Tuesday, December 18, 2012

O mundo segundo Cézanne



Paul Cézanne, Auto Retrato, s.d.


Élie Faure (1873-1937) e Joachim Gasquet (1873-1921) são dois escritores pouco ou nada conhecidos em Portugal, são os dois da mesma geração, mas não têm uma obra conjunta, nem uma afinidade de estilo. O primeiro era médico, o segundo poeta. Une-os a vontade em compreender as grandes construções de inteligibilidade do mundo que se materializaram na arte e, no caso da presente edição, a admiração por Paul Cézanne. Não são dois textos apologéticos, mas dois olhares de alcance profundo sobre a obra do pintor onde se descobre que cada obra longe de representar o acontecimento retiniano, pictórico e cromático do mundo, se revela como um abismo face ao qual a pintura surge como gesto de exploração do profundo presente na superfície.
Ambos os textos são atravessados pela inquietação que irradia dos retratos, das naturezas mortas e das paisagens de Cézanne e pela admiração pelo génio do pintor, pelo modo como sempre esteve inteiro a cada nova pintura, repudiando escolas, fórmulas ou atalhos. O Cézanne que surge nestas páginas é um pintor destemido e animado pela bravura daquele que não teme ter de enfrentar a cada obra o desconhecido e começar sempre de novo.
O texto de Faure desenvolve-se entre o registo biográfico e o modo como são articulados naquela obra níveis diferentes de sensibilidade, intuições, cores, espaços. Trata-se de um retrato onde o mais importante é a indiscernibilidade entre artista e a sua obra: “desde há muito os habitantes de Aix se tinham posto de acordo a seu respeito: o senhor Cézanne era louco. […] Um nariz roxo, pálpebras caídas, vermelhas e lacrimejantes, o lábio inferior saliente, faziam-lhe o rosto menos marcial. Vestia como um burguês: fato preto, calças um pouco enrodilhadas, chapéu de feltro no Inverno, chapéu de palha no Verão. Muitas vezes com bolsa de caça a tiracolo.” (p.15) E umas linhas à frente acrescenta como conclusão deste esboço: “era um velho selvagem, cândido, irascível e bom.” (p.17)
No entanto esta abertura não revela o cuidado com que Faure nos faz descobrir as tensões vividas por Cézanne e o seu sentimento de desenquadramento relativamente aos seus contemporâneos. A sua curta estadia em Paris, onde contactou com Delacroix, Courbet ou Manet, permitiu-lhe perceber que não lhe interessava a conversa sobre a arte, sobre as obras, sobre o método, mas sim o contacto com as diferentes coisas que alimentam o espírito e olhar do pintor. Em Paris “declarava-se geralmente que a pintura estava muito simplesmente para nascer; que em breve a ciência permitiria a criação de um método verdadeiro; que o velho esforço dos homens tinha sido manchado por erros místico, e os tempos conscientes estavam para chegar. […] Ainda assim, quando os versos de Vergílio ou de Racine lhe subiam aos lábios, quando fugia bruscamente do grupo entusiasta onde o seu silêncio escavava desde há momentos um buraco, era para correr até à grande galeria do Louvre e deambular lá até à noite, dizendo de si para si que havia ali outra coisa, que antes destes homens outros tinham existido a dar à sua alma uma forma sensível que parecia incapaz de morrer.” (pp.23-24)
O “absolutismo positivista” dos seus amigos forçava-o a abrir o coração à exploração interior e, por isso, fugiu de Paris e regressou a sua terra natal onde, como escreveu, esteve empenhado em “fazer do Impressionismo qualquer coisa tão sólido e perdurável como a arte dos museus.” Declaração esta a que Faure acrescenta: é através disto que devemos definir a sua obra, porque ela não se descreve […]. É um ensaio primitivo sobre a arquitectura geral e permanente da terra, um seu pedaço transportado com profundos alicerces para a moldura de um quadro.” (pp.24-25)
