Tuesday, February 26, 2008

Notas sobre o conceito de figura*





“Toda a figura é um mundo, um retrato cujo modelo surgiu numa visão sublime, tingido de luz, designado por uma voz interior, apontado, desnudado por um dedo celeste que mostrou, no passado de toda uma vida, as fontes da expressão.”

H. Balzac, A obra-prima desconhecida, p. 38


Balzac nunca teve como objectivo descrever qualquer tipo de quadro metafísico sobre as obras de arte, ainda que resulte do seu texto uma das mais poderosas apresentações do demónio (no sentido grego de ‘daimon’) da arte. E este tem, sem dúvida, origem num plano que não se atém à matéria, aos objectos, às experiências puramente sensíveis. Trata-se de um plano que extrapola o dado: a pura experiência sensível não lhe é suficiente e o seu movimento é o de uma peculiar exorbitação. Ainda que, como Kant tão bem reconhece, essa seja a tendência ou vocação natural da razão humana, em termos artísticos corre-se o risco da anulação da própria obra de arte, da figura, da mancha, do objecto.

Neste mesmo texto, Balzac, pela voz do mestre pintor que teima em não desvendar a sua obra aos amigos, diz: “A obra que tenho lá em cima aferrolhada é uma excepção na nossa arte; não é uma tela, é uma mulher!” Esta metamorfose da pintura em carne, da matéria de arte em matéria de vida, apresenta perigos: zona de suprema confusão onde aquilo que é não parece e o que parece não é. Uma desconfiança que se traduz em desconforto estético: a tese é de que qualquer obra de arte esconde uma espécie de génio maligno que está sempre a enganar, que continuamente prega partidas perceptivas e impede a visão da superfície. Mas as razões da desconfiança transformam-se nas razões do louvor: coroa de espinhos e de glória. Parecem ouvir-se ecos de Platão quando, na República, apresenta as razões da não admissibilidade dos artistas na sua cidade e o seu discurso condenatório se transforma numa das mais louváveis exortações aos poderes da arte. Ou seja, este génio é maligno, mas, simultaneamente, criador, portador do poder da configuração da matéria em símbolo, em signo, em experiência, em conhecimento.

A formulação balzaquiana é uma exigência, para muitos incompreendida e injustificada, de que a obra de arte não pode ser só mais um objecto, mas que tem de ser uma matriz, modelo ou retrato — um mundo, como escreve Balzac. Além de ser um imperativo moral, trata-se de uma exigência de relação com o mundo que encontra no conceito de figura a sua melhor expressão. A relação entre figura e mundo, e é esta relação que importa explorar, corresponde ao esforço de tornar visível, um esforço que integra não só o espanto das coisas existirem, como o espanto de serem como são. É do prestar contas a este espanto que se alimentam as artes.
A exigência, própria daqueles para quem os objectos esteticamente qualificados são momentos de contemplação, é a da fuga ao gesto desnecessário, fortuito, desenraizado, ao arabesco construído sobre o acaso. A relação da figura com o mundo é a do reconhecimento do característico, do próprio, por isso o mundo é o seu lugar de ressonância. Trata-se da transformação do mundo em qualquer coisa identificável, isto é, uma laboriosa organização do campo visual.

Não é uma relação de estrita representação — o actor representa: está em vez de…, com uma máscara faz-se passar por… —, mas de um lugar de descoberta. Tal como os nomes não são mais que chaves de entrada dentro das coisas, as figuras são gestos que, sob um fundo indeterminado, informe, delimitam, reconhecem, intuem zonas de comunidade, de troca.
Diz Jünger: “«Intueor» é um verbo que os Antigos não conheciam senão na sua forma passiva e através das suas causas. Só depois vem a denominação: as coisas não transportam o seu nome, os nomes são-lhes conferidos. O mundo dos nomes distingue-se do das imagens: não é mais que um reflexo.” (Tipo, Nome, Figura, §24)

