Sunday, December 13, 2009

Paradoxos Estéticos

O Renascimento […] conferiu à produção de objectos — desde sempre a verdadeira razão de ser do oficio do artista — uma investidura solene da qual só nos poderemos libertar rejeitando também o objecto. […] Ora, o objecto de arte apresenta-se, por uma ilusão necessária ou constitutiva, como portador de valores ou como um valor encarnado; por essa razão, ele apela irresistivelmente a tendências de natureza fetichista.” Robert Klein, L’éclipse de l’ouvre d’art, 1967

Esta afirmação de Klein toca num dos problemas mais intensos do pensamento contemporâneo acerca da arte: o do limite do discurso teórico, crítico e histórico. As múltiplas deslocações (conceptuais e ideológicas) que o discurso sobre a arte e os artistas tem sofrido não conseguiram ainda determinar a natureza do gesto artístico, nem traçar o lugar (que equivale a um ponto de vista) de onde se deve ver, experimentar ou julgar a produção artística.

Naquele texto Klein estava preocupado em mostrar o limite do impulso historicista, isto é, aquele impulso de olhar para cada objecto ou artista e ver nesses acontecimentos uma manifestação anunciada anteriormente. Para Klein os perigos deste espírito positivista residem no eclipse da obra de arte. Ou seja, trata-se do desaparecimento da obra como realidade que nunca se poderá inteiramente domar; objecto que, apesar de todos os esforços, permanecerá sempre misterioso e, nos seus aspectos mais essenciais e decisivos, incompreensível. Que a obra de arte apele irresistivelmente a tendências fetichistas (algo que, em certa medida, J. Beuys transforma em mote artístico: a obra é um totem e o artista um xamã) diz respeito não a uma sacralização da obra, mas à recondução dos gestos artísticos aos impulsos mais primitivos no humano.

Voltar a estas questões é pertinente não só porque se assiste a um esforço permanente em validar obras e artistas, mas porque essa validação é feita actualmente em termos de apologias políticas, sociais, antropológicas, etc … Quer-se uma arte que actue em domínios que não só lhes são estranhos, como inconvenientes. A confusão entre obra-de-arte, testemunho, comentário do presente, documento, prova, etc., é intensa e dela resulta uma espécie de negação do trabalho do artista como ponto de fertilidade e espanto permanentes. Aqui reside um paradoxo: quer-se uma arte que tenha consequências na vida (sem sentido lato) e, para isso, transforma-se a obra numa ferramenta controlada e manipulada pela inteligência, ou seja, sem mistério e banal: quebra-se a solenidade da obra (o seu isolamento e diferença relativamente aos demais objectos mundanos) e fica-se sem nada.

O apelo a tendências fetichistas não é de natureza romântica, mas insere-se na recuperação de critérios estritamente estéticos e artísticos no julgamento e na validação de obras e artistas. E este apelo diz respeito não a uma atitude reverencial face às obras, mas à sua inclusão numa esfera estética de autonomia (que é o seu domínio originário) a qual ultrapassa sempre a singularidade do juízo de cada espectador ou especialista.

O regresso aos critérios estéticos implica aceitar que em determinadas ocasiões só se pode ficar boquiaberto e dizer: “ah!”. Peter Zumthor fala em reacções viscerais (por vezes semelhantes a golpes desferidos na carne) que a boa arquitectura lhe provoca e que são essas reacções que lhe servem como critério de apreciação e distinção. E esta reacção física não diz respeito à construção de argumentos vitalistas ou organicistas enquanto categorias estéticas, antes dá conta que a experiência com a arte é, acima de tudo, uma experiência sentimental: é uma afecção ou perturbação da sensibilidade, do corpo, do ânimo. Com Zumthor, onde se podem ouvir ecos de Klein, recupera-se não só a singularidade da experiência com a arte, como se torna evidente que a boa experiência — aquela que acontece por ocasião da boa arquitectura, da boa arte, da boa poesia, da boa música, etc. — não é uma construção mental do sujeito, mas um acontecimento imprevisível e injustificável através do estabelecimento de relações causais. A causalidade em arte, reinante em certos discursos da psicologia, vale tanto como nada. Podem encontrar-se razões, motivos, mas não causas.

Não se quer com isto negar a inteligência inerente aos objectos artísticos, ou a validade e pertinência da expansão do seu campo: as obras são objectos de conhecimento, materialização de gestos de uma inteligência criadora e produtiva. Mas o modo como as obras e os artistas pensam uma questão e/ou actuam não é idêntico à política, à sociologia, à antropologia ou à filosofia. Podem estabelecer-se analogias, prolongamentos e zonas de contágio, mas é bom que sejam claras as distinções entre os diferentes domínios.

