“A indústria é uma merda, é o meio que é grandioso” disse Lauren Bacall e esta frase é o selo que fecha o livro de Tacita Dean chamado “Film”. Este, livro publicado por ocasião da instalação da artista inglesa na famosa sala das Turbinas na Tate Modern em Londres, é dedicado, segundo escreve a artista, não ao passado, mas é um livro para futuro. Portanto, este apelo, que é um grito e uma reivindicação, pela continuidade dos meios analógicos não é nostálgico, conservador ou ortodoxo, mas uma tentativa de conservar uma experiência humana. Portanto, “Film”, simultaneamente nome da publicação e da instalação, é um trabalho sobre a potencial perda da linguagem de um artista: trata de um filme acerca do filme.
Escreve Dean: “o objectivo deste livro: fazer que o filme seja apreciado enquanto filme, que o compreendamos e percebamos como um meio independente e insubstituível e que seja clara a perda incalculável que será para o nosso mundo cultural e social se deixarmos o filme desparecer. O filme e os seus correspondentes analógicos na fotografia, no som nas publicações. Este livro não acerca do passado, mas é sobre o futuro.”
A citação inicial de Bacall, simples e directa, toca no coração deste novo projecto desta artista: não se trata de celebrar só um meio, mas de mostrar que o filme (ou se se preferir a película) não é só um pormenor técnico, mas representa uma linguagem através um certo tipo de experiências podem ser pensadas, produzidas e experimentadas. Não, o digital não é a mesma coisa, tem outra sensibilidade, outro mundo e, num aspecto essencial para Dean, um outro tempo.
A instalação na Tate
Tacida Dean é a 12ª artista convidada pela Tate para ocupar um dos mais importantes e significativos espaços da arte mundial. O seu nome segue-se ao de artistas como : Lousie Bourgois, Juan Muñoz, Bruce Nauman, Olafr Eliasson ou Doris Saleco. A Sala da Turbinas, agora ocupada pelos ser fílmicos de Dean, já foi visitada por 26 milhões de pessoas e é um dos espaços de arte mais democráticos da arte contemporânea: o acesso é livre, sem qualquer bilhete, controlo ou tempo limitado de visita.
A dimensão monumental desta sala começou, segundo descreve a artista, por a assustar, até porque, como declarou ao “The Guardian”, “eu não sou conhecida por fazer trabalhos em escala monumental, por isso quando comecei a trabalhar para este projecto tive de fazer coisas que nunca antes tinha feito. A Sala das Turbinas é sobre o espectacular: e não há maneira de fugir disso. Por isso, pensei que tinha de fazer alguma coisa espectacular e não um filme de 48 minutos sobre um velho.”
Formalmente, esta instalação é uma projecção 35mm com a duração de 11 minutos. As imagens surgem numa gigantesca superfície monolítica de 13m colocada na parede do fundo da sala e que evoca o objecto misterioso e simbólico do mítico filme de Kubrick “2001 Odisseia no Espaço”. As imagens evocam os universos mágicos, alquímicos e misteriosos do cinema experimental e muitas vezes sugere a sua proximidade com a poesia visual surrealista onde se misturam imagens da natureza, com imagens do espaço arquitectónico da Tate onde o filme é projectado, com elementos geométricos cheio de cor a lembrar as pinturas ao estilo “De Stijl” de Mondrian, van Doesburg e os objectos de Rietvield e imagens da própria película cinematográfica. Tal como a artista descreve na publicação tratou-se de fazer um retrato do próprio filme o qual se transformou numa espécie de ideograma: “A sala das turbinas como uma película onde se junta o real e o imaginário no espaço mágico que é o cinema experimental.”
