. Encomendas directas de Hitler, as quais segundo Riefenstahl, lhe valeram uma zanga definitiva com o ministro da propaganda Goebbels (apesar de alguns registos em que são afirmados contactos sociais entre os dois, alguns deles sugerindo um envolvimento amoroso). Nestes filmes o anterior ideal heróico que surge como a matéria a dar forma, agora corporizada no führer e no povo alemão.

Existem muitas questões sobre a encenação, os ensaios e sobre a direcção de arte, feita em conjunto com o arquitecto do regime Albert Speer, mas Riefenstahl sempre negou e afirmou tratar-se de filmes documentais sem carga ideológica. Mas o alinhamento dos soldados, Hitler filmado como se fosse uma estátua grega clássica contra um céu carregado e romântico, fazem das suas afirmações meras tentativas de distracção do essencial.

Mas é com Olympia (1938) que a sua carreira atinge proporções internacionais. Ainda que completamente ignorada na América, onde muitos refugiados já se encontravam e onde chegou na manhã seguinte à Kristalnacht dizendo que todas as notícias eram um exagero dos jornais americanos e um boicote dos intelectuais judeus, este filme é, segundo a própria, uma “manifestação sublime do espírito alemão.” Uma nova Alemanha pela qual Riefenstahl estava seduzida e que prova, como afirma Walter Benjamin, que “o fascismo é a estetização da politica.”

Oficialmente encomendado pelo Comité Olímpico Internacional, os filmes foram estreados em Berlim por ocasião do 49 aniversário de Hitler em Abril de 1938. Com ele estava a totalidade do panteão nazi: Goebbels, Goering, Ribbentrop, Himmler, entre outros. Relativamente a este filme, como a quase tudo na sua vida, Leni contou mentiras e sempre negou que o financiamento vinha do Reich e que o verdadeiro objectivo era construir uma imagem da Alemanha como um pais hospitaleiro, moderno, eficiente, uma nação pacífica de desporto e benigna.


O filme, do princípio ao fim, é uma glorificação da perfeição física: ideal de princípios racistas nazis em que aqueles que são imperfeitos são doentes e devem ser tratados como seres humanos inferiores e excluídos. Uma espécie de tese darwinista em que os mais fortes não só devem prevalecer, como devem ser celebrados e adorados pela sua força e perfeição físicas. É este heroísmo que Riefenstahl encontra na origem grega dos jogos olímpicos e faz a mais original e surpreendente cobertura de um evento desportivo de sempre. Este “fascismo-fascinante”, como o cunha Susan Sontag, foi um momento de invenção cujos ecos ainda hoje se sentem. Independentemente da qualidade cinematográfica, das inesquecíveis as sequências de mergulho, os planos do esforço e tensão nos rostos dos atletas, etc, trata-se de uma peça de legitimação da “nova” Alemanha.

Como afirma Steven Bach, autor de uma das melhores biografias de Riefenstahl, “depois de manipular a imagem dos outros sobre si, Leni insistiu que a realidade confirmasse a sua versão… a transformação do vulgar em heróico, a seu tempo, haveria de se tornar a sua imagem de marca e o seu talento supremo.” Para o regime Leni fazia parte da muito bem oleada máquina de propaganda, a qual tinha um papel central, porque: “pelo uso sagaz e contínuo da propaganda, um povo até pode ser levado a confundir céu com inferno, ou vice-versa.” (Hitler)
A haver mérito neste jogo manipulador protagonizado pela preferida de Hitler, ele é sintetizado por Bach: “Com arte e jeito, ela casara o poder com a poesia de um modo tão convincente que rejeita qualquer comparação artística com tudo o que de remotamente similar tenha sido feito antes. A sua manipulação dos efeitos formais foi virtuosa, as suas inovações na técnica de filmagem e montagem estabeleceram novos padrões e mantêm-se exemplares na cinematografia.” E foi este casamento amaldiçoado que a perseguiu para sempre.

Depois da derrota da Alemanha, do seu processo de desnazificação no qual foi ilibada, e da sua prisão, Riefenstahl ainda tentou fazer filmes, mas foi só nos 70 que regressou com a edição de dois livros sobre os Nuba com quem nos anos 60 passou seis meses e obsessivamente os fotografou. Novamente, foi a perfeição, a força, a juventude, o heroísmo que atraíram a sua objectiva. E o resultado são fotografias de um beleza intensa, sedutoras, fascinantes, como diz Sontag: “os mais espantosos livros de fotografias publicados recentemente.” Estava-se já em 1975, mas ainda é a estética fascista que domina.

Até ao fim da sua vida trabalhou quase exclusivamente como fotografa: fez a cobertura dos jogos olímpicos de Munique para a revista Time, um retrato muito famoso de Mick e Bianca Jagger e passou a fazer filmes subaquáticos que não têm qualquer interesse artístico e não ser, nas palavras de um muito famoso critico, “belos papéis de parede.”

A questão ainda por resolver, de que Sontag no seu ensaio “Fascismo Fascinante” faz um primeiro esboço, é se podemos admirar a obra de Riefenstahl e, a poder-se, de que modo podemos olhar para ela? Perguntas estas que dependem da decisão de os artistas serem ou não seres morais. Para Riefenstahl a resposta foi, claramente, negativa.


O episódio mais negro da vida de Leni
Em Setembro de 1940, 270 ciganos internados em Maxglan foram alinhados para um escolha de figurantes por Riefenstahl. Ainda que tenha afirmado, com ataques de ira, que nunca tinha visitado esse campo, numerosos ciganos que sobreviveram e trabalharam no filme testemunharam que a viram e que “ao escolher os seus figurantes ela colocava os polegares e indicadores em forma de moldura para enquadrar os rostos deles como se estivesse a vê-los através do visor da câmara.” Uma cigana, Rosa Winter, afirmou: “estávamos todos ali no campo. E então ela chegou com a policia e escolheu as pessoas. Eu estava lá com muitos outros jovens e era a nós que ela queria.”

No local de filmagens as regras e as punições eram semelhantes às do campo. Os ciganos eram alojados em estábulos e os sete marcos diários que ganharam eram entregues ao Fundo Geral dos Ciganos em Salzburg, destinado aos “elevados custos que o campo implicava.” Regras semelhantes às do campo que Leni conscientemente concordou em cumprir.

Utilizou 23 ciganos vindo de Maxglan que Riefenstahl caracterizou como “um campo de bem-estar e cuidados.” Lembra-se das crianças lhe chamarem “tia Leni” e até prometeu levar uma das famílias com ela para Berlim e para a liberdade. Depois da rodagem do filme foram todos enviados para Auschwitz e dos sete membros da família, supostamente a ser salva pela realizadora, só um sobreviveu.

No fim da sua vida Leni insistiu em que “vimos quase todos os ciganos depois da guerra e eles lembravam a experiência como o tempo mais encantador das suas vidas.” Nunca se ouviu uma única palavra de remorso sair da sua boca, sempre se viu como a benfeitora dos ciganos e que “nenhumas dúvidas ou escrúpulos, nenhumas sombras ou receios obscureceram a minha actividade”, porque, conclui ela, “o artista não conhece senão uma luta – a luta pela perfeição do seu trabalho. Só conhece uma liberdade – a unificação da sua ideia com a sua criação.”


Steven Bach, “Leni – A vida e obra de Leni Riefenstahl”, trad. de Óscar Mascarenhas, Prefácio de João Lopes, Casa das Letras, Lisboa 2007

“A maravilhosa horrorosa vida de Leni Riefenstahl” de Ray Müller, Ómega Films, 1993

Filmografia completa

Um versão mais reduzida deste texto surgiu no suplemento DNGente do Diário de Notícias

Tuesday, February 26, 2008

Painting as a harsh thing




To do images justice is a hard task, but to do a painting justice is next to impossible. Words - first instances in the world's order - are a condition for visibility: Hamann says "Speak that I may see you!", but when it comes to expressing the experience of a painting words back away and seem to go empty; instead of rendering a precise meaning they seem to become indistinct echoes. Firstly because painting is not an object, nor an image, nor a concept; secondly because words are slave to meaning and signification, and painting is slave to nothing but itself. However, this is not a case of autism, but rather of an absolute concentration; it is the intense gesture of he who turns to himself.

Paulo Brighenti's painting may be inscribed in this universe. The history of painting is the history of its gestures: gestures that keep the possibility of repetition and the conviction that the successive strokes on the canvas create sensitive fields and enable the experience. This is not a painting of characters, but rather one of shadows and reflections: it is a water realm, always reminding us that each construction is but a ruin and that each face is a skull. Sunk deep in that world of shadows and reflections, the painter is the great reconstructor: patiently, he collects, rebuilds, and presents for viewing.

"per aspera ad astra" (the way to the stars is made of harshness): this is the motto of he who recognizes that time is on his side, who knows time does not fight the paintings, but rather brings them into existence, enhancing them. The path that leads to painting is harsh because it is a path made of things that do not shine like polished surfaces, but are rough with the natural roughness of all that exists. He who touches this roughness gets hurt and feels different things conquering space: all there is pierces the skin and gains a place in the inwardness to which each painting confers an image. Thus, the painter is he who finds himself while getting lost in the outside: it is in the moment when he recognizes the existence of things distinct from himself that he becomes aware of the lines that draw his territory.

The suffering associated with harsh things originates from the need to choose - supreme sacrifice - and from the disintegration of the visible: painting does not exist without dismantling the visible; painting only exists if with a gesture one can take to pieces - layer after layer - the veil that covers and filters the visual field. Thus, it is the painter's task to imitate that which he sees: but through the copy the original is set free and the mimetic action unchains the poetic gesture, and the painting filed becomes the place where all the intensities and depths of the horizon are synthesized. A field made out of folds and roughness.

"Radiohead" is the name of the new series of paintings by Brighenti. It is a set of perplexities turned into painting: the largest relates to the ever mysterious occurrence that is the actual existence of painting. We will never find an appropriate answer to 'why' painting, only to the 'how', and what Brighenti does is to continuously execute de movements of redefining and repositioning the image in/from painting.

text written for Paulo Brighenti show at Baginski Art Gallery, Lisbon, September, 2006

A pintura como coisa áspera




Fazer justiça às imagens é tarefa árdua, mas fazer justiça a uma pintura é da ordem da impossibilidade. As palavras – primeira instância de ordenação do mundo – são condição de visibilidade: “Fala para que eu te veja!” diz Hamann; mas quando toca à restituição da experiência de uma pintura as palavras recuam e parecem ficar ocas e em vez de um sentido preciso parecem ser ecos indistintos. Primeiro porque a pintura não é um objecto, nem é uma imagem, nem um conceito; depois porque as palavras são escravas do sentido e do significado e a pintura só é escrava de si própria. Mas não é um caso de autismo, mas de uma absoluta concentração, é o gesto intenso daquele que se vira sobre si próprio.

A pintura de Paulo Brighenti pode inscrever-se neste universo. A história da pintura é a história dos seus gestos: que guardam a possibilidade da repetição e da certeza que os sucessivos golpes sobre a tela abrem campos sensíveis e possibilitam a experiência. Não é uma pintura de personagens, mas de sombras e reflexos: é um reino aquático que está sempre a lembrar-nos que cada construção é, no fundo, uma ruína e cada rosto uma caveira. O pintor, afundado neste mundo de sombras e reflexos, é o grande reconstrutor: pacientemente recolhe, reconstrói e dá a ver.

“per aspera ad astra” (o caminho para os astros é feito de aspereza): é o mote daquele que reconhece que o tempo está do seu lado, que o tempo não combate as pinturas, mas fá-las existir e intensifica-as. O caminho que leva à pintura é áspero, porque é um caminho feito de coisas que não têm o brilho das superfícies polidas, mas a rugosidade natural de tudo quando existe. Aquele que mete as mãos nestas asperezas fere-se e sente diferentes coisas a conquistar espaço: tudo quanto há perfura-lhe a pele e conquista um lugar na interioridade a que cada pintura confere uma imagem. Por isso o pintor é aquele que se encontra quando se perde no exterior: é no momento de reconhecimento que existem coisas diferentes de si que se dá conta das linhas que desenham o seu território.

O sofrimento ligado às coisas ásperas tem origem na necessidade da escolha – supremo sacrifício - e da desagregação do visível: não há pintura sem desmembrar o visível, não há pintura se com um gesto não se decompuser – camada por camada – o véu que cobre e filtra o campo de visão. Por isso, ao pintor cabe a tarefa de imitar isso que vê: mas da cópia solta-se o original e da acção mimética solta-se o gesto poético e o campo da pintura transforma-se no local de síntese de todas as intensidades e profundidades do horizonte. Um campo feito de pregas e rugosidades.

“Radiohead”, título da nova série de pinturas de Brighenti, é um conjunto de perplexidades tornadas pintura: a maior delas diz respeito ao sempre misterioso acontecimento que é a própria existência da pintura. Nunca conseguiremos convenientemente responder à pergunta do ‘porquê’ da pintura, mas somente ao ‘como’ é a pintura e são os movimentos de redefinição e reposicionamento da imagem na/da pintura que Brighenti continuamente executa.

texto escrito para a exposição de Paulo Brighento na Galeria Baginski em Setembro de 2006, inédito

Rui Sanches*



Marat significa, antes de mais, o nome que se dá à impossibilidade de representar a vida sem a morte. A pintura que David faz do corpo assassinado de Marat tem uma dupla função: primeiro, põe em causa a compreensão do retrato e depois constitui-se como uma apresentação do corpo enquanto ser em metamorfose para a morte. Neste retrato fúnebre, o leito de morte é uma banheira em que o corpo delicadamente se separa da vida, onde se materializa um afastamento e se impõe uma distância. No limite, trata-se de um retrato impossível, o qual é considerado por Baudelaire como um poema visual onde a vida surge na sua feição mais cruel e no qual Marat desafia Apolo.

Estas considerações não são estranhas aos desenhos que Rui Sanches, inspirado por David, dedica “A Marat”. Este surge como motivo que conhece sucessivas aproximações, enquadramentos, imagens. O elemento central é o corpo na sua acção de desvanecimento sobre o qual são construídas as coordenadas de um lugar impossível: o lugar onde a vida se separa do corpo, o lugar onde acontece a morte. Em alguns destes trabalhos surgem sobre a figura uma espécie de diagramas, esquemas de integração do peso do corpo assassinado pelo punhal de uma mulher. É como se o artista ensaiasse dar à perda uma figura.

A escultura que convive com estes desenhos também é sobre a perda. “Orfeu” é o nome do cantor que com a sua lira e o seu canto encantava animais ferozes e desviava o curso dos rios; um dia perde o seu amor, Eurídice, e vai às profundezas do Hades para resgatá-la. A condição imposta pelos deuses é que Orfeu pode levar Eurídice desde que não olhe para trás, se não perderá para sempre o amor.

Quer a escultura quer os desenhos partilham a experiência da perda, da morte, do afastamento, da distância. Mas em ambos os casos as obras estabelecem uma relação erótica com o seu contemplador. Ainda que as estratégias nos desenhos e na escultura sejam diferentes, ambos conhecem na pulsão de Eros (irracional, imbatível, sensível) a sua forma.

Se nos desenhos o corpo parece desintegrar-se e desmaterializar-se, em “Orfeu” a lógica é a da acumulação de finas placas de contraplacado sobre as quais se ergue um corpo de gesso branco. As formas antropomórficas que nascem são fruto da relação que o corpo escultórico cria com o corpo do seu utilizador: corpos de matérias diferentes que se reconhecem um no outro. Este corpo é afirmativo no modo como se movimenta e ergue acima do solo. A indistinção entre o que é corpo e o que suporta o corpo é um elemento importante e que afirma a pertença de todos os corpos ao mesmo fundo, aos mesmos elementos, às mesmas raízes.

As referências históricas não têm no trabalho de Rui Sanches um papel determinante, mas servem como metodologia de revisitação da história da memória, dos momentos humanos de aprendizagem do sentido e da percepção. O seu programa não se funda num elenco dos clichés visuais da história da arte, estabelecendo-se antes sobre a sua destruição ao transformar em seu material uma certa tradição. O que lhe interessa são os motivos humanos que ficaram condensados nas histórias, nas pinturas, nas esculturas e que ecoam em todos os corpos e em todos os tempos. Este é o seu âmbito.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Jorge Queiroz*






Jorge Queiroz faz desenhos. Uma acção que se caracteriza por encontrar os seus fundamentos principais numa espécie de polaridade básica originária: sentido e sem sentido, lógico e ilógico, consciente e inconsciente, cheio e vazio, abstracto e figurativo, narrativa e fragmento. Tudo parte de um ponto de vista próximo do da Alice de Lewis Carroll, onde tudo é e não é ao mesmo tempo porque a lei fundamental é a da metamorfose: permanente transmutação das coisas umas nas outras, movimentos contínuos de aproximação à maior intensidade expressiva possível. Uma lei que se manifesta em termos das características formais, materiais e conceptuais de cada um dos desenhos: a nota dominante é o não haver lugares habituais (ainda que se possa identificar uma espécie de acção serial), e o próprio desenho estar continuamente a ser re-inventado, testado, levado aos limites. A luta (e estes desenhos são espaços de um certo tipo de conflito) não é por uma espécie de desmedida surreal, mas nasce de uma tensão constante (muito próxima da da poesia e de algum tipo de filosofia) entre aquilo que se pode dizer (desenhar) e aquilo que deve ficar sempre sem ser dito (aquilo a que jamais pode corresponder uma forma, imagem ou traço).

Os habitantes destes universos quase implausíveis, mas ajustados e logicamente possíveis, são seres mutantes e explosivos que habitam locais onde a geometria é invertida e a arquitectura, enquanto memória da ocupação e organização do espaço, transforma-se em irracionalidade, imprevisibilidade e acaso. A sua principal resistência é a qualquer tipo de discurso unificador que ambicione impor sistemas reguladores e ordenadores: a regra que conhece é a que surge no interior das suas próprias coordenadas pictóricas, formais e gráficas. Não conseguir identificar o fio da história significa a opção pela descoberta de lugares isolados dentro da própria possibilidade de sentir e de sentido: uma espécie de negação da genealogia (todos os elementos que compõem estes desenhos parecem sair, literalmente, do nada), dada a impossibilidade de proceder a uma regressão fiel até à origem dos acontecimentos do desenho.

Por isso o vazio faz tanto parte das obras como todas as inscrições no papel: corresponde à possibilidade do sujeito se movimentar e percorrer o espaço. Por um lado, equilibra a lógica de excesso e a abundância que formalmente caracterizam estes trabalhos, e, por outro, deixa espaço livre para a imaginação. A este vazio corresponde, sobretudo, o espaço de liberdade (que curiosamente é, neste contexto, ausência e solidão) necessário para que as faculdades humanas sejam activadas, excitadas, vivificadas. Surpreendente é o modo como à percepção deste excesso (parente do caos onírico, simbólico e surreal) se segue uma experiência de equilíbrio, harmonia e fusão com aquilo que os olhos vêem e a sensibilidade experimenta. Por fim, à estranheza sucede-se a possibilidade (em forma de evidência inegável) de que a ausência de narrativa é o elemento primeiro da construção do sentido.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Rui Moreira*




Pode-se enfrentar os desenhos de Rui Moreira ou deixar-se levar por eles, perder-se nos múltiplos detalhes provenientes de um meticuloso registo de observação, atenção e dedicação. A experiência mais próxima é a daquele que sozinho percorre uma paisagem e se deixa levar pelos diferentes verdes, pelo contraste da terra com o céu, pelos desenhos que as montanhas e árvores realizam no horizonte. Os seres que se vê surgir nestas enormes folhas de papel nascem de uma espécie de exercício da memória: do olhar quando percorre um lugar, da mão quando acaricia uma superfície, da sensibilidade quando descobre um novo sentimento.

As figuras são ondulantes, estranhas e movediças. Não se deixam agarrar e a cada momento mostram uma nova face, um novo aspecto, um novo pormenor. A sua monocromia é um mecanismo de intensificar a concentração, de adestrar a atenção para os acontecimentos da figura. O acontecimento fisionómico é a categoria central destes desenhos, mas são acontecimentos criados pelo artista. O seu ponto de origem está num treino do olhar em detectar a geração da figura, em perceber como é que um ponto se desenvolve noutro ponto e noutro e noutro e noutro. Qualquer coisa que se manifesta não só na inscrição do sinal sobre a superfície, mas também no ritmo que imprime e é desejado, ambicionado pelo palco em que se transforma o desenho.

As figuras que Moreira apresenta lembram corpos ancestrais, aqueles com quem se aprende o primeiro gesto, com quem se trava o primeiro combate, com quem se aprende a primeira lição. As acções que parecem fazer são exemplares, rituais, míticas: devem ser repetidas e executadas por aquele que as observa, esta é a condição da sua contemplação. A sua expressão intensa dá conta do contacto com o mais fundo, com o que corre muito para lá do que se pode sentir, lugares a que só se tem acesso através de sofisticadas construções artísticas. A cada momento nestas figuras acontecem outras coisas: pequenos seres, quase invisíveis, que preenchem e criam o contorno das figuras principais.