O argumento aqui apresentado é, em certa medida, uma apologia da estética como modo de compreender a experiência com a arte. E essa apologia está ancorada em duas evidências ou, se se preferir, perplexidades: primeiro que a arte não é um sistema e, segundo, nunca nenhum discurso esgotará aquilo que uma obra produz em termos das experiências ou discursos que provoca, ou seja, trata-se de um lugar de permanente dúvida e incerteza. Por isso, como diz W. Benjamin, a actividade crítica (e pode acrescentar-se teórica ou histórica) é uma actividade em situação de embaraço: o discurso crítico só pode descrever perplexidades e dúvidas, nunca certezas ou verdades.

Trata-se de um ‘perder o pé’ que obriga a encarar cada ocasião de contemplação estética (e estas ocasiões sabe-se possuírem as mais diversas fisionomias) como momento inaugural e inédito. Mesmo nos casos mais extremos da arte conceptual ou política trata-se sempre de uma experiência física: a sua intelectualização pode permitir, fugaz e momentaneamente, uma espécie de controlo ilusório do objecto, mas posteriormente a sua força-se esvai-se e ficam coisas estéreis, odres vazios.

Este movimento de regresso à experiência estética não significa a anulação do esforço de objectividade da inteligência relativamente à arte (até porque, como Kant tão bem percebeu, com a arte dá-se um alargamento do campo do pensamento), mas um dar-se conta que esse encontro não anula o mistério que é a condição lógica de existência de qualquer gesto artístico. Anular esse mistério é o que Klein chama eclipsar a obra, isto é, torná-la invisível, inoperante, morta. Trata-se de encarar toda a discursividade como possuindo um limite o qual se localiza no reconhecer que a certo momento o melhor é mesmo ficar calado e deixar que sejam os gestos expressivos e mudos a tomar o lugar das palavras e das categorias que pretensamente tudo colocam no seu devido lugar.

A investidura solene com que o Renascimento revestiu o trabalho dos artistas (e da qual somos inteiramente herdeiros), não significa um afastamento entre arte e vida, mas o reconhecimento de uma distância e abismo que sempre existirá entre a obra e o seu espectador o qual, sob o risco de se perder toda a arte, é preciso manter e respeitar. E esta é a fisionomia mais marcante da experiência estética: perceber que a obra é um outro que nunca se poderá plenamente alcançar; podem fazer-se esforços de aproximação e mediação, mas a estranheza não será anulada porque essa é a sua essência constitutiva.

reflexões sobre o cinema de pedro costa I


Vanda e Ventura enquanto heróis . Ou a ciência-ficção de Pedro Costa*

Nunca se sabe bem o que dizer de um cinema como o de Pedro Costa. A princípio parece ser uma espécie de anti-cinema: nega o texto, os actores, a produção e deposita nas mãos dos espectadores uma sequência de imagens (belas, sempre muito belas a lembrar as temperaturas, texturas e profundidades antigas) que não constituem uma narrativa tradicional, nem contam uma história. Também não é um cinema de tese ao gosto intelectual europeu, produzido para fazer demonstrações politicas, sociológicas, filosóficas ou poéticas, tal como não se situa na esfera do documental. Se fosse preciso sintetizar estes filmes isso só seria possível em termos da sua energia e, assim, ter-se-ia de dizer que estes filmes são um choque: sensível, cromático, sensual, ético, humano.

Pode pensar-se estar em causa um cinema político, porque tem todos os ingredientes para o ser: os personagens são imigrantes ou, como diz Jacques Rancière, deslocados, a acção passa-se numa bairro de lata, as pessoas consomem droga, vivem uma vida dura, demasiado dura. Mas depois não há policias, nem políticos, nem discursos sobre a pobreza, a globalização ou a integração..

O bairro das Fontainhas, bairro que Pedro Costa assume como um pequeno estúdio, não é a ilustração de uma situação socio-politica. Filmar as Fontainhas constitui um sinal da radical diferença desta cinema, porque esta escolha significa o acto de renuncia à composição de cenários para “poder contar histórias” (Rancière): e as que conta são as mais simples, cruas e directas, por isso, exigem tempo e espaços de pensamento. O bairro é para Costa o “espaço ideal para pensar”. E todos os seus gestos — lentos, muito lentos — restituem esse pensamento feito espaço: o plano fixo, aprendido com Ozu, e a certeza que “pode fazer-se um filme com uma lâmpada, um sofá e um ramo de flores” são o seu suporte. E é quando se perdem as certezas do suposto género a que pertencem estes filmes que começa o cinema de Costa, e ai, como diz Bénard da Costa, surpreendem-se filmes de rituais e mistérios

O plano fixo leva a que cada um individualmente descubra os movimentos e faça os travellings: porque não só “o movimento está na realidade e não na câmara”, mas tudo está sempre em movimento. A imobilidade é uma ilusão, por isso afirma “para mim não existem planos fixos.” E são as palavras e as presenças que introduzem variações à imobilidade aparente do plano e inscrevem acontecimentos nos corpos reais que a câmara capta. Não se trata de uma simples ideia de cinema-verdade, Pedro Costa ainda que tenha fé no cinema — e não em todo o cinema, mas naquele de Ozu ou dos Straub —, sabe que a realidade é mais forte e surpreendente que qualquer efeito cinematográfico, por isso o cinema está sempre ao serviço do real e das pessoas: “dos filmes as pessoas saem maiores, mais belas, mais...” diz o realizador.