A figura é, assim, a apresentação ou, se se preferir, a materialização da intuição: nas tintas de uma tela, nos traços de um desenho, na madeira ou ferro de uma escultura. E o tal sentido antigo de intuição — o ser-se afectado por, o deixar-se marcar por — coloca entre parêntesis a actividade configuradora do espírito humano e transforma, por momentos, todo o conhecimento em reconhecimento. Este louvor a uma certa passividade do sujeito transforma-se em relação de descoberta daquilo que emana das próprias coisas. É como se, deste ponto de vista, o interesse fosse a visão — e intuir é, de algum modo, uma forma de visão — das coisas elas mesmas, nas suas formas mais caóticas, informes, desorganizadas, intocadas pela racionalidade ou integradas no espírito sistemático, isto é, a intuição como contacto com o antes-do-nome, como visão à luz do meio dia, sem sombras, sem lastro. Seguindo Jünger, os nomes são reflexos, sombras das coisas, acções humanas; já as imagens estão mais próximas da fonte. E imagem é, aqui, o ser-figura daquilo que se vê: deixa o teu corpo projectar a luz e as sombras para que eu te veja, para que eu te reconheça, para que tu sejas.

“A concepção da figura pressupõe o ser humano, como espírito que concebe, mas também como espírito que engendra. Um elemento novo penetra no homem, mas para ser por ele denominado e assim conhecido, mas também reconhecido.” (Jünger, op. cit., §113)
Este espírito que engendra, no caso da construção da figura, o artista, trabalha no adro da discursividade, ao mesmo tempo que engendra é engendrado: sou aquilo que vejo e o que vejo sou eu. Deixar-se penetrar por esse tal elemento novo é não só recuperar a intuição, como é condição da formação de figuras: simultaneamente cria o mundo e cria-se a si mesmo e o seu corpo é medium do nascimento do novo, lugar do inesperado e da revelação. As figuras por si engendradas correspondem à tensão de diferenciação do indiferenciado: a mancha, primeiro operador da figura, é o seu primeiro sinal perceptivo, apresenta o esforço de conhecimento e de descriminação do informe. Trata-se de arrancar o nome ao que não tem nome, a figura ao indistinto: “toda a imagem, todo o fenómeno na sua linguagem imagética e simbólica, é um caso à parte, uma delimitação a partir do indiferenciado” (Jünger, op. cit., §108). Esta acção de delimitação corresponde à descoberta do indivíduo, do singular, do caso único, ao nascimento da multiplicidade. Só no contraste com a multiplicidade nasce a unidade do caso singular, é através do contraste com a heterogeneidade que se dá conta de si: no limite, a figura é uma variação desse mesmo indiferenciado.

Mas a figura é simultaneamente movimento de síntese, por isso é um mundo: a sua melhor apresentação acontece com o corpo humano, que é não só o mediador por excelência de todas as figuras, como a sua origem e destino. Escreve Filomena Molder: “são as obras, elas mesmas, que solicitam, sugerem e exigem um certo movimento, uma certa disposição ao contemplador, que aparece unicamente no sentido mais depurado, relativamente à essência espacial da obra, isto é, relativamente ao lugar do espaço consequente com a obra contemplada. Fala-se da exigência da obra, nunca em ponto de vista” («Notas de leitura sobre um texto de Walter Benjamin», Matérias Sensíveis, p. 19). Faz-se aqui uma equivalência entre obra e figura, por entendermos ser a figura uma obra. O “lugar do espaço” indicado é consequência da irrupção da figura: ao seu nascimento corresponde um gesto inaugural, uma suspensão do tempo e uma demarcação do espaço absoluto. A figura, como a obra de arte em geral, é a acção de tornar perceptível o espaço e sensível o tempo. Outro aspecto da proximidade que aqui se desenha, reside na autonomia, expressa sob a forma de exigência, da figura: a subjectividade do sujeito não é tida em conta, o que há a honrar são as exigências das figuras. São elas que determinam o lugar do corpo no espaço, os movimentos, a dança sensível, sob o risco de, caso não se atenderem os seus pedidos, se afundar numa profunda mudez e invisibilidade.