Esta ideia do ensaio primitivo não revela um estilo, mas indica a necessidade de permanente contacto com o mais profundo e próprio da pintura. Cada obra não era uma paisagem ou um retrato, mas sempre uma direcção do espzanne﷽﷽﷽﷽﷽permite a Faure dizer que Cdapintor em estar em permanente contacto com o mais profundo e prundo de cada uma das suasrírito. É esta característica que permite a Faure dizer que Cézanne levava: “dentro dele o soberbo esboço de um mundo onde cada quadro só era uma etapa que ele atingia esgotado, e abandonava porém de imediato, desta vez com a certeza de o repouso estar na etapa seguinte, e a cada nova decepçãoo ganhando a energia para chegar mais longe. Nunca houve desdém mais magnífico pela obra feita.” (p.39)
Um aspecto essêncial deste texto, entre os muitos possíveis de enumerar dada a sua intensidade, é o modo como nele é destituída a questão da mestria, do bem desenhar. Se por um lado, o pintor Cézanne estava todo na tela, no desenho, na cor, por outro o elemento decisivo não se localizava nesse fazer da pintura. Diz Faure: “Não se desenha bem ou mal, não se escreve bem ou mal. Quando se desenha, quando se escreve, diz-se qualquer coisa ou não se diz nada, repete-se sem emoção palavras que outros pronunciaram a tremer ardentemente, ou vão procurar-se na forma e no espírito misturados das coisas alguns caracteres novos que em nós farão agitar sensações, tanto mais fortes  quanto melhor corresponderem às fontes desconhecidas que a evolução incessante do mundo todos os dias abre nos cérebros aventurosos.” (p. 46)
 Neste contexto as palavras de Cézanne são um necessário e importante complemento do modo como Faure lê a sua obra e o seu espírito e o texto de Gasquet recria três conversas imaginárias, as quais foram extraídas, diz o autor, “de uma centena que tive realmente com ele nos campos, no Louvre e no seu estúdio, juntei tudo o que pude recolher e o que pude recordar das suas ideias sobre a pintura.” (p.61)E são existem várias passagens impressionantes e reveladoras do modo como o pintor via e sentia a paisagem, sobre os apelos da natureza à arte e sobre o modo como o artista deve manter a sua vontade em silêncio. Perante a paisagem o artista é a consciência subjectiva dessa mesma paisagem e a tela a sua consciência objectiva: “a minha tela, a paisagem, ambas exteriores a mim mas uma caótica, fugidia, confusa, sem vida lógica, ora de toda a razão; a outra permanente, sensível, categorizada, a participar na modalidade, no drama das ideias… na sua individualidade.” (pp.64-65)
Através destas conversas descobre-se um pintor abandonado à lógica colorida do mundo e nunca à lógica racional do cérebro (p.78), porque para Cézanne os olhos são o lugar do pensamento. Uma elaboração metafísica e especulativa da pintura que não destitui Cézanne do seu ser pintor: “ali, à frente dos meus tubos, dos meus pincéis, não passo de um pintor, do último dos pintores, de uma criança. Transpiro coração e sangue. Já não sei nada. Pinto.” (p.89)
São dois textos notáveis não só pelo modo como apresentam e descobrem Cézanne, mas como através e com esse pintor constroem um mundo. E nesse mundo a pintura, que pode servir de metáfora para toda a arte, não é uma questão lírica, ornamental, excessiva, mas o movimento necessário de ordenamento das sensações, da experiência, do pensamento. A esta luz a obra de arte é a estrutura essêncial do mundo ou, como afirma Cézanne, a forma sensível da alma humana.