A especificidade da linguagem
Todo o discurso de Dean é uma tentativa de resgate da experiência do cinema, mostrando que essa experiência tem especificidades únicas próprias à linguagem e ao meio em que é formado. Escreve a artista: “o cinema feito com filme é muito diferente do cinema feito e mostrado digitalmente. No contexto da arte esta diferença é bem entendida, porque o mundo da arte aprecia a especificidade do meio desde a Renascença: os murais de Giotto são frescos, que foram pensados, feitos e vistos de um modo completamente diferente de uma pintura a óleo de Leonardo da Vinci; em arte percebemos que um esquisso não é uma aguarela e que um desenhos, não é um relevo; são feitos de maneira diferente e a experiência que temos ao vê-los e ao tocá-los é totalmente diferente. Podem partilhar o mesmo conteúdo, as mesmas imagens e até podem ser cópias um do outro, mas não são a mesma coisa. No entanto são sempre imagens. Por alguma razão existe uma cegueira cultural relativamente à diferença entre filme e digital […] Ambos são imagens, em alguns casos cópias um do outro, mas não são a mesma coisa — um é luz em emulsão e outro é luz através do pixel, e são pensados, feitos e vistos de modos totalmente diferentes.”
Estas diferenças são diferenças de expressão e determinam a natureza e a vida dos trabalhos que a artista faz, por isso para ela o filme de 16mm (com que habitualmente trabalha) não significa a escolha de um processo, mas é a linguagem que utiliza para poder falar, dizer, criar. O filme está para a artista como as palavras estão para o poeta: é a sua possibilidade de dizer, a sua linguagem possível, o seu meio natural de expressão. Diz Dean: “encontrei no filme de 16mm um meio com o qual fiquei imediatamente confortável e cresci com ele. O filme é o tempo tornado manifesto: o tempo com duração física — 24 frames por segundo, 40 frames em película de 16mm. […] O tempo nos meus filmes é o tempo dos próprios filmes.”
É verdade, e a artista reconhece-o, que o digital traz vantagens e introduz uma facilidade e um pragmatismo na construção dos objectos visuais que a utilização de película não permite. Mas não só, como diz a artista, “muita invenção e artifício surgiu destas limitações”, como para ela a resistência do material e as suas exigências são essenciais na forma de construção do seu trabalho: “eu necessito de resistência material às minhas ideias e é isto que mais tenho medo de perder. O meu processo é um trabalho incompreensível e anacrónico, tal como é qualquer processo artístico. O filme é o meu material de trabalho e eu preciso das coisas do filme, tal como um pintor precisa das coisas da tinta.”
E todo o discurso da artista, que se pode experimentar na projecção feita para a Tate, prende-se com as qualidades próprias, a personalidade ou, se se preferir, a poética da película cinematográfica a qual permite um tipo de experiência visual e sensível totalmente diferente. Perder a o filme significa perder não só essas experiências, com o potencial risco de desaparecimento de uma região da sensibilidade humana, como perder a proporção e objectualidade das imagens: “com a televisão e a internet perdeu-se a proporção das imagens e distorção tornou-se normal. A precisão do formato original parece totalmente irrelevante.”
A aura do objecto
Todos estes aspectos, sintetizados nas imagens sedutoras, poéticas, expressivas e muito impressionantes, projectadas no monólito da Tate permitem perceber estar em causa reconhecer que a experiência do filme é uma experiência aurática: uma experiência singular, única, que ocorre num lugar do espaço e num intervalo de tempo. E neste aspecto Tacita Dean mostra o filme como singularidade que não é possível substituir por um outra alegando ser mais ou menos a mesma coisa. Diz ela: “análogo significa equivalente e o digital não é análogo do analógico”
Uma singularidade da experiência artística que a artista apresenta como a singularidade própria da experiência com a arte: “os artistas […] preocupam-se com a singularidade e a aura dos seus objectos e com a sua presença nos espaços onde são mostrados. Quer seja uma fotografia em papel com nitrato de prata ou uma impressão digital, um filme de 16mm ou um vídeo digital, os artistas escolhem e compreendem muito cuidadosamente o seu meio.”