Estão em causa contínuos exercícios de “aproximação ao segredo do outro” (Rancière). Por isso é que à magia do cinema (no sentido corrente e comum) Pedro Costa prefere uma mecânica de “memorização dos dias, das palavras, dos gestos, dos passos” e desta memorização surge “um terceiro que já não é o Ventura, que já não é a Vanda, que já não sou eu, que é e não é estranho às nossas vidas, e que caminha ao nosso lado ao longo de todo o filme” (Pedro Costa e Rui Chafes, Fora!Out! Fundação de Serralves, 2007). Ventura e Vanda são dois personagens dos filmes de Costa, forças essênciais que No quarto de Vanda (2000) e em Juventude em Marcha (2006) atingem a sua maioridade. E são existências que extrapolam a pura esfera cinematográfica e tornam-se reais, próximas do corpo sensível, tocam os olhos e ultrapassam-nos.

Ventura e Vanda são duas presenças heróicas e, como todos os heróis, não conhecem a redenção, o descanso, a felicidade ou o amor, permanecem num estado de permanente exílio, sempre estranhos, sempre distantes, sempre fora. E como todos os heróis não conhecem um final feliz. Ventura permanece, nas palavras de Ranciére, um “errante sublime, uma personagem da tragédia” e Vanda uma mulher maldita quase feliz, quase reabilitada, quase capaz. Mas é este heroísmo que impede o desvanecimento da sua presença, são pontos que rompem a indiferença e permitem que percebamos não estar sós.

Os personagens destes filmes não são bem personagens, porque Pedro Costa nunca pensou “numa personagem, verdadeiramente o que me interessa é a pessoa: Ventura ou Vanda. Nunca pensei nas personagens que eles podiam interpretar, foram eles que decidiram fazer-se personagens. É óptimo que se tenham convertido em personagens, porque isso significa que se tornaram exteriores a eles mesmos e começaram a procurar a memória das pessoas que conheceram, da mãe, do pai.” Um afastamento que possibilita a sua transformação em lugares de reconhecimento universal do outro.

Em Juventude em marcha Ventura tenta ensinar uma carta de amor: “nha chrecheu, meu amor / o nosso amor vai tornar a nossa vida mais bonita, pelo menos por mais trinta anos. / Pela minha parte, torno-me mais novo e volto cheio de força. / Eu gostava de te oferecer cem mil cigarros, / uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, / um automóvel, / uma casinha de lava que tudo tanto querias, / um ramalhete de flores de quatro tostões.” Estes versos, inspirados no poeta Desnos, , transformam-se nas nossas próprias palavras. Por isso, esta carta não é só de Ventura, mas também dos outros personagens, é do filme e, sobretudo, é nossa, transforma-se em matéria sensível: um corpo a tocar outro, um corpo que guia outro e lhe conta como o mundo é.

Vanda e Ventura são essenciais no método de Costa (porque existe um método na maneira como este cineasta trabalha: existe preparação, pensamento, um modo de montar e relacionar as imagens umas com as outras): é desta atenção (que tem a natureza de uma aflição) ao vivo que se alimenta a sua crença no cinema, porque é através dele que estas regiões humanas podem aparecer. E é esta origem da beleza das suas imagens: uma luz vinda dos rostos humanos, não detrás, não por cima ou ao lado, mas lá de dentro. Uma beleza ancorada no modo como mostra a luz que habita no interior dos corpos e nos ajuda a perceber que vêm de longe e estão cá desde sempre. E esta arte simples, tão dura como só a verdade o pode ser, é um menos que é mais: “é preciso que a arte seja menos para poder ser mais” diz Costa.

Neste contexto, pode dizer-se que estes filmes são “ciência-ficção” porque as suas bases residem não numa ideia/argumento/composição, mas num esforço de surpreender a intensidade, o entusiasmo, as coisas, os movimentos, os sons, as folhas das árvores, o mundo inteiro. E a ficção não é uma máscara ou composição, mas é a realidade tornada mais nítida, mais actuante, mais próxima. O cinema é, assim, uma espécie de filtro (ou poção) que desanuvia e torna mais nítida a visão, adestra-nos a notar as coisas como elas são e a perceber, como diz Vanda a Ventura, que “assim é a vida”.

*todas a citações do realizador são retiradas de uma conversa com Cyril Neyrat e publicadas em Dans la chambre de Vanda. Um film de Pedro Costa, col. Que fabriquent les cinéastes, Capricci, 2008

*texto publicado na edição de Dezembro da L+Arte