"Paul Cézanne" por Élie Faure Seguido de "O que ele me disse" por Joachim Gasquet
Trad. Aníbal Fernandes
Sistema Solar, 2012

*Este texto foi publicado no Ípsilon

Sunday, October 14, 2012

Paulo Nozolino: repetir o medo e a história,


A repetição do medo e da história 

Os trípticos de Paulo Nozolino

A exposição de Paulo Nozolino "Usura", comissariada por Sérgio Mah, reúne  até finais de Janeiro de 2013 um conjunto de nove trípticos realizados pelo artista entre 1994 e 2008. As imagens foram feitas em sítios tão diferentes como Lisboa, Porto, Nova Iorque, Bucharest ou Auschwitz e é a primeira vez que são apresentadas em conjunto.

O mote é dado pelo poeta Ezra Pound e pelo seu canto XVL sobre a Usura como pecado contra a natureza, “CONTRA NATURAM” escreve o poeta. A usura impossibilita a pintura e a poesia, mas também dá ranço ao pão, oxida o cinzel, corrói os fios no tear, destrói todos os ofícios e mata os filhos nas entranhas. Seguindo o poeta, pode dizer-se que a usura não só destrói o mundo, mas impossibilita a vida e impede o pensamento. E é sobre a impossibilidade de um mundo tornado “usura” que os trabalhos de Nozolino se podem pensar.

Não se trata de comentar, registar ou guardar as coisas provocadas pela “usura”, mas tornar compreensível e integrar na cultura (sinónino da compreensão) as feridas, a maior parte das vezes sem cura, infligidas em nome da usura. Nem se trata de um grito de revolta, mesmo que se tratem de trabalhos animados por uma voz inconformada, ou de propor uma nova moral, ainda que se reconheça um conjunto e uma hierarquia de valores. Trata-se, sobretudo, de partilhar uma dor, combater a cegueira e, fundamentalmente, mostrar o modo como incessantemente a história se repete e o abismo para onde se está atirado se afunda mais a cada conflito, a cada injustiça, a cada dor.

Repita-se: as fotografias de Nozolino não são um comentário à história ou ao estado do mundo. Ainda que a exposição comece com a evocação do massacre do povo judeu às mãos dos nazis, passe pela invasão do Iraque, pela morte de Saddam Hussein, pelo drama da emigração, pelas consequências irremediáveis do desastre de Chernobil e pela alienação desumana dos funcionários de camisa branca em Tóquio. Mas as suas imagens não são sobre factos mundanos, nem tentam um novo sentido para a história. Nem é certo que exista uma intenção única como motor destes trabalhos. Nozolino fotografa como quem escreve sobre o que vê, são descrições precisas e duras (porque nada metafóricas) do que vai vendo nas suas viagens. Umas são feitas pelo mundo exterior, outras pelo mundo que está dentro da sua cabeça: a imagem do tríptico “Pandora’s box” em que aparece um retrato de Saddam Hussein pousado sobre uma tábua do Corão foi feito em Portugal, mas podia ter sido feito no Iraque. Colocar tudo isto em conjunto não significa desenvolver uma tese ou construir um pensamento político (ainda que cada imagem contenha toda a política), mas estabelecer um inquietante paralelismo entre todos aqueles factos, todas aquelas pessoas e todo aquele sofrimento. Mostrar o modo como todos estes factos estão ao mesmo nível tem consequências profundas para a história, porque é mostrar, muito à maneira de Pound, o modo como para lá das diferenças políticas, dos diferentes desastres e dos diferentes tempos, o abandono, o medo, a solidão e a morte são sempre os mesmos.

Tratam-se de imagens acerca das quais não adianta falar do domínio do aparelho fotográfico, da exemplar produção, impressão ou montagem, ainda que sejam tecnicamente exemplares. Importante é o modo como castigam quem as vê. E castigam porque são belas e seduzem e são motivo de muito prazer. Este é o seu paradoxo: a dureza e aflição apresentadas não obrigam a desviar o olhar, mas pedem uma contemplação demorada na qual se vê beleza e se sente prazer. Sentir prazer com o medo e a aflição do outro (que também somos nós) é, como disse o poeta Goethe, o luxo supremo da arte e, neste sentido, os trípticos de Nozolino são luxuosos.

A obra de Nozolino é um pensamento não cristalizado, mas corresponde a um permanente esforço de lucidez. Não é pensar através das imagens e ver através da máquina, mas compor/formar um pensamento sobre a história usando as imagens e as máquinas. Esta diferença longe de ser retórica é essêncial e com ela aprende-se que a diferença entre os diferentes modos de pensar (e pensar com as palavras é diferente de pensar com a fotografia, e pensar com a fotografia é diferente de pensar com a pintura, a escultura ou o cinema) é uma diferença de grau e de meios de aproximação e não uma questão de profundidade ou alcance. Neste sentido, pode dizer-se que as imagens de Nozolino são um pensamento acerca do modo como a história do sofrimento e do medo, que a uns mata e a outros mantém despertos, se está sempre a repetir.