Outro aspecto a salientar é que a construção da figura não é regida por uma escolha, pois é uma resposta directa a uma necessidade de orientação: usando a bela imagem de Jünger (op. cit., §88), as figuras são como uma espécie de bússola que só serve para o trajecto: aponta o norte, orienta, mas não determina o caminho.

“No caso da figura, não só os contornos se tendem a apagar, mas a própria consciência que os encara é menos presente. Toca-se num saber mais profundo, mais próximo do pressentimento — um parentesco que reside na natureza que configura mais que na natureza configurada” (Jünger, op. cit., §128).

Esta quase-ausência aqui sublinhada destaca o contacto directo que a figura estabelece com aquilo que figura, que apresenta ou representa. Quando comparada com a linguagem sabe-se que a figura vai mais fundo, por ser construída através dos mesmos ingredientes daquilo que figura. Por isso se podem fazer transições e os elementos ajustam-se, não se desdizem ou contradizem. Jünger afirma que a partir de certo momento os contornos da figura se tendem a apagar: ao máximo poder da figura corresponde o seu desvanecimento.
Voltemos a Balzac: “Estais diante de uma mulher e procurais um quadro. Há tanta profundidade nesta tela, o ar nela é tão verdadeiro, que já não podeis distingui-lo do ar que nos rodeia. Onde está a arte? Perdida, desaparecida” (Balzac, op. cit., p. 68).

A situação é paradoxal: a verdade em arte, tal como a profundidade na figura, corresponde à sua anulação, imiscui-se com os factos do mundo, faz-se facto do mundo, espaço tornado consciente. Que o ar possa correr por entre o corpo da figura indica que o poder desta reside num tipo superior de visão, um poder que se exerce sobre tudo quanto há: só se conhece um poder próximo deste, que é o da nomeação. Dado a figura não aparecer no universo, não estar disponível para ser colhida e integrada num discurso unificador, ela é a primeira manifestação desse mesmo universo: trata-se da transformação do poder cósmico e metafísico numa realidade tangível, sensível, mensurável, elemento do campo de visão e percepção.

“O fundo cósmico e o fundo inesgotável do homem não são senão um: matéria, espírito, prodígio, mar, floresta, luz, sol, deserto e qualquer outro nome que se queira. Lá não existem nem diferenças, nem qualidades. Número, pensador, altura, profundidade, entendimento já nada significam…” (Jünger, op. cit., §122)

Que entre tudo se possa estabelecer uma relação não significa que tudo seja igual a tudo: através do engenho humano o novo tem lugar, o estranho pode acontecer. Mas a correspondência aqui estabelecida diz respeito às transições possíveis entre os elementos, e o modo como a diversidade se encontra nesse fundo que o cosmos e o homem partilham: o múltiplo descobre-se, reconhece-se no UM. Com as obras de arte acontece o mesmo, percebe-se um “acordo genético entre a orientação do corpo, os movimentos da mão, a direcção do olhar do artista e do seu efeito sobre aquele que contempla: o quadro, o desenho, a seda pintada chinesa, a pintura parietal, o fresco, chamam a si em relações metafísicas, ao longo do tempo diversas, um modo de olhar, um lugar, que não pode ser arbitrário” (Maria Filomena Molder, op. cit., p. 20).

BIBLIOGRAFIA

Balzac, Honoré, A obra prima desconhecida, [Le chef-d’oeuvre inconnu, 1831], Lisboa: Ed. Vendaval, 2002
Didi-Huberman, Georges, La peinture incarnée suivi de Le chef d’oeuvre inconnu par Honoré de Balzac, Paris: Les éditions de Minuit, 1985
Jünger, Ernst, Type, Nom, Figure [Typus, Name, Gestalt, 1981], Paris: Christian Bourgeois Ed., 1996
Molder, Maria Filomena, Matérias Sensíveis, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

No comments: