“Toda a realidade é uma encenação: esta realidade é esta encenação mas há outra, há muitas outras... Portanto, nós estamos constantemente a encenar, nós estamos constantemente a representar, estamos agora aqui e estamos a representar uma coisa, depois vamos para a rua e representamos outra [… ]. O meu trabalho é uma encenação. É uma encenação do princípio ao fim, ou seja, só consigo pensá-lo a encená-lo, a encenar-me a mim próprio.”
Estas palavras de Vasco Araújo (n.Lisboa, 1975) inscrevem-se num certo modo de pensar para o qual não existem factos, apenas interpretações. E com isto quer-se dizer um determinado modo de ver as coisas e os factos não como elementos essenciais da realidade, núcleos duros e materiais das coisas, mas perceber que o horizonte em que a arte se inscreve é semelhante ao local onde se inscreve a vida e este terreno caracteriza-se por ser precário, instável e por possuir uma configuração que depende, quase exclusivamente, do ponto de vista do sujeito. Em filosofia chamou-se a esta “descoberta” perspectivismo e corresponde à evidência que ao mundo corresponde uma determinada fisionomia a qual é projectada e construída por todos nós: perspectivar e ver é uma construção, um projecto, uma intenção. No caso dos trabalhos de Vasco Araújo estes princípios servem de base para a construção de um trabalho que assenta sobre o tal princípio da encenação ou, se preferirmos, da instalação. E estão nesta situação quer os vídeos, quer os objectos: tudo é submetido a um princípio de instalação, a tudo é reconhecido uma atmosfera própria. Todas as coisas – imagens, texto, objectos – surgem integrados num ambiente que permite a sua leitura não enquanto elementos isolados, mas como peças de um conjunto ou totalidade.
Aqui encenação tem um âmbito mais vasto. Para além de corresponder a um mote estético e existencial, também diz respeito a uma espécie de revelação das formas originárias do seu trabalho. Em muitos deles a ópera é uma referência fundamental não só em termos musicais, mas em termos da racionalidade compositiva das suas obras. A encenação de que fala sublinha a necessidade de composição na qual, tal como no espectáculo da ópera, coexistem elementos de diferentes famílias: texto, musica e visualidade. Ou seja, cada obra é uma síntese (no sentido do movimento que a inteligência faz na descoberta das diferentes ligações entre as coisas e no establecimento da sua hierarquização), por oposição aos gestos estritamente analíticos: uma síntese dos elementos poéticos, visuais e materiais. Por isso na obra deste artista a estrutura não é meramente narrativa, os textos que escreve e de que se apropria precisam de ser ditos e ouvidos, precisam das imagens para o seu alcance ser mais vasto: o modo como é dito, o modo como é expresso é que é o garante do sentido. Veja-se Far de Donna de 2005: a história é a de um rapaz que descobre que é cantor no dia em que a sua mãe perde a voz. O eixo edipiano é evidente, tal como é evidente que o está em causa é a imagem universal de um certo tipo de personalidade, de comportamento e de fenómeno humano. De um certo modo, é a descoberta dos tipos de personalidade e de fenómenos sociais que Vasco Araújo está sempre a detectar, as referências clássicas (veja-se Hipólito de 2003, Hamlet de 2004, Jardim de 2005etc) servem-lhe não enquanto tique formal, mas como método de detecção que a natureza humana, no essencial, se vai mantendo idêntica: desde sempre que se espanta com as mesmas coisas, sofre dos mesmos males, comete as mesmas injustiças.