Saturday, October 6, 2012

Hélio Oiticica: anarquia, romantismo e parangolé








Para que não restem dúvidas Hélio Oiticica é um herói. E isto não significa dizer só que se trata de um artista cuja obra foi capaz de inspirar toda uma tradição artística, mas igualmente dizer que é uma obra que revolucionou a visão sobre a função do artista e o papel das obras de arte no contexto da tradição ocidental das belas-artes. À visão e gosto canónicos da história da arte, Oiticica preferiu a favela, o ambiente tropical do Brasil, os gestos espontâneos de quem dorme ao relento, preferiu o samba, a voz de Caetano e a poesia sul americana, preferiu voltar à Amazónia não para descobrir o folclore ou o típico-Brasil-para-turista-ver, mas, como lhe chamou, para regressar à “Tropicália” a qual é um mapa da sua mente, da sua imaginação, da sua sensibilidade. Mapa de Oiticica que, como os seus “Parangolés”, passou a ser de todos e andou de corpo em corpo, vestido por cantores, poetas, outros artistas e muitos outros e em sítios tão diferentes como dentro do museu, no morro da Mangueira no Rio de Janeiro, em Londres ou em Nova Iorque. E esta é a sua revolução, feita não para fundar uma nova política, nova estética ou moral, mas movido pelo amor à arte e, sobretudo, pelo seu amor ao mundo ao qual não conseguia chegar de melhor forma do que através do esforço criativo.
No seu diário, que o artista manteve activo durante grande parte da a sua vida como registo dos pensamentos “que me afligem noite e dia, mais ou menos imediatos e gerais” (22 de fevereiro, 1961), Oiticica escreveu: “Não há maneira mais segura de afastar do mundo nem modo mais seguro de enlaçá-lo do que a arte” (2 de Dezembro de 1960). Esta citação de uma das “Máximas e Reflexões” do poeta alemão Goethe pode ser considerada como o bom mote do trabalho do artista brasileiro: a sua obra constitui esse movimento continuo de avanços e recuos relativamente ao mundo e um esforço de o compreender integrando-o na arte. Um amor pelo mundo, pela arte e pelo Brasil que atravessa toda a obra. E é este amor que cada obra de Oiticica mostra e que a exposição “Hélio Oitica. Museu é o mundo” revela de uma forma surpreendente.
A exposição no Museu Berardo em Lisboa, e que iniciou o seu percurso em São Paulo em 2010, é “a maior retrospectiva de sempre” de um dos nomes maiores da arte brasileira dizem os curadores da exposição César Oiticia Filho, responsável pelo projecto Hélio Oiticica no Brasil, e Fernando Cocchiarale. Não se trata de uma visão cronológica ou histórica, mas da apresentação dos principais problemas artísticos, poéticos e políticos que ocuparam o artista durante toda a sua vida. E apresentar as obras de Oiticica não é só fazer uma exposição, mas concretizar uma experiência exigente, repleta de elementos, detalhes e muitas configurações. 
Uma obra que não é só para ver, mas para penetrar, entrar lá dentro e obedecer a um enorme conjunto de diferentes requisitos. Trata-se de um ver exigente e, por isso, esta exposição exige que se ande descalço, se molhem os pés, sujem os sapatos na areia e na gravilha, que se conviva com o cheiro da matéria orgânica, das folhas de canábis, se ouçam as araras tropicais, se atravessem labirintos e se leia deitado num ninho de palha, que se entre em labirintos e em espaços exíguos, se vistam os “Parangolés” e se dance nas plataformas dos “Penetráveis” e que o corpo, enquanto lugar onde se reúnem todos os mecanismos humanos da percepção, seja o único guia nesta floresta intensa e tropical de cores, formas e matérias.
Há quem, seguindo as intuições de Oiticica, chame à experiência das suas obras “Delirio ambulatório” para designar a sua estratégia estética em que a participação é a palavra chave. Palavra esta que em primeiro lugar apresenta o modo como o artista trouxe para o museu e para o contexto das artes a experiência quotidiana da favela e, depois, o modo como o seu trabalho só se descobre usando o corpo, mas também como “é o próprio corpo que, ao fazer-se obra de arte, se descobre a si próprio”, como dizem os curadores da exposição. Os seus “Penetráveis” e “Parangolés” não designam obras a ser contempladas, admiradas ou analisadas, mas expressam a ambição de fazer com que a arte seja um espaço cósmico, aberto, penetrante. Espaços, como dizem os curadores, “onde o indivíduo cria as suas próprias sensações sem condicionamentos históricos ou visuais, ou seja, que encontre dentro de si mesmo a chave para um ‘Exercício Exoperimental de Liberdade’ como propunha Mário Pedrosa.” Este continuo exercício fez parte da sua oposição à arte e sociedade burguesas: “uma oposição anarco-romântica na tradição libertina, voltadas para a revolução comportamental individual” afirmam os curadores.