Num outro desenho, a variedade formal sintetiza-se numa figura redonda, a qual surge como matriz planetária que é ao mesmo tempo apresentação da célula, do átomo, do infinitamente pequeno que suporta a vida, da mente como coisa redonda, do olho como porta de entrada. O modo como são construídas estas figuras conhece em Demócrito, que descreve o mundo como um conjunto de átomos e vazio, pequenas unidades de preenchimento e vazio, o seu melhor porta-voz. O modelo cosmológico dos atomistas compreende que aquilo que existe não pode ser imóvel e uno, mas depende de uma relação íntima entre o cheio e o vazio, o ser e o não-ser, e que as diferenças entre os átomos são a causa das diferentes coisas e que estas diferenças são três: “forma, disposição e posição; o ser, dizem eles, difere só em ritmo, contacto e revolução, dos quais o ritmo é a forma, o contacto é a disposição e a revolução é a posição” (Aristóteles, Metafísica, A4, 985b)

Este é um modo possível de compreender os desenhos de Rui Moreira. Também eles dependem de uma relação complexa entre o cheio e o vazio, o ser e o não-ser. E estes são os princípios que organizam os campos de visíveis que constrói. A poesia também conhece esta fórmula: enquanto arte do ritmo, ela depende da relação entre palavra dita e silêncio. De algum modo, as figuras aqui desenhadas são formas poéticas (não poemas visuais), porque intensas e preenchidas de ritmo e movimento.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

José Loureiro*




As “bocas” de José Loureiro são um momento importante na história do corpo. Trata-se do momento em que os órgãos se autonomizam e, logo, ganham voz própria, vontade, identidade.
A sua autonomia é tão inesperada que num primeiro contacto, estas “bocas” são identificadas como pequenos monstros: que dizer de bocas que andam por aí, sem dono, autónomas, a reivindicar um lugar no mundo? Alguém devia informar as bocas, ou o pintor, que os órgãos pertencem ao organismo e que as bocas só num rosto têm lugar. Lembre-se a trágica história do pobre Schlemihl que vendeu a sombra e nunca mais teve lugar entre os vivos. O outro lado desta história é pensar-se no que é um rosto sem boca, um corpo sem fala: arrepiante.

A vantagem da pintura, bem como de outras artes, é não conhecer as mesmas leis a que têm de se submeter todas as outras coisas do mundo dos homens. As figuras e corpos da ficção, neste contexto, figuras e formas pictóricas, resultam de um processo de abstracção, não têm obrigações de verosimilhança, de causalidade, somente conhecem as regras do rigor estético, do ajustamento artístico: o seu mundo ajusta-se a este mundo e é tudo. As pinturas são um mundo porque são simultaneamente legislador e objecto da legislação.

No caso destas pinturas, elas deslocam os seus referentes — as bocas reais que falam, beijam, comem, dizem poemas, segregam saliva — para um contexto novo, autonomizam o fragmento e, assim, criam um plano novo de vida — aqui o fundo mágico e absorvente da pintura. Estas “bocas” são uma fatia de um corpo, fragmentos retirados à unidade. O corpo é uma totalidade organizada, sistema de finalidades sem fim, como diz Kant, e a ambição destes novos seres é conquistarem essa mesma autonomia orgânica e formal. Não se sabe se o conseguem do ponto de vista orgânico, mas enquanto formas elas conquistam um lugar e são celebradas enquanto instância visível de um certo tipo de sensibilidade. E é esta autonomia da figura que a boa pintura consegue sempre.

O ser-boca é nestas pinturas de Loureiro levado ao seu limite expressivo: são esticadas, deformadas, geometrizadas. O resultado manifesta-se enquanto resistência ao gesto destruidor: porque se o pintor é criador, também é demolidor. Neste levar ao limite da figura surge a capacidade da forma, agora autonomizada, conseguir criar um mundo só seu a que correspondem os diferentes planos e cortes efectuados pela pintura. Não se trata unicamente de pôr a figura a viver, mas da certeza que os ingredientes da pintura possuem uma inteligibilidade própria. A forma é deles dependente, o seu limite é o deles.

O lugar no espaço da figura pintada é um lugar que é conquistado no momento do nascimento da forma, da mancha. Os seus limites são os limites do traço, do papel. Não existe espaço antes da pintura: ele é formado com o gesto que pinta e reconhecido através da utilização que as figuras dele fazem. Por isso a estranheza inicial que se sente ao ver estas “bocas” irónicas transforma-se em reconhecimento de lugares, espessuras, possibilidades.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Ruy Leitão*


Composições cuidadas que se revelam como lugares de espanto. A sua genialidade está no modo como consegue a cada pintura construir um mundo novo, um universo consequente e autónomo. A estratégia criativa é a de uma luta permanente contra o anonimato do habitual-habitável, uma espécie de gesto de salvação do esquecimento para que continuamente se atira o quotidiano. Os motivos na obra de Ruy Leitão são imensos, tantos quanto o olhar consegue abranger. Herdeiro da cidade frenética, fábrica de imagens rápidas sem tempo para contemplações, os seus trabalhos são uma cuidadosa elaboração de tudo quanto a vida de todos os homens e de todos os dias dispõe ante o seu olhar.

Ainda que viva da e na abundância de cores e formas, o seu gesto é preciso e exacto no modo como apresenta os seus objectos, que se transformam em ponto de desenvolvimento de mais cores, mais formas, mais composição. A acumulação de elementos obedece à necessidade interna de cada coisa: as coisas saem de dentro umas das outras, multiplicam-se infinitamente e há sempre mais vida. As relações entre as coisas não se podem antecipar, mas nascem de uma consequente ocupação do espaço da folha ou tela e da atenção aos pequenos pormenores.

No seu conjunto, a obra de Ruy Leitão é uma meditação sobre a pintura. Tudo lhe serve como ponto de partida: alfinetes, peças de vestuário, corpos, animais. O seu esquema integrador de ideias é um poderoso artifício de condensação e síntese que tem como resultado mais imediato um enorme estímulo das faculdades da visão. A integração que faz das diferentes famílias de objectos forma uma espécie de quadro de parentesco onde as parecenças são conseguidas à custa de relações de adequação formal e cromática. O movimento que se experimenta em cada trabalho é fruto desse ocultar/desocultar que é a sua linguagem primeira.

Mas não só de preocupações estéticas vivem estes trabalhos, que são simultaneamente campos de afecto e sensibilização. São pequenos pontos concentrados de energia que se prolongam entre o corpo do desenho e o corpo do espectador, locais de co-pertença: o espectador pertence ao desenho e o desenho ao espectador. Trata-se de uma relação de conveniência que não conhece desconforto nem afastamento. A visão transforma-se no lugar onde acontece a intuição e todos os mensageiros do sentir se reúnem no lugar da sensação visual. O animal da vista conhece um seu igual e com ele estabelece uma afinidade.

Podem-se retirar muitas consequências dos trabalhos de Ruy Leitão, aprendizagens perceptivas, gramaticais, pictóricas, composicionais. São, sobretudo, portas para regiões da vida humana impregnadas pela intensidade do estímulo visual, rápido, inclemente, irreparável. Que o desenho era a sua forma de vida fica atestado nos blocos A4 e A5 que deixou e, enquanto tal, não conhece a imobilidade das fórmulas abstractas, mas está possuído pelo poder ver tudo, querer ter tudo ali, à mão. Baudelaire baptizou a imaginação de rainha das faculdades por poder ser análise e síntese; no caso de Ruy Leitão, ela é o mundo inteiro: local onde acontece o próprio acontecer.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Álvaro Lapa*

Dificilmente se pode ser tão profundo como o são os desenhos de Álvaro Lapa. Através de um reduzido léxico formal, o artista consegue atingir as camadas mais profundas do sentimento, da percepção, do pensamento. Não se confunda a simplicidade aparente destes trabalhos com a falta de recursos; o seu resultado é um enraizamento do olhar nas coisas mais simples, e por isso mais difíceis. Que as pedras tenham vozes e que a Mãe-Terra tenha moradas para todos revela um mundo que se julga extinto, um contacto com a fonte de onde emanam todas as coisas que já só sob a forma de fantasma se julgava possível pressentir.

Que a beleza é o mais difícil é uma lição que se aprendeu desde Platão, mas aqui esta categoria surge como modo de dizer o lugar terreno onde o corpo pertence: corpo que é morada, que é voz, que é forma. A inscrição do corpo sobre a Mãe-Terra não é um apelo ecologista, mas uma necessidade de voltar ao pó, ao contacto, às cinzas. Poder-se-á dizer que a cada desenho Álvaro Lapa abre uma fenda na crosta terrestre através da qual se pode ver. Aquilo que se vê não é mais que o ponto de encontro entre a essência humana e a essência do mundo. A cada traço o artista redesenha os contornos do planeta, ao mesmo tempo que se descobre a si mesmo. A cada momento define a essência do desenho. Tudo se passa como se fosse um poema, onde cada linha só nasce da absoluta necessidade: nada é supérfluo e a sua economia é perfeita. A cada nova visão fica-se mais próximo da essência não só do desenho, como do ritmo do magma terrestre, do coração, da palavra.

Os campos que abre são verdadeiras clareiras onde o ser do mundo encontra o lugar do seu acontecer, um espaço em aberto onde se descobre a pura potência, o poder-ser tudo. Os desenhos de Lapa não são pontos de chegada, mas pontos de partida, locais de onde se parte para descobrir as linhas com que as coisas se cosem a elas mesmas e que depois se unem ao corpo do homem: tudo está ligado a tudo, tudo é feito da mesma matéria.

Escutar “a voz das pedras” é uma espécie de oração ao cosmos e ao dia que encontra nas mãos e no rosto que se recolhem para pensar em deus a sua melhor apresentação. Pensar no sentido do mundo é o outro nome para este deus que tem morada na terra e consegue ouvir as pedras. Não se chega a este local através de deduções e exercícios: ele só se torna presente numa revelação. O sentimento que atravessa estas paisagens não é de nostalgia, mas de familiaridade entre todas as coisas, com o homem no centro delas. Que a Terra seja o lugar de pertença do corpo é um facto que de tão primário se tende a esquecer, faz parte daquelas coisas que de tão presentes se tornam invisíveis e é o resgate desta invisibilidade que o artista parece estar continuamente a ensaiar.

Na série “Moradas da mãe terra” a sequência de 14 desenhos parece apresentar uma espécie de sequência cinética, os movimentos são sempre duplos: interior/exterior, inspiração/ /expiração, dentro/fora. Mas esta diferenciação é provisória, pois são termos de uma mesma relação e que depois são integrados. O movimento que se percepciona é sinal do dinamismo interno do que é vivo, do gesto significativo que todas as criaturas realizam.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Ana Jotta*



O conjunto da obra de Ana Jotta é um verdadeiro enigma. As suas referências são várias e dificilmente se consegue encontrar um fio condutor que una as suas diferentes produções. Não é que seja um trabalho incoerente, mas cada obra é um ser singular, auto--referencial, autónomo. As suas pinturas, desenhos, esculturas e fotografias têm somente um centro originário, que é a própria artista. Mas que não é um corpo convergente: os seus trabalhos usam diferentes gramáticas e têm destinos diversos. Mas pode assumir-se que todos têm um ponto comum — a forma cuidadosa com que são executados. Talvez o desenho seja a sua matriz, a fonte de onde emanam todas as outras construções. Por isso o seu registo é o da inscrição da forma. A artista é aqui sinónimo de uma posição de escuta: ouve a forma e trata de lhe dar alimento — tinta, barro, grafite, cartão, tela. São obras cujo projecto são elas mesmas.
Nos desenhos e pinturas aqui apresentados o campo é o do jogo perceptivo, isto é, lidam com o fenómeno da visão na sua maior amplitude e com os exercícios que transformam o acto de ver.

A sua ‘cabeça pato-coelho’ é clara a este propósito: é uma figura dupla onde ora aparece um coelho, ora um pato. Que as duas figuras possam coexistir em simultâneo no mesmo espaço não é só significativo do ponto de vista da construção da imagem, mas também da adequação da visão ao pensamento. Aquilo que a artista sublinha é que a visão já compreende uma relação de adequação ao mundo, isto é, só se vê aquilo que se está preparado para ver, o que se quer ver. Este abismo perceptivo que Jotta evidencia também é revelador do modo como o olhar artístico se constrói: materializa figuras internas, projecta acontecimentos da visão sobre a matéria, cria zonas de sensibilidade de outro modo só existentes enquanto tensão interna.

Mas em nenhum dos casos se trata de um jogo cego ou de enganos. É o esforço de uma certa arqueologia do visível que tem como resultado mais imediato uma desmontagem do preconceito da objectividade e geometrização espacial: o campo visual antes de ser euclidiano é humano, e a primeira relação com as grandezas — e as manchas de cor são, de certa forma, grandezas dadas — é estética. Deixar-se afectar pelo visível é o mote que a cada momento é desenvolvido nestes trabalhos, e a cada percepção da figura externa corresponde a identificação de um lugar da interioridade. E, neste contexto, não se pode falar em erros, somente em cegueira, e esta é, deste ponto de vista, a maior condenação. Não se trata de estar cego relativamente à imagem do mundo, mas sim quanto aos aspectos — pedras de toque na organização do campo visual — que o mundo tem.

As intervenções que Jotta executa não são somente apropriações de trabalhos ou de imagens existentes — numa espécie de continuidade da sua estratégia do objet trouvé — , são sobretudo modos de agir, de interceptar, de tocar no modo efectivo como se vê, como se sente, como se pensa. Estes trabalhos colocam o seu utilizador ou activador perante a certeza que a relação com as obras de arte é meio ver/meio pensar, e onde as obras surgem como pontos de concentração e intensificação do corpo (porque o corpo é a melhor imagem da alma) daquele que as confronta.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Rui Chafes*



Corpos de fogo, ferro e palavra. Assim poderia começar uma descrição do trabalho de Rui Chafes. As suas esculturas são pedaços tirados à terra, bocados do cosmos terreno e celeste com os quais o artista realiza uma minuciosa descrição da ocupação do espaço. O seu interesse não é puramente humano; trata-se de tornar terrenos seres incorpóreos e criar lugares onde os corpos não se submetem às habituais leis da gravidade, criando as suas próprias condições de existência. A sua estratégia formal e conceptual passa por um jogo com o peso e a leveza, a gravidade e a graça, a opacidade e a transparência.

Independentemente do seu estatuto de corpos, as suas criaturas — que são madrugadas e manhãs, luzes e escuridão, clareiras e campos de escondimento — são sobretudo pontos de intensidade, topoi poéticos: momentos de potenciação do campo da acção humana. A figura matricial é sempre o corpo humano na sua dimensão múltipla, nos seus aspectos de matéria, forma e invisibilidade. São locais de partida através dos quais se toca no frio que envolve todo o ente vivo. São gestos que rodeiam, como um halo sagrado, e protegem o coração, ao mesmo tempo que o expõem ao mundo. São abrigo e casa materna onde o homem se pode recolher, lugar sagrado onde o coração se pode dar a si próprio.

Não se pode pensar o trabalho deste artista sem ser numa estrita relação com a camada mais profunda da realidade: as suas esculturas são seres da profundidade, corpos alados. O local que habitam inscreve-as em zonas onde o silêncio é mais forte que a palavra, são como sondas que detectam os deslocamentos e oscilações do magma terrestre. Mas trata-se de um silêncio que não anula a palavra, a qual é aqui entendida como esforço humano de compreensão. Estas esculturas são, sobretudo, formas de pensamento tornadas sensíveis, tangíveis: é o pensamento a entregar-se na forma de corpo. Dar nome — e todas as esculturas de Rui Chafes têm nome — significa a necessidade de compreender o visível, de identificar a intuição. Mas a nomeação não é sinónimo de um programa de racionalidade, mas sim um gesto poético. Aliás, só a palavra poética convém a estas formas, porque só elas podem conter o universo que é aqui apresentado: fazer poesia com o fogo, escrever sobre o aço incandescente — esta é a imagem que convém a estes corpos.

Um esforço que não obedece a critérios puramente formais, mas orgânicos. Exigências que têm de se cumprir quando se seguem os vestígios do que está vivo. O escultor transforma-se não num demiurgo, mas num caçador nómada, as suas presas são meio anjos, meio bestas, que só conhecem a forma quando são presas nas tiras esvoaçantes e leves do ferro. A sua solidão é o espaço de silêncio e imobilidade necessários para poder levar a cabo a sua tarefa. No final dá-se outra metamorfose: o caçador torna-se na sua própria presa e faz de si mesmo o caminho a percorrer. A metáfora da caça é conveniente a Rui Chafes e é sob o signo do viajante, solitário e intenso, a sós com a dor e a morte que transporta dentro de si, que todo o seu trabalho se desenvolve. Neste seu universo, todos os elementos têm uma localização precisa, geométrica: a única lei que conhecem é a necessidade orgânica de manter a vida, de suportar a carne, a voz e o sopro que é a alma.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Miguel Branco*



Que o rosto se pode transformar numa paisagem é qualquer coisa que todos os retratistas e alguns fotógrafos sabem, aliás essa é mesmo a sua matéria, o seu mote, a sua razão. Não se pode com segurança localizar as pinturas que agora se apresentam numa tradição da pintura ou identificar um mote que todas em conjunto desenvolvam. O que recriam é um ambiente cuja espessura é estranha, de difícil acesso: animais, paisagem, rostos humanos em transformação. O carácter humano, a confundir-se com o fundo da pintura, é dado enquanto metamorfose, movimento de aproximação à sua animalidade, a um carácter bruto e indistinto.

O homem e a sua máscara é outra das entradas nestes trabalhos de Miguel Branco. Mas máscara tem aqui o sentido nietzscheano de ser condição de expressão, a condição metafísica necessária para que o rosto possa aparecer. A pintura mais reconhecível enquanto retrato revela-se, no final da série, como a mais encenada, mais distante do elemento primeiro da fisionomia: reconhece-se no rosto que é máscara a fundir-se no fundo, a fazer-se parte do indiferenciado cósmico da pintura, a apresentação da natureza indistinta no homem. Se, por um lado, se pode transformar o rosto em paisagem que se contempla e onde se descobrem múltiplos acidentes que contam histórias e expressam vida, por outro, esse mesmo rosto pode ser visto como máscara funerária. Não que anime estas pinturas qualquer sentimento nostálgico, aquilo que elas têm como força configuradora reside na descoberta da não-forma, da não-figura como lugar de pertença do humano.

Estas pinturas de Miguel Branco são lugares inquietantes onde se assiste ao retorno do corpo à terra, ao leito, ao lugar indistinto a partir do qual todas as formas são formadas, esse imenso oceano cósmico e natural. Que a figura progressivamente se vá transformando no seu próprio fundo é, para além de uma relação pictórica, indício da polaridade constitutiva da fisionomia: aparecer/desaparecer, fazer-se/ desfazer-se, diferenciar-se/tornar-se indistinto. No limite, aquilo que o artista obriga a percepcionar é a anulação da multiplicidade e a sua transformação em unidade: o muito reconhece-se no UM e funde-se nele. O UM é o magma terrestre que tudo absorve, tudo integra, tudo desfaz e integra numa outra unidade, numa outra espessura orgânica.

A escala em que trabalha, quase um miniaturista, serve um duplo propósito: primeiro obriga à concentração, depois faz com que estes trabalhos sejam uma espécie de segredo que o artista nos conta ao ouvido. Os sussurros que emanam destas madeiras e destes seres atemorizam, mas por mais que se queira não se pode desviar o olhar. Está-se sob uma espécie de encantamento ou condenação: qualquer olhar reconhece nestas figuras o seu lugar de pertença, neste rosto reconhecem o seu próprio. O elemento inquietante nestes trabalhos é o eles não se erguerem enquanto lonjuras, mas como locais dentro do próprio corpo, novos órgãos que sem antecipação crescem dentro do contemplador. A posição, anímica e física, que as pinturas obrigam a assumir metamorfoseia aquele que vê em força, pura pulsão, energia irracional que irrompe do interior do rosto e se transforma no campo magnético que rodeia a fisionomia humana.





*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Eduardo Batarda



O imaginário de Eduardo Batarda implica, antes de mais, um salto nas profundezas da imaginação, no poder configurador que esta força da inteligência possui de dar forma àquilo que não domina. Não se trata de uma simples unificação, antes do estabelecimento de relações muitas vezes inesperadas entre corpos, objectos, roupas, detalhes roubados. O seu interesse é puramente visual, ou seja, trata-se de um artista que encontra na prolixidade das figuras o seu modo de construir imagens.

Os diferentes elementos pictóricos que utiliza, sempre variados e a fugir da repetição, criam entre si um ambiente familiar. Mas esta família é especial: quase nunca há parecenças directas, é preciso aguçar a vista e estar-se preparado para o detalhe, para a fissura que cada uma das suas figuras sensíveis apresenta como sendo o seu lugar. São quase sempre corpos que, através de acções inesperadas, se dão a conhecer enquanto limites: da forma, do traço, da fisionomia. As situações de desmedida em que Batarda coloca os seus personagens não são produto de uma fantasia sem limites, mas procedem de uma compreensão que é no limite que melhor se vêem as diferenças, que aí se dão a conhecer as fisionomias dos corpos que se amam e dos corpos da náusea, que não se querem ver, cheirar, tocar.

A escala que o artista utiliza deve-se, antes de mais, à construção de uma linguagem destinada a poder exprimir o carácter sempre único do corpo que concebe, que arrepia, que deseja. O riso que pode provocar dá conta da profundidade da sua intuição: feita mancha, figura, universo. O seu mundo tão próprio é regido pelas leis do desejo e da viagem: esta empreendida enquanto gesto de descoberta do eu e do outro, do encontro e do desencontro. As consequências políticas são inevitáveis. Está-se aqui a pensar sobretudo nos seus papéis. Aí, a anarquia da imaginação é total e encontra o seu sentido na capacidade de construir uma espécie de amostra de um mundo possível.

O carácter exótico com que se pode classificar estes seus trabalhos não os afasta de nós, mas transforma-os em espaços explosivos de relação com o erotismo que se teima esconder. Os falos grandes, as bocas abertas e famintas parecem sempre corresponder a algo daquele fundo inesgotável no homem de que fala Jünger.

Trata-se de um artista que é, sobretudo, um receptor: tudo o que lhe interessa faz sua propriedade, transforma a linguagem alheia na sua própria e o seu método reside num olhar que se constrói na tensão da criação de um inventário das formas orgânicas e de tudo que com elas se relaciona. Se o corpo é o mote destas aguarelas, é-o no sentido de ser o denominador comum de todos os objectos, de todas as cores. É o primeiro termo de comparação e de relação com tudo o que há. A violência que, aparentemente, envolve alguns destes seus trabalhos está relacionada com o modo desinibido como o desejo é apresentado: força primária configuradora dos gestos, orientador e primeira pedra do edifício humano dos valores. De algum modo, Batarda parte de um cliché visual e histórico (são conhecidas as suas obras em que se apropria de muitos lugares da história da arte) para construir um campo visual absolutamente seu: o sítio de onde parte é destruído e das suas cinzas nascem figuras de surpreendentes poderes encantatórios.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Notes on the concept of figure*

“Every figure is a world, a portrait whose subject appeared in a sublime vision, bathed in light, revealed by an inner voice, as a celestial finger laid bare the sources of expression in the past of a whole life.”

H. Balzac, A obra-prima desconhecida [The unknown masterpiece], p. 38


Though Balzac’s intention was never to describe some kind of metaphysical depiction of works of art, the above text nonetheless contains one of the most powerful descriptions of art’s demon (in the Greek sense of daemon), an entity which hails from a plane that does not circumscribe itself to materials, objects, or purely sensitive experiences. This plane goes beyond mere data: a purely sensitive experience is not enough for it, and it peculiarly tends to exorbitate. Even though, as Kant well acknowledges, such is the tendency or natural vocation of human reason, in artistic terms there is a risk of annulling the work of art, the figure, the colour patch, the object itself.
In the same text, Balzac tells us the following, through the lips of the master painter who insists on not revealing his work to his friends: “The picture I keep upstairs under lock and key is an exception in our art; it is not a canvas, it is a woman!” This metamorphosis of painting into flesh, of artistic material into the material of life, is not exempt from danger, being a supremely confusing realm, where things do not seem what they are and are not what they seem. This feeling of distrust generates aesthetic discomfort: it is as if every work of art were concealing a kind of malignant genie who is constantly trying to delude us with perceptive tricks, keeping us from taking the things’ apparent nature for granted. But the reasons for mistrust become reasons for praise: a crown of thorns and of glory. It is like when Plato, in the Republic, lists the reasons for keeping artists out of his city and his damning speech becomes one of the most beautiful exhortations on the powers of art. In other words, this genius may be indeed malignant, but is also at the same time a creative entity, which carries the power of configuring matter into symbol, sign, experience, knowledge.
Balzac’s formulation implies something that many misunderstand and find unjustified: that the work of art cannot be just another object, that it must be a mould, a model, a portrait – a world, in Balzac’s words. Besides being a moral imperative, it demands a kind of relationship with the world that finds its finest expression in the concept of figure. The relationship between the figure and the world, which must be explored here, corresponds to the effort of making something visible, an effort that incorporates both the amazement at the fact that things exist and the amazement at their being as they are. The arts thrive on serving such amazements.
The approach that characterises those who envisage aesthetically qualified objects as moments of contemplation implies avoiding any unnecessary, fortuitous, ungrounded gestures, any randomly-traced arabesques. The relationship of the figure with the world implies the acknowledgment of something as characteristic and proper; hence, the world is its place of resonance. It is concerned with turning the world into something identifiable, or, in other words, with the painstaking organisation of the visual field.
This relationship is not about strict representation – to represent is to play a part: to be in the place of…, to use a mask to look like… –, being instead a place of discovery. Just as names are nothing more than keys for entering into things, figures are gestures that, on a formless, indeterminate background, are able to delimit, recognise, and intuit areas for communal exchange.
According to Jünger, “«Intueor» is a verb the Ancients only knew in its passive tense and through its causes. Naming would only come later: things do not carry their own names, they are conferred upon them. The world of names is different from the world of images: it is nothing more than a reflection.” (Typus, Name, Gestalt, §24)
The figure is thus the presentation or, if you prefer, the materialisation of intuition: on the paints on a canvas, on the lines of a drawing, on the wood or iron of a sculpture. And the ancient meaning of intuition – the fact of being affected, impressed by something – puts the configurative activity of the human mind on hold, briefly turning all knowledge into acknowledgment. This praise of a certain passivity of the individual leads to a relationship of discovery of that which emanates from the things themselves. It is as if, from this point of view, interest resided in the sight – and to intuit is, in some way, a form of sighting – of the things themselves, in their most chaotic, shapeless, disorganised forms, untouched by rationality or integration into the systematic mind, that is to say, intuition as a contact with the before-the-name, as something sighted under the midday sun, without shadows, without filler. Jünger tells us that names are reflections, shadows of things, human acts; while images are closer to the source. And the image, here, is the figure-being of what is seen: let your body cast light and shade so that I may see you, so that I may recognise you, so that you may be.
“The conception of the figure presupposes the human being, as a spirit that conceives, but also as a spirit that engenders. A new element enters man, to be named by him and thus known, but also recognised.” (Jünger, op. cit., §113)
This spirit that engenders, who is, where the construction of the figure is concerned, the artist, works on the threshold of discursiveness, that is to say, as it engenders it is itself engendered: I am what I see and what I see is me. To allow oneself to be entered by that new element means not only to recover intuition, but is also the condition for the formation of figures: it means to simultaneously create the world and oneself, with one’s body becoming the medium for the birth of the new, the place of the unexpected, the place of revelation. The figures thus engendered correspond to the tension of differentiating the undifferentiated: the patch, the figure’s prime mover and first perceptive sign, displays the effort of knowing and sorting out the formless. It has to do with tearing a name out of what is nameless, tearing a figure out of what is indistinct: “every image, every phenomenon in its imagistic and symbolic language, is a case apart, a delimitation from the undifferentiated” (Jünger, op. cit., §108). This delimiting action amounts to the discovery of the individual, of the singular, of the unique, to the birth of multiplicity. Only out of confrontation with multiplicity can emerge the unity of the singular case, and only through confrontation with heterogeneity one can become aware of oneself: at the limit, the figure is a variation of that same undifferentiated.
But the figure is simultaneously a synthesising movement, and hence a world: its finest presentation is the human body, which is not only the mediator par excellence of all figures, but also their source and destination. In the words of Filomena Molder: “the works themselves ask, suggest and demand a certain movement, a certain mood form their contemplator, which appears only in the most depurated sense, in relation to the work’s spatial essence, that is to say, in relation to the place of the space consistent with the contemplated work. It is always a matter of the work’s demands, never of point of view” («Notas de leitura sobre um texto de Walter Benjamin», Matérias Sensíveis, p. 19). Work and figure are somewhat equivalent here, because we believe that the figure is a work. The “place of the space” is a consequence of the figure’s irruption: its birth corresponds to an inaugural gesture, a suspension of time and a demarcation in absolute space. The figure, like the work of art in general, is the action of making space perceptible and time sensitive. Another aspect of the proximity we are describing here is the autonomy, expressed in the form of demand, of the figure: the individual’s subjectivity is not taken into consideration; it is the figures’ demands that matter. It is them that determine the body’s place in space, the movements, the sensitive dance, on pain of, should their demands not be satisfied, sinking into profound muteness and invisibility.
Another aspect that must be highlighted is that the construction of the figure is not directed by a choice, since it is a direct response to a need for orientation: in Jünger’s fine comparison (op. cit., §88), figures are like a kind of compass that is only useful during the journey: it shows where the North is, it orients you, but does not tell which way to take.
“In the case of the figure, not only do contours tend to become blurry, but the very consciousness that faces them is less present. One approaches a deeper knowledge, closer to presentiment foreboding premonition – a kinship that lies in the nature that configures, rather than in configured nature.” (Jünger, op. cit., §128).
The abovementioned near-absence stresses the direct contact between the figure and whatever it figures, presents or represents. In comparison with language, it is known that the figure runs deeper, since it is made of the same ingredients as what it represents. That is the reason it is possible to perform transitions in which the elements fit together, instead of belying or contradict each other, and that is why Jünger says that after a while the figure’s contours tend to blur: the figure’s maximum potency corresponds to its evanescence.
Let us return to Balzac: “You are looking for a picture, and you see a woman before you. There is such depth in that canvas, the atmosphere is so true that you can not distinguish it from the air that surrounds us. Where is art? Art has vanished, it is invisible!” (Balzac, op. cit., p. 68).
It is a paradoxical situation: truth in art, like depth in the figure, amounts to its annulation: it intrudes into the facts of the world, becomes a fact of the world, a space turned conscious. The fact that the air can flow through the figure’s body is an indication that the figure’s power lies in a superior type of vision, a power that is exerted over everything that exists: there is only one power similar to this one: the power of naming. The fact that the figure does not appear in the universe, that it cannot be taken and integrated into a unifying discourse, means that the figure is the prime manifestation of that same universe: it is a matter of transforming cosmic and metaphysical power into tangible, sensitive, measurable reality, part of the field of vision and perception.
“The cosmic depth and the inexhaustible depth of Man are but one: matter, spirit, prodigy, sea, forest, light, sun, desert and any other name you may wish. There are no differences or qualities there. Number, thinker, height, depth, understanding no longer mean anything…” (Jünger, op. cit., §122)
The fact that a relationship can be established between all things does not mean that everything is equal to everything: by means of human ingenuity the new takes place, the strange may happen. But the correspondence defined here concerns the possible transitions between elements, and how diversity is found in this depth shared by man and the cosmos: the multiple finds and recognises itself in the ONE. The same applies to works of art: it is possible to perceive a “genetic agreement between the orientation of the body, the movements of the hand, the direction of the artist’s eye and its effect on the one who contemplates: the picture, the drawing, the Chinese painted silk, the wall painting, the fresco all call to themselves, in metaphysical relationships, a form of looking, a place, which cannot be arbitrary” (Maria Filomena Molder, op. cit., p. 20).

BIBLIOGRAPHY

Balzac, Honoré, A obra prima desconhecida, [Le chef-d’oeuvre inconnu, 1831], Lisboa: Ed. Vendaval, 2002
Didi-Huberman, Georges, La peinture incarnée suivi de Le chef d’oeuvre inconnu par Honoré de Balzac, Paris: Les éditions de Minuit, 1985
Jünger, Ernst, Type, Nom, Figure [Typus, Name, Gestalt, 1981], Paris: Christian Bourgeois Ed., 1996
Molder, Maria Filomena, Matérias Sensíveis, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999

*text published in the catalog from the show "Corpo Intermitente", Museu de Angra do Heroísmo,Açores, curated by João Silvério and produced by FLAD

Notas sobre o conceito de figura*





“Toda a figura é um mundo, um retrato cujo modelo surgiu numa visão sublime, tingido de luz, designado por uma voz interior, apontado, desnudado por um dedo celeste que mostrou, no passado de toda uma vida, as fontes da expressão.”

H. Balzac, A obra-prima desconhecida, p. 38


Balzac nunca teve como objectivo descrever qualquer tipo de quadro metafísico sobre as obras de arte, ainda que resulte do seu texto uma das mais poderosas apresentações do demónio (no sentido grego de ‘daimon’) da arte. E este tem, sem dúvida, origem num plano que não se atém à matéria, aos objectos, às experiências puramente sensíveis. Trata-se de um plano que extrapola o dado: a pura experiência sensível não lhe é suficiente e o seu movimento é o de uma peculiar exorbitação. Ainda que, como Kant tão bem reconhece, essa seja a tendência ou vocação natural da razão humana, em termos artísticos corre-se o risco da anulação da própria obra de arte, da figura, da mancha, do objecto.

Neste mesmo texto, Balzac, pela voz do mestre pintor que teima em não desvendar a sua obra aos amigos, diz: “A obra que tenho lá em cima aferrolhada é uma excepção na nossa arte; não é uma tela, é uma mulher!” Esta metamorfose da pintura em carne, da matéria de arte em matéria de vida, apresenta perigos: zona de suprema confusão onde aquilo que é não parece e o que parece não é. Uma desconfiança que se traduz em desconforto estético: a tese é de que qualquer obra de arte esconde uma espécie de génio maligno que está sempre a enganar, que continuamente prega partidas perceptivas e impede a visão da superfície. Mas as razões da desconfiança transformam-se nas razões do louvor: coroa de espinhos e de glória. Parecem ouvir-se ecos de Platão quando, na República, apresenta as razões da não admissibilidade dos artistas na sua cidade e o seu discurso condenatório se transforma numa das mais louváveis exortações aos poderes da arte. Ou seja, este génio é maligno, mas, simultaneamente, criador, portador do poder da configuração da matéria em símbolo, em signo, em experiência, em conhecimento.

A formulação balzaquiana é uma exigência, para muitos incompreendida e injustificada, de que a obra de arte não pode ser só mais um objecto, mas que tem de ser uma matriz, modelo ou retrato — um mundo, como escreve Balzac. Além de ser um imperativo moral, trata-se de uma exigência de relação com o mundo que encontra no conceito de figura a sua melhor expressão. A relação entre figura e mundo, e é esta relação que importa explorar, corresponde ao esforço de tornar visível, um esforço que integra não só o espanto das coisas existirem, como o espanto de serem como são. É do prestar contas a este espanto que se alimentam as artes.
A exigência, própria daqueles para quem os objectos esteticamente qualificados são momentos de contemplação, é a da fuga ao gesto desnecessário, fortuito, desenraizado, ao arabesco construído sobre o acaso. A relação da figura com o mundo é a do reconhecimento do característico, do próprio, por isso o mundo é o seu lugar de ressonância. Trata-se da transformação do mundo em qualquer coisa identificável, isto é, uma laboriosa organização do campo visual.

Não é uma relação de estrita representação — o actor representa: está em vez de…, com uma máscara faz-se passar por… —, mas de um lugar de descoberta. Tal como os nomes não são mais que chaves de entrada dentro das coisas, as figuras são gestos que, sob um fundo indeterminado, informe, delimitam, reconhecem, intuem zonas de comunidade, de troca.
Diz Jünger: “«Intueor» é um verbo que os Antigos não conheciam senão na sua forma passiva e através das suas causas. Só depois vem a denominação: as coisas não transportam o seu nome, os nomes são-lhes conferidos. O mundo dos nomes distingue-se do das imagens: não é mais que um reflexo.” (Tipo, Nome, Figura, §24)

A figura é, assim, a apresentação ou, se se preferir, a materialização da intuição: nas tintas de uma tela, nos traços de um desenho, na madeira ou ferro de uma escultura. E o tal sentido antigo de intuição — o ser-se afectado por, o deixar-se marcar por — coloca entre parêntesis a actividade configuradora do espírito humano e transforma, por momentos, todo o conhecimento em reconhecimento. Este louvor a uma certa passividade do sujeito transforma-se em relação de descoberta daquilo que emana das próprias coisas. É como se, deste ponto de vista, o interesse fosse a visão — e intuir é, de algum modo, uma forma de visão — das coisas elas mesmas, nas suas formas mais caóticas, informes, desorganizadas, intocadas pela racionalidade ou integradas no espírito sistemático, isto é, a intuição como contacto com o antes-do-nome, como visão à luz do meio dia, sem sombras, sem lastro. Seguindo Jünger, os nomes são reflexos, sombras das coisas, acções humanas; já as imagens estão mais próximas da fonte. E imagem é, aqui, o ser-figura daquilo que se vê: deixa o teu corpo projectar a luz e as sombras para que eu te veja, para que eu te reconheça, para que tu sejas.

“A concepção da figura pressupõe o ser humano, como espírito que concebe, mas também como espírito que engendra. Um elemento novo penetra no homem, mas para ser por ele denominado e assim conhecido, mas também reconhecido.” (Jünger, op. cit., §113)
Este espírito que engendra, no caso da construção da figura, o artista, trabalha no adro da discursividade, ao mesmo tempo que engendra é engendrado: sou aquilo que vejo e o que vejo sou eu. Deixar-se penetrar por esse tal elemento novo é não só recuperar a intuição, como é condição da formação de figuras: simultaneamente cria o mundo e cria-se a si mesmo e o seu corpo é medium do nascimento do novo, lugar do inesperado e da revelação. As figuras por si engendradas correspondem à tensão de diferenciação do indiferenciado: a mancha, primeiro operador da figura, é o seu primeiro sinal perceptivo, apresenta o esforço de conhecimento e de descriminação do informe. Trata-se de arrancar o nome ao que não tem nome, a figura ao indistinto: “toda a imagem, todo o fenómeno na sua linguagem imagética e simbólica, é um caso à parte, uma delimitação a partir do indiferenciado” (Jünger, op. cit., §108). Esta acção de delimitação corresponde à descoberta do indivíduo, do singular, do caso único, ao nascimento da multiplicidade. Só no contraste com a multiplicidade nasce a unidade do caso singular, é através do contraste com a heterogeneidade que se dá conta de si: no limite, a figura é uma variação desse mesmo indiferenciado.

Mas a figura é simultaneamente movimento de síntese, por isso é um mundo: a sua melhor apresentação acontece com o corpo humano, que é não só o mediador por excelência de todas as figuras, como a sua origem e destino. Escreve Filomena Molder: “são as obras, elas mesmas, que solicitam, sugerem e exigem um certo movimento, uma certa disposição ao contemplador, que aparece unicamente no sentido mais depurado, relativamente à essência espacial da obra, isto é, relativamente ao lugar do espaço consequente com a obra contemplada. Fala-se da exigência da obra, nunca em ponto de vista” («Notas de leitura sobre um texto de Walter Benjamin», Matérias Sensíveis, p. 19). Faz-se aqui uma equivalência entre obra e figura, por entendermos ser a figura uma obra. O “lugar do espaço” indicado é consequência da irrupção da figura: ao seu nascimento corresponde um gesto inaugural, uma suspensão do tempo e uma demarcação do espaço absoluto. A figura, como a obra de arte em geral, é a acção de tornar perceptível o espaço e sensível o tempo. Outro aspecto da proximidade que aqui se desenha, reside na autonomia, expressa sob a forma de exigência, da figura: a subjectividade do sujeito não é tida em conta, o que há a honrar são as exigências das figuras. São elas que determinam o lugar do corpo no espaço, os movimentos, a dança sensível, sob o risco de, caso não se atenderem os seus pedidos, se afundar numa profunda mudez e invisibilidade.

Outro aspecto a salientar é que a construção da figura não é regida por uma escolha, pois é uma resposta directa a uma necessidade de orientação: usando a bela imagem de Jünger (op. cit., §88), as figuras são como uma espécie de bússola que só serve para o trajecto: aponta o norte, orienta, mas não determina o caminho.

“No caso da figura, não só os contornos se tendem a apagar, mas a própria consciência que os encara é menos presente. Toca-se num saber mais profundo, mais próximo do pressentimento — um parentesco que reside na natureza que configura mais que na natureza configurada” (Jünger, op. cit., §128).

Esta quase-ausência aqui sublinhada destaca o contacto directo que a figura estabelece com aquilo que figura, que apresenta ou representa. Quando comparada com a linguagem sabe-se que a figura vai mais fundo, por ser construída através dos mesmos ingredientes daquilo que figura. Por isso se podem fazer transições e os elementos ajustam-se, não se desdizem ou contradizem. Jünger afirma que a partir de certo momento os contornos da figura se tendem a apagar: ao máximo poder da figura corresponde o seu desvanecimento.
Voltemos a Balzac: “Estais diante de uma mulher e procurais um quadro. Há tanta profundidade nesta tela, o ar nela é tão verdadeiro, que já não podeis distingui-lo do ar que nos rodeia. Onde está a arte? Perdida, desaparecida” (Balzac, op. cit., p. 68).

A situação é paradoxal: a verdade em arte, tal como a profundidade na figura, corresponde à sua anulação, imiscui-se com os factos do mundo, faz-se facto do mundo, espaço tornado consciente. Que o ar possa correr por entre o corpo da figura indica que o poder desta reside num tipo superior de visão, um poder que se exerce sobre tudo quanto há: só se conhece um poder próximo deste, que é o da nomeação. Dado a figura não aparecer no universo, não estar disponível para ser colhida e integrada num discurso unificador, ela é a primeira manifestação desse mesmo universo: trata-se da transformação do poder cósmico e metafísico numa realidade tangível, sensível, mensurável, elemento do campo de visão e percepção.

“O fundo cósmico e o fundo inesgotável do homem não são senão um: matéria, espírito, prodígio, mar, floresta, luz, sol, deserto e qualquer outro nome que se queira. Lá não existem nem diferenças, nem qualidades. Número, pensador, altura, profundidade, entendimento já nada significam…” (Jünger, op. cit., §122)

Que entre tudo se possa estabelecer uma relação não significa que tudo seja igual a tudo: através do engenho humano o novo tem lugar, o estranho pode acontecer. Mas a correspondência aqui estabelecida diz respeito às transições possíveis entre os elementos, e o modo como a diversidade se encontra nesse fundo que o cosmos e o homem partilham: o múltiplo descobre-se, reconhece-se no UM. Com as obras de arte acontece o mesmo, percebe-se um “acordo genético entre a orientação do corpo, os movimentos da mão, a direcção do olhar do artista e do seu efeito sobre aquele que contempla: o quadro, o desenho, a seda pintada chinesa, a pintura parietal, o fresco, chamam a si em relações metafísicas, ao longo do tempo diversas, um modo de olhar, um lugar, que não pode ser arbitrário” (Maria Filomena Molder, op. cit., p. 20).

BIBLIOGRAFIA

Balzac, Honoré, A obra prima desconhecida, [Le chef-d’oeuvre inconnu, 1831], Lisboa: Ed. Vendaval, 2002
Didi-Huberman, Georges, La peinture incarnée suivi de Le chef d’oeuvre inconnu par Honoré de Balzac, Paris: Les éditions de Minuit, 1985
Jünger, Ernst, Type, Nom, Figure [Typus, Name, Gestalt, 1981], Paris: Christian Bourgeois Ed., 1996
Molder, Maria Filomena, Matérias Sensíveis, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

Conversa com Daniel Blaufuks no Arquivo Fotográfico de Lisboa

Arquivo Fotográfico de Lisboa, Rua da Palma, nº 246, 1100-394 LISBOA

Vestigios, marcas e imagens - sobre Pedro Gomes








1. Proximidades e Afinidades
“A sensação esvoaça como um bando de pássaros, ofuscada pelo esplendor da mulher. E, do mesmo modo que os pássaros procuram abrigo nos esconderijos da folhagem da árvore, assim também as sensações se refugiam na sombra das rugas, nos gestos sem graça em insignificantes máculas do corpo amado, a cujos esconderijos se acolhem em segurança. E ninguém que passe se apercebe de que é aqui, nos defeitos e nas falhas, que se aninha a emoção amorosa fulminante do adorador.” Walter Benjamin, “Rua de Sentido Único”, in Imagens do Pensamento, Obras escolhidas de Walter Benjamin, org., ed. e trad. de João Barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.

Dedos que se cruzam, gestos que se cristalizam numa imagem e se transformam em momento de intimidade. Dois rostos aproximam-se um do outro e atingem num beijo uma espécie de zénite e máxima intensidade. Pequenos instantes perpetuam-se e ficam definitivamente registados num desenho que, contrariamente a todas as expectativas, se impõe como uma evidência. Tratam-se de imagens básicas e fundadoras da vida emocional e volitiva de cada ser humano que, quando vistas a uma luz diferente, se transformam em momento de pausa, de recolhimento. Não o recolhimento da experiência religiosa, antes o recolhimento próprio dos que vêem o fundo originário de um beijo que se dá, da palavra segredada ao ouvido ou do encontro carinhoso entre duas mãos.
Nesta nova série de trabalhos de Pedro Gomes (Moçambique, 1972) os motivos nascem de imagens avulsas transmitidas pela publicidade e pelo cinema. Uma recolha que é um ponto de partida para uma reconstrução ou mesmo re-figuração dos elementos que se acumulam nas imagens veiculadas através dos placards publicitários e ecrãs. Estas imagens são o resultado de um processo colectivo de condensação: correspondem e são reflexo dos ideais e aspirações de uma determinada comunidade, num determinado tempo.
Quase se poderia dizer que na série “Contacto” de Pedro Gomes se assiste à transformação desses produtos imagéticos da sociedade de consumo em momento contemplativo. Este momento significa que o artista se transforma em instância de revelação desses esconderijos que Benjamin nos fala. Pega na superfície plana que os rostos quase perfeitos dos personagens aparentam possuir e obriga-se, e obriga-nos, a uma alteração do olhar. Uma alteração tal que a imagem simples e sedutora fica metamorfoseada. Nestes desenhos, onde o ferro quente fere o papel, assiste-se à transformação do rosto num local por explorar imenso e desconhecido. Não por se acreditar que o rosto é uma paisagem, antes por ser a única forma de dar a ver aquilo que num rosto ou num gesto se esconde, esses espaços mínimos onde as sensações se amontoam e residem. Estes locais de escondimento são as tais falhas que conferem a individualidade de cada um.
A pele que cobre os ossos, músculos, tendões e ligamentos de um rosto tem nos seus defeitos, rugas e marcas aquilo que o faz ser único e irrepetível. Podemos chamar a isto a sua expressão própria, esse elemento inalienável que pode encontrar parecenças, mas nunca uma igualdade – aqui reside a sua individuação. E parecem ser estes elementos que Pedro Gomes quer destacar e para os quais exige um olhar atento que guarde na memória os infindáveis caminhos que percorrem e marcam as superfícies. Parece contraditório, mas esta atenção ao particular revela-se capaz de agregar e subsumir todas as proximidades e elemento afins. Por um lado, um mergulho profundo na singularidade de cada caso, por outro a criação de territórios (rostos, mãos, lábios) e sem género, despossuídos de identidade individual que agregam a seu redor todo um universo de possibilidades.

2. A escrita da imagem
“Só quando copiado o texto comanda a alma de quem dele se ocupa, enquanto o mero leitor nunca chega a conhecer as novas vistas do seu interior, que o texto – essa estrada que atravessa a floresta virgem, cada vez mais densa, da interioridade – vai abrindo: porque o leitor segue docilmente o movimento do seu eu nos livres espaços aéreos da fantasia, ao passo que o copista se deixa comandar por ele. A arte chinesa de copiar livros era garantia, incomparável, de uma cultura literária, e a cópia uma chave dos enigmas da China.” W. Benjamin, op. cit.

A proximidade destes trabalhos de Pedro Gomes com a escrita vem do próprio processo de trabalho, do manuseamento que faz na construção dos seus trabalhos e do modo como a mão que constrói formas se deixa, quase cegamente, levar pela figura que quer construir. O ferro quente fere o papel e essa ferida, voluntariamente infligida no corpo daquilo que há, é análoga à escrita e à relação que a mão, deambulando pelo papel branco, possui com o objecto da escrita. Basta pensar em todas as imagens que a nossa cultura reservou para o acto da escrita: a mão que cobre o papel de arabescos, a caneta que marca a superfície a princípio lisa e sem mácula e a deixa irreconhecível, etc. Para o que aqui nos interessa perceber, deve dizer-se que o modo particular de desenhar de Pedro Gomes pode ser entendido como uma espécie de escrita cega sem objecto determinado. Uma escrita que se deixa tomar e levar pelos ritmos formativos e vitais daquilo que a sua visão capta e a mão agarra.
Não são elementos novos nos trabalhos deste artista, pode detectar-se uma continuidade relativamente ao modo particular com que aborda o papel e os diferentes materiais. Se pensarmos nas suas montanhas ou nos rostos queimados de “Linha de Fogo” (2000) percebemos que o seu modo de desenhar atenta sempre à natureza particular daquilo com que lida e estabelece uma relação quase violenta com a matéria própria do seu ofício: queima, rasga, oculta, fere. Um ‘modus operandi’ negativo e redutor de eliminação do excessivo.
Em todos os casos e com qualquer dos métodos, tratam-se sempre de imagens pertencentes ao território dúbio da figuração (felizmente que depois do expressionismo já todos sabemos que a figuração possui um alcance mais vasto que o que a tradição anterior nos fazia crer.) Este território cujas fronteiras são inexistentes, mas que possui um limite definido pela expressividade própria dos materiais com que se tece, é, no caso do trabalho de Pedro Gomes, alargado: a escala das imagens é alterada até ao ponto da sua quase desfiguração e de um quase irreconhecimento onde a fronteira entre reconhecer uma imagem e a sua total indescernibilidade é ténue – um local cujos contornos são semelhantes aos do local onde a linguagem se transforma em silêncio e mudez.
Com algumas ressalvas pode falar-se de uma escrita da imagem em que esta está a ponto de se transformar em verso – a sucessão dos traços e a justaposição das linhas criam um universo de sentido onde a palavra é dispensada, mas presente e actuante. A metáfora que aqui se está a tentar criar diz respeito à possibilidade de um poema feito de imagens, sem palavras, apenas manchas e feridas a cobrir o papel. São diagramas pictóricos que se transformam nas marcas de uma caligrafia ainda por descobrir: é como se a cada composto de imagens pudesse corresponder uma realidade linguística e poética.
Trata-se de uma situação próxima do abismo, face ao qual o espírito fica irremediavelmente enleado em elementos que dificilmente domina e as dimensões do interior e do exterior ficam definitivamente misturadas e indescerníveis. Chegados a este ponto torna-se impossível distinguir entre uma imagem e um verso, entre uma cor e uma palavra, entre a cadência pictórica e o ritmo linguístico. Entra-se num plano onde o único acesso só é possível através da metáfora, um território onde o operador da visão é analógico: tudo é “como se”.
A visão une-se à imaginação por ser esta a única instância das forças da inteligência a poder fornecer as condições de legibilidade do visível. No caso onde este parece fugir a qualquer convenção só a imaginação, através de uma actividade intensa da criação de analogias e metáforas, possibilita o olhar: o procedimento analógico passa a ser condição da inteligibilidade do visível. Com estes novos trabalhos de Pedro Gomes estamos nesta situação.

3. A imagem publicitária e o desejo: a armadilha contemporânea.
“Moinho de Orações. Só a imagem que se oferece à vista alimenta e mantém viva a vontade. Já a mera palavra pode levá-la, quando muito, a inflamar-se, para depois continuar a arder em lume brando. Não há vontade plena sem a percepção precisa da imagem. Não há percepção sem activação nervosa. E a respiração é o seu factor de regulação mais preciso” W. Benjamin, op.cit.

Parece ser condição da contemporaneidade o viver rodeado por imagens publicitárias. São imagens com estratégia: incitam o desejo, promovem determinados produtos ou formas de vida que passam a ser motivo de ambição. Perante elas o homem das cidades, rodeado que está por uma imensidão de apelos e motivações, deixa o seu lugar habitual de cidadão ou transeunte, para se transformar num animal manipulável pronto a ser capturado. Presa da sua própria vontade, caracterizada pela infinitude de objectos que a preenchem e inquietam e pelo sofrimento que está sempre a promover, o ser de desejo que é o homem afunda-se numa rede de continuas necessidades e quereres. Com estes constrói um mapa da sua própria natureza que se revela labiríntico e sem saída: um emaranhado complexo de caminhos que não levam a lugar algum.

“Todo o querer procede duma necessidade, isto é, duma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para um desejo que é satisfeito, dez, pelo menos, são contrariados; além disso, o desejo é demorado e as suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta e é, parcimoniosamente, medida.” (Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, I vol., §38)

Estas palavras são reveladoras da armadilha que o homem cria ao próprio homem. Parece ser condição da nossa pós-modernidade o estar sempre prestes a sucumbir à tentação do desconhecido sedutor imposto pela máquina do negócio, da venda e do marketing. Espírito do tempo ou natural tendência do humano, o que dá que pensar é esta sempre existente tendência ao infinito, ao nunca completo e infindável espaço pelo qual o desejo se estende.
Neste encontro de mãos e lábios, as tensões próprias das imagens de grande e fácil consumo são apaziguadas – transformam-se no tal momento contemplativo – e surgem como paisagem sedutora e pacificadora. Aqui já não estão em causa géneros determinados ou indivíduos. A imagem cria-se e desdobra-se num plano que é o seu grau zero e no qual é a maior generalidade que se pressente. Dirige-se à maioria e ambicionam a generalização. Quer ser de todos e quer ser todos.
Nestes papéis queimados estão todos os homens vivos – isto é, todos os beijos e todas as mãos estão ali presentes. Esta espécie de metáfora permite ao artista não individualizar o sujeito: o que traz consequências à representatividade particular que estes trabalhos parecem mostrar. Os seres presentes deixam de ser indivíduos e transformam-se numa espécie de categorias visíveis – é como se aquelas figuras valessem por todos os que vivem, já estiveram vivos e os que hão-de vir. Com o nome tradição recolhe-se uma herança e deixa-se uma herança.
Está-se num terreno em que a intimidade e o desejo são construídos com base no exterior, numa espécie de derramamento nas ideias de consumo e satisfação que o mundo constrói e velozmente transmite – tudo se passa como se isso se conseguisse colar de tal modo ao corpo que passa a ser uma espécie de segunda pele, mais uma sua forma tão característica como todas as outras: um traço seu. A partir de determinado momento – que não conseguimos determinar qual – já não se sabe o que é originário e o que é construído com base na interacção continua com os haveres e ritmos do mundo. Redefine-se e redesenha-se a identidade, o género, o desejo.

“Poder-se-ia dizer: Aqui está uma imagem, mas não podemos dizer se está certa ou errada até sabermos o que é suposto ela dizer. Agora, a imagem deve lançar as suas sombras no mundo.” Ludwig Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916

Parecem ser estas sombras que Pedro Gomes quer possuir e estabilizar numa forma, ou seja, quer conquistar um instante que permita a compreensão. Não estão em causa críticas a um determinado sistema ou estado de coisas, antes é como se o artista fosse aquele etnógrafo (veja-se Hal Foster, “The Artist as Ethnographer”, The Rerturn of the Real) que assume os desejos, angústias e características do seu tempo como a matéria da sua própria criação – mas poderá ser de outro modo?
Que os gestos com que o artista rasga o papel estejam em continuidade com os gestos quotidianos, parece ser um facto que desde que há arte e artistas se tornou claro. A descontinuidade do trabalho artístico reside na capacidade da criação de sentidos a partir do existente. O elemento perturbante, porque novo, é que esse gesto se constitua não como crítica ou disjunção, mas que venha apor e devolver ao real as imagens por ele próprio produzidas. Uma espécie de retorno, cruel e por vezes desumano, em que se verificam as assimetrias produzidas pelo homem enquanto agente de criação e enquanto prolongamento de um corpo social e biológico que o define.
Em “Contacto” existe esta consciência, porém ela é transformada em gesto redemptor. O horror da máquina fazedora de desejos, incompletude e sofrimento – a actividade publicitária e os ideais impostos através de imagens dominantes – é, usando como método a observação e o trabalho topográfico de recolha das características e acidentes dos terrenos onde se move, anulado. O ânimo entra não em colapso improdutivo, mas renuncia a qualquer movimento brusco ou desatento. Trata-se quase de um exercício ascético: o desejo é anulado e com ele o futuro – não desejar significa não exigir ao tempo futuro que venha, mas sim viver num ponto do tempo presente que se prolonga e se torna extenso.


5. Perturbações da escrita da imagem
“A escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma existência autónoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos reclamos e submetida às brutais heteronomias do caos económico. É esta a severa escola da sua nova forma. Quando há séculos, ela começou a deitar-se transformando-se de inscrição na vertical em caligrafia que repousava na inclinação da estante, para finalmente encontrar no livro impresso a sua cama, hoje recomeça, igualmente de forma lenta, a levantar-se do chão. Já o jornal se lê mais na vertical do que na horizontal, e o cinema e o reclamo forçam definitivamente escrita a assumir uma verticalidade ditatorial. E antes de os nossos contemporâneos poderem abrir um livro já um denso turbilhão de letras em movimento, coloridas, concorrentes, lhes caiu diante dos olhos, tornando muito mais remotas as possibilidades de eles se concentrarem no silêncio arcaico do livro. As nuvens de gafanhotos da escrita, que hoje já encobrem o sol do pretenso espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão mais densas a cada ano que passa. As renovadas exigências da vida dos negócios vão mais longe.” W. Benjamin, op. cit.


Re-fotografar, re-desenhar, re-capturar são algumas características dos trabalhos de Pedro Gomes. Neste processo de fazer um certo tipo de imagens, que ficam indelevelmente guardadas na memória, realça-se um poder evocativo. O espaço em que trabalha é um espaço virtual, sem dúvida, mas que transporta consigo as marcas da vida e dos locais onde ela é vivida. Num processo, levado quase ao absurdo, de prolongar momentos que pela sua natureza são inefáveis, instáveis e, na maior parte das vezes, irrepetíveis, este artista consegue encontrar um refúgio das exigências da vida dos negócios. Não se trata de fugir a um enquadramento temporal, nem de tentar criar uma ilusão de paraíso onde as expectativas são cumpridas e a estrutura de desejo apaziguada. Antes construir um local onde os tais habitantes das metrópoles encontrem o modo indicado da visão e da leitura das imagens.
O processo de verticalização da escrita que Benjamin identifica é acompanhado por uma alteração das condições de inteligibilidade e leitura dos visíveis. Essa verticalização é acompanhada por um acto de tornar mais público, mais sujeito e exposto as intempéries dos olhares e dos ritmos.
Seria interessante perceber, ainda que este não seja o local, de que modo a monumentalização das imagens e das palavras, que inundam a paisagem urbana, contribuí para uma redefinição não só da vida social, como da própria intimidade de cada um. Face a elas o olhar dirige-se para cima, para um local em que o seu aparelho perceptivo tem dificuldade em permanecer e aquilo que é registado é uma sensação de quase euforia: não existe nada de transcendência, apenas o adensar do conjunto de percepções e desejos. É como se estas imagens materializassem uma espécie de ideal de felicidade que a todo o custo se quer alcançar.
A suavidade destes trabalhos de Pedro Gomes é sinal da sua origem. Não se tratam de desenhos românticos, mas conseguem através da dureza que os origina fixar-se num local onde o corpo afectivo é reforçado: as energias primárias são trazidas novamente para primeiro plano, longe das máscaras com que o progresso e a suposta civilização, positiva e materialista, lhe cobrem o corpo. “Contacto” é, deste modo, um conjunto de desenhos cuja composição, um tecido esburacado por um ferro quente, é uma imagem para falar do carácter incompleto e descontinuo dos nossos desejos e emoções.
6. Conclusão.
“A possibilidade de cada caso individual esclarece-nos acerca da essência do mundo.”
“No facto de haver uma regra geral, pela qual o músico pode extrair a sinfonia da partitura, através da qual se pode deduzir a sinfonia da estrias do disco fonográfico, e segundo a primeira regra de novo a partitura, nisso justamente consiste a semelhança interna destas estruturas aparentemente tão diferentes. E essa regra é a lei da projecção, que projecta a sinfonia na notação musical. É a regra da tradução da notação musical para a linguagem do disco fonográfico.”
L. Wittgenstein, Tratactus Logico-Philosophicus

Este ‘fenómeno’ que Wittgenstein apresenta continua a constituir, em parte, o coração do mistério da representação. Estejamos nós a falar de fotografia, de pintura ou outro modo de representação qualquer (a própria imagem projectada ou vista na televisão), como no caso destes novos trabalhos de Pedro Gomes, os mecanismos precisos que possibilitam a representação e a tradução dos objectos em imagem não são facilmente dominados – se é que algum dia esse domínio pode acontecer. Em todos os casos as imagens representam uma dada realidade, uma pessoa ou objecto. Conseguem-no em virtude da partilha, com o representado, de um ou mais elementos – ou seja, posso reconhecer o meu cão numa fotografia porque entre ele e a sua imagem captada fotograficamente existem elementos comuns: a certos elementos na fotografia chamo os olhos do meu cão, o seu nariz, a sua cabeça, etc. (veja-se sobre esta questão o livro de E. H. Gombricht, Art and Illusion).
Mesmo que sob o nome de iconografia ou convenção se pretenda explicar em profundidade este processo, existe uma pergunta que subsiste devido à sua pertinência e natureza irresoluta: trata-se simplesmente de uma ilusão? Ou de um processo histórico de estabelecimento de convenções que nos permitem viajar entre a representação e o representado e estabelecer afinidades e identidades? Porque não é devido à partilha de atributos biológicos que posso reconhecer o meu cão numa fotografia ou num vídeo (as imagens não são o cão), mas o facto é que se dá uma operação inegável de reconhecimento porque uma certa comunidade é estabelecida entre as duas realidades distintas. O cão não é composto na vida real pelos elementos que constituem uma imagem fixada em película, do mesmo modo que às reacções químicas que possibilitam a fotografia não corresponde nada na vida real. Ou será que corresponde? O certo, e esta é uma exigência lógica, é que tem de existir um elemento comum para que as transferências sejam possíveis.
Wittgenstein resolve bem estes paradoxos ao transformar o “quê” do mundo no seu “como”. Expliquemos: ao que há só temos acesso através das suas características visíveis e descritíveis, ou seja, que é no modo particular de expressão de cada coisa que a verdadeira natureza de um rosto se deixa ver.
No caso da série de trabalhos “Contacto” de Pedro Gomes parece que o caminho que ele pretende traçar é o que começa nessa estrada que um rosto e um gesto possuem para aí descobrir toda a potencialidade expressiva e figurativa que neles habita. Parecem trabalhos sem género e sem filiação evidente, mas podem inscrever-se numa lógica de atenção e mergulho no real e nas imagens que continuamente rodeiam e formam o quotidiano. Neste caso, parece que se está face ao gesto daquele que quer seguir o rasto que as coisas deixam – aqui trata-se de perseguir as pegadas, as marcas e os vestígios que as imagens massivamente consumidas deixam na memória e de perceber os sinais que imprimem na construção do desejo e da afectividade.

este texto, inédito, foi escrito a propósito a exposição de Pedro Gomes "Contacto", no Círculo de Belas Artes de Coimbra em Janeiro de 2005