Se na ópera Araújo encontra um mundo de texto, voz e imagem, o espectáculo dramático que o artista tem em vista é o de Wagner, ou seja, é a compreensão da obra de arte como totalidade (Gesamtkunstwerk): um conceito que se estende do próprio artista até à recepção da sua obra, ou seja, trata-se de uma totalidade não só porque utiliza todos os elementos disponíveis para a construção da obra, mas também porque o espectador se vê envolvido numa experiência sensível total, uma experiência em que os cinco sentidos, a imaginação e a inteligência formam uma unidade indissociável que resulta uma poderosa unidade de sentido. Um bom exemplo é Sabine/Brunilde (2003) em que a instalação de dois vídeos funciona como um única obra: aqui a dimensão teatral é marcada através da utilização de cenários e da organização do espaço em anfiteatro (não por acaso a formação do artista é escultura). Nos dois vídeos – que funcionam como uma espécie de espelho simbólico – existe uma mulher que num caso quer cantar e não consegue e no outro conta a sua vida trágica, nos dois a personagem é a mesma, num canta, noutro diz na primeira pessoa a sua vida: a decisão sobre a verdade ou ficção dos factos narrados não é importante para a construção da experiência aqui em causa. O que move as imagens é a descoberta do modo como a identidade é tecida, a tensão da descoberta dos fios diferentes que cozem o tecido psicológico: aqui a figura universal é a de Brunilde, é a imagem mítica que serve ao artista de guia na descoberta do fenómeno em causa. E é esta enorme atenção ao outro – que descobre o estranho como o local onde quer ancorar o seu olhar – que podemos encontrar em muitos dos trabalhos de Vasco Araújo. A sua atenção é à linguagem e aos diferentes códigos comunicativos é enorme, é como se a linguagem (as palavras que se usam, o modo como se dizem as coisas, os gestos que se fazem, etc).
O lugar do diferente e do estrangeiro é um eixo importante no trabalho deste artista. Um exemplo é o vídeo Jardim (2005) em que as esculturas de pedra preta dizem versos de Homero. As citações estão todas organizadas à volta da experiência de se ser estrangeiro num lugar: o jardim, construído durante a ditadura portuguesa, simboliza a opressão e expressa os efeitos terríficos da política colonialista antes da revolução portuguesa. O mesmo acontece em The Girl of the Golden West (2004): uma negra comenta a triangulação amorosa da ópera de Puccini, La Fanciulla del West, mas fá-lo estendendo o âmbito dos seus comentários sobre a justiça e a injustiça à totalidade do mundo, colocando e recuperando questões fundamentais dos direitos humano e, sobretudo, acerca dos pontos cardinais que orientam as relações entre os seres humanos. Nestes dois trabalhos a pedra de toque está no modo como a uma mudança de perspectiva corresponde
Esta mudança de perspectiva mostra-nos que não são só os factos são dependentes das interpretações, o dictum nietzscheano de que não há factos apenas interpretações, mas que tudo depende do modo como é visto, que aquilo que se reconhece na paisagem total que é o universo depende do local em que escolhemos estar para as observar, pensar e julgar. Mas no caso de Araújo a questão central é o sublinhar do jogo necessário à construção da identidade e à descoberta que a intimidade é só mais uma construção humana feita não isoladamente mas no espaço público da comunidade humana. Este teatro universal de Vasco Araújo é composto por um esquema de múltiplos e infinitos reflexos: reflecte-se o meio em que se vive e compõe-se esse mesmo meio, é-se simultaneamente reflexo e superfície reflectinte. Um duplicidade que o artista explora até ao limite: o seu trabalho corresponde ao movimento de sucessivas descobertas dos ingredientes que nos compõe. No seu último trabalho, About Being Different, a densidade visual, musical é enorme. Sacerdotes e sacerdotizas de Newcastle (local em que o artista filmou o vídeo) falam sobre as injustiças cometidas contra aqueles que dada a sua orientação sexual são injustamente colocados nas margens da sociedade. Não se trata da questão do género, mas da detecção dos mecanismos que levam à exclusão.
Mas nenhum destes trabalhos é feito de teses ou teorias, são sempre experiências sensíveis com o mundo e depois com a arte. As consequências sociais, políticas e artísticas são um momento segundo. Por isso tudo se passa como no palco de um teatro onde existe um spot de luz forte apontado para tudo o que existe e assim podemos detectar os movimentos que acontecem em palco, desde os mais brutais aos mais subtis. As diferentes relações entre os elementos, as pessoas e as coisas que Araújo desenha e compõe são fruto de uma disciplina e exercício da atenção que tem como objectivo não a construção de um olhar que atravessa as coisas – como se estas fossem janelas a dar para um lado qualquer fora de si próprias -, mas um olhar que se quer instalar no centro daquilo que há, na intimidade de cada um como forma de descobrir as suas perplexidades, medos e visões.
originalmente publicado na ArtPapers, setembro/outubro, 2007
No comments:
Post a Comment