A oposição a esse ideia de burguesia foi feita, sobretudo, através de dois meios. Por um lado, através da negação da obra de arte como objecto de luxo e, por outro, através da entrada no mundo mais marginal da favela. Gostos estes que acabam por contaminar todo o seu processo de criação: com Oiticica o construtivismo, “torna-se análogo à arquitectura popular das favelas” concluem Oiticica Filho e Cocchiarale. Uma valorização do popular em detrimento do erudito que não significa uma relação ilustrativa ou narrativa com a cultura brasileira, mas uma apropriação formal e uma valorização do pensamento, métodos e materiais das construções populares. E este é o sentido mais forte e originário dos seus “Penetráveis” e “Parangolés”. Formalmente, esta espécie de categorias significam a primeira uma estrutura arquitectónica, muito inspirada na arquitectura popular e espontânea das favelas do Rio de Janeiro, onde se experimentam cores, formas, espacialidades, poemas, a segunda uma espécie de pano muito colorido que ao ser vestido e utilizado livremente pelo corpo numa dança ou em movimentos avulsos cria e sugere formas a lembrar não só os elementos da pintura construtivista e neo-concreta brasileira (movimento artístico de que Oiticica fez parte), mas o modo como os populares cariocas usam certas roupas e máscaras.
Estas designações fazem parte do esforço feito pelo artista em encontrar (melhor seria dizer: fundar) novos vocabulários que permitissem designar, expressar e descrever a ambição da sua obra . Não se tratam bem de conceitos, porque para o artista “chega de intelecto. Só obstrui a pura expressão cósmica. Cria leis e preconceitos. Dificulta o sentido do sublime”, mas são expressões muito comuns na cultura carioca de 1960 com as quais o artista não só queria designar as coisas que fazia, mas descrever as experiências ambicionadas.
A explosão do “Parangolé”
Escreve Oiticica: “Tudo começou com a formulação do Parangolé em 1964, com a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitectura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente as construções espontâneas, anónimas, nos grandes centros urbanos — a arte das ruas, das coisas inacabadas, do terrenos baldios, etc. Parangolé foi o início, a semente.” Ao que uns anos mais tarde acrescenta: “Toda a minha evolução, que chega aqui à formulação do Parangolé, visa a essa incorporação mágica dos elementos da obra como tal, numa vivência total do espectador, que chamo agora ‘participador’. […] O ‘vestir’, sentido maior e total da mesma, contrapõe-se ao ‘assistir’ […]. O vestir já em si constitui numa totalidade vivencial da obra, pois ao desdobrá-la tendo como núcleo central o seu próprio corpo, o espectador como que já vivencia a transmutação espacial que ai se dá.” (Anotações sobre o Parangolé, 6 de Maio de 1967)
Esta ideia é clara enquanto síntese do esforço criativo de Oiticica, mas trata-se de um avanço relativamente aos seus “penetráveis”: “parangolé” não é só uma coisa para se usar/vestir, mas a condição da sua existência é assentar sobre a pele e tornar-se corpo, parte indissociável daquele que o usa. Uma intimidade de tal modo forte que  “parangolé” se torna corpo e o corpo “parangolé”. E não se trata só de uma ideia de participação ou utilização, mas de um gesto de redenção não só da arte, como da pintura. E, sublinhe-se, da pintura e não do quadro.
A revolução de Oiticica não está unicamente no encontro do quotidiano, na romantização e mitificação da favela, mas também na negação do quadro enquanto, segundo o artista, forma artística morta e na recuperação da pintura enquanto forma vital: “Já não tenho dúvidas que a era do fim do quadro está definitivamente inaugurada. Para mim a dialética que envolve o problema da pintura avançou, juntamente com as experiências (as obras), no sentido da transformada pintura-quadro em outra coisa (para mim o não-objeto), que já não é mais possível aceitar o desenvolvimento ‘dentro do quadro’, o quadro já se saturou. Longe de ser ‘a morte da pintura’, é a sua salvação, pois a morte mesmo seria a continuação do quadro como tal.” (16 de Fevereiro de 1961)
Estas palavras antecedem os desenvolvimentos posteriores de todo o seu trabalho (os penetráveis, parangolés e as grandes instalações) e iluminam surpreendentemente toda a obra porque colocam Oiticica na tradição da arte, como aquele que recebe a herança da pintura e a transforma, altera e desenvolve. O seu trabalho não corresponde a uma saída do campo artístico, mas ao seu desenvolvimento e expansão em direcções totalmente novas e supreendentes.
Uma das instalações apresentadas na exposição em Lisboa é “Tropicália” a qual funciona como síntese ou, como disse o artista numa entrevista a Guy Brett em 1969, “é uma espécie de mapa de condensação de lugares reais. Tropcália é um tipo de mapa. É um mapa do Rio e é um mapa da minha imaginação. E um mapa no qual você entra.” E chega-se a esta mapa através de um percurso que começa nas primeiras pinturas feitas pelo artista aos 18 anos e mostra o modo como o espaço da tela, da bidimensionalidade se foi tornando insuficiente para a sua ambição de estar no mundo e trazer mundo para a arte. “Tropicália” é esse grande mapa da atmosfera da mente do artista carioca, da inquietação do pais do sul, da intensidade do corpo e do convívio apaixonado com a rua, os outros e a exuberância da natureza tropical.

*uma versão deste texto foi publicada no suplemento Ípsilon do jornal Público

Sunday, August 26, 2012

Realismo e Visibilidade

José Luis Neto, Caderno de Imagens, col. Ymago, ed. KKYM, 2012



REALISMO E VISIBILIDADE*


Esta é uma edição singular. Não só porque a sua arquitectura é pouco comum — composta por fragmentos de textos justapostos às reproduções das imagens —, como ao habitual estatuto e pompa das habituais edições dos livros de fotografia, prefere os agrafes, uma capa em papel pardo, uma impressão excelente num papel convencional. O resultado é um “caderno de imagens” que não só reproduz um conjunto de trabalhos de José Luis Neto (n. Satão, 1966), como a sucessão de fragmentos de textos de autores como Deleuze, Blanchot, Proust, entre outros, estabelece uma posição acerca da fotografia, da sua relação com o mundo, com os seus objectos e a sua actividade. As imagens de José Luis Neto (JLN) dão origem a um conjunto de fragmentos que invocam questões sobre o dispositivo, a percepção, a tensão figuração/abstracção existente nas imagens.
A pertinência desta edição é incontornável, porque traz para o centro do debate sobre a imagem, as suas teorias e políticas o corpo de trabalho de um artista. O qual tem a característica de ser singular não só no modo como se constrói e vai desenhando um programa artístico, mas constitui uma firme posição no contexto da fotografia contemporânea. Desde o seu início que JLN se dedica a fotografar folhas brancas, a fazer imagens de fotografias antigas, de negativos, a manipular os mecanismos (motores e películas) e a fazer uma espécie de meta-fotografia. Não porque o seu trabalho fique além da fotografia, mas porque recusa as suas convenções e protocolos mais correntes e, sobretudo, porque se afasta e perturba a relação essencial da fotografia com um objecto. Ou seja, aqui a fotografia é o seu próprio objecto: trata-se de uma espécie de gesto reflexivo ou, se se preferir, de uma tentativa de auto-consciência.
Um virar-se da fotografia sobre si própria que tem como consequência mais imediata fazer da maioria da obra de JLN — e as séries reproduzidas neste “caderno” são disso um bom exemplo — uma investigação acerca das condições de possibilidade da fotografia. A este propósito os “curadores” do livro (João Francisco Figueira e Vítor Silva: são os responsáveis pela escolha dos fragmentos dos textos que acompanham e dialogam com as imagens) citam um passo notável do “Thomas l’obscur” de Blanchot: “O seu olho, inútil para ver, ganhava proporções extraordinárias, desenvolvendo-se de uma maneira desmesurada e, estendendo-se sobre o horizonte, deixava a noite penetrar no seu centro para criar uma íris. Através deste vazio, era então o olhar e o objecto do olhar que se misturavam. Não apenas este olho, que nada via, aprendia a causa da sua visão. Ele via como um objecto, o que fazia com que nada visse. Nele entrava o seu próprio olhar, sob a forma der uma imagem, no momento trágico em que este olhar era considerado como a morte de toda a imagem.”
Ver através de um vazio, aprender a causa da visão, entrar no próprio olhar surgem como acções sinónimas, mas este vazio não é um vazio total que tudo absorve e transforma em nada, mas este vazio é o vazio referencial, ou seja, para este movimento do olhar as distinções dentro/fora, interior/exterior cessam e em seu lugar surge o olho simultaneamente como sujeito e objecto, imagem e dispositivo. Por isso, a este vazio não corresponde a inexistência de objecto perceptivo, mas uma suspensão da relação linear com o exterior como se o olho (que aqui serve como metáfora da fotografia) visse aliviada a exigência de realismo e fosse destituída a ambição de reprodução do real: “Em arte, e tanto em pintura como em música, não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas de captar forças. É exactamente por isto que nenhuma arte é figurativa. A célebre fórmula de Klee ‘não restituir o visível, mas tornar visível’, não significa senão isto mesmo.”
Esta citação de Deleuze (Francis Bacon. A lógica da sensação) sublinha a obra de arte como uma força que não representa, nem substitui (ou seja, não é uma força de representação), mas que é uma instância de aparição: uma força que cria a visibilidade, ou seja, a visibilidade proporcionada pela obra de arte não reenvia para outro tempo, outros objectos, outras paisagens. A obra de arte não é um meio através do qual se vê, como uma janela com um vidro bem polido e transparente, mas é a própria visão.
Este mini-itinerário conceptual e estético pelo “caderno” de JLN não é cego às imagens produzidas pelo artista, mas apresenta o carácter mais essencial e determinante do seu trabalho. O qual é claro na recusa da figuração, não como opção, mas porque para JLN nenhuma arte é figurativa: em muitos momentos as suas imagens parecem pinturas impressionistas em que o branco é um elemento central e estruturante, ponto central a partir do qual as manchas — que são as figuras e objectos dos seu trabalho — se expandem e conquistam o espaço. E esta aparente abstracção não constitui um desvio da fotografia da sua natureza, do seu objecto, da sua ambição: porque  “ verdadeiro realismo significa: não representar objectos mas sim criá-los. Reproduzindo-os, apenas os sublinhamos esteticamente e preenchemos um mundo incompleto com interpretações e ficções.” (Carl Einstein, George Braque).
Este é o contexto que este “caderno” cria para se poder ver/perceber/entender as duas séries de JLN: “High Speed Press Plate” (2006) e “July 1984” (2012). As séries não se prolongam, mas contaminam-se pelos problemas colocados e pela estrutura interna que constroem. Se na série mais antiga há uma total ausência de formas, é o reino de manchas informes que dão origem a paisagens mentais e profundas, na série mais recente surgem pessoas, interiores de casas, situações concretas do quotidiano. Mas esta aparição não significa assumir como tema das imagens esses objectos e o seu registo ou arquivo, mas mostrá-los em situações de dissolução, corrupção e desvanecimento, em momentos entre a visibilidade e a invisibilidade, a luz e a obscuridade.
Uma edição importante não só porque disponibiliza trabalhos de um autor importante da fotografia portuguesa contemporânea (desde 2005 não era dedicada nenhuma edição a JLN), mas também porque coloca o seu trabalho no centro do importante debate em curso e o assume como uma posição e contributo pertinentes.

José Luis Neto. Caderno de imagens
Um edição com curadoria de João Francisco Figueira e Vítor Silva
Col. Imago
Edição da KKYM

*este texto foi orginalmente publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público