Tuesday, February 26, 2008

um mundo igual a este, mas ligeiramente diferente






 
















Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse um dia: para instaurar o reino da paz não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; basta apenas deslocar ligeiramente esta taça ou este arbusto ou aquela pedra, e proceder assim em relação a todas as coisas. Mas este ‘ligeiramente’ é tão difícil de realizar e a sua medida tão difícil de encontrar que, no que diz respeito ao mundo, os homens não são capazes de o fazer e é necessário que chegue o Messias. A mesma parábola na versão de Benjamin: Os chassidim contam uma história sobre o mundo por vir, que diz o seguinte: lá tudo será precisamente como é aqui; como é agora o nosso quarto, assim será no mundo que há-de vir; onde agora dorme o nosso filho, é onde dormirá também no outro mundo. E aquilo que trazemos vestido neste mundo é o que vestiremos também lá. Tudo será como é agora, só que um pouco diferente.” G. Agamben, A comunidade que vem, Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.44


Antes do mais, deve distinguir-se entre fotografia e imagem. A fotografia diz respeito a uma certa grandeza, a uma relação com o corpo, ao ponto de união (que é espacial e temporal) entre a fotografia e a vida de todos os dias, de todos os homens e de todas as coisas. No limite, pode dizer-se que a fotografia é um objecto. Trata-se de um objecto especial — porque diz respeito a outros objectos — contudo um objecto: está exposta, pendurada ou projectada na superfície, está em casa sobre a cómoda, a mesinha de cabeceira ou na parede. Pode ser um retrato, uma paisagem, um acesso – mas a fotografia tem sempre como condição o tornar-se coisa. A imagem não: ela pode ser um conceito, uma intuição, uma visão. No limite, e usando uma metáfora de Benjamin, a propósito dos poemas de Baudelaire, a fotografia é uma casa de imagens.

Aqui, interessa-nos a fotografia. Melhor dito: a fotografia de Daniel Blaufuks. Porque o seu mundo não é feito de imagens roubadas ao quotidiano, nem lhe interessa um registo tal qual o que simplesmente se vê, ou seja, não está no centro do seu trabalho um levantamento dos elementos visuais que habitam continuamente o campo de visão, nem os clichés visuais. A sua relação é com um mundo que corre mais fundo, mais próximo da origem, do inconsciente, do sem nome. Não é estranho ao gesto de Blaufuks a expectativa da redenção: o mundo que cria é uma promessa de ordenação, de beleza, de intensidade, de sensibilidade, de harmonia.
Neste mundo, tudo é igual ao nosso mundo, mas ligeiramente diferente. Lá, que é como Benjamin designa o mundo prometido, é a apresentação de qualquer coisa que é da ordem do pressentimento e da memória. E esta é a ligação essencial no trabalho de Blaufuks: aquilo que se espera está enraizado na memória, por isso a fotografia é uma ferramenta tão poderosa relativamente ao conhecimento daquilo que nunca se pode saber: o mundo prometido. O trabalho de Blaufuks é uma promessa, no sentido em que as imagens que torna reais são partilháveis, comunicáveis, experimentáveis, são acessos: a um ponto de vista, a uma experiência, a uma comunidade. Através das suas fotografias surge uma comunidade temporal e espacial: os homens e as coisas são quase como nós os conhecemos da nossa vida de todos os dias, mas ligeiramente diferentes. E é nesta ligeira diferença, que é ao mesmo tempo um intervalo e um abismo, que nasce o espaço em que Blaufuks trabalha, o lugar onde coloca a câmara e sobre o qual fica suspenso o seu olhar.

O mundo criado pelo artista é um mundo que quer salvar outro mundo, impedir a sua dissolução na mudez, no sem imagem, no sem forma. Por isso a ideia de álbum ou atlas lhe é tão conveniente: designa o esforço de fixar uma determinada compreensão do carácter misterioso que o mundo sempre tem. E a fotografia é o lugar onde as coisas e as imagens se acomodam numa unidade de sentido, unidade indiscernível, compacta e subsistente que permanece actuante e potente: continuamente projecta as suas consequências e sombras sobre aquilo que há.

Relativamente à sua própria actividade, escreve Blaufuks:

A fotografia é um espaço. A fotografia é uma memória. A fotografia é um texto. A fotografia é um postal.
A memória é uma imagem.” In Daniel Blaufuks, Setembro 

Espaço, memória, texto, postal e imagem parecem estar ao mesmo nível, como se entre as diferentes determinações apresentadas se pudesse fazer transições imediatas, mas a igualdade é só aparente. Cada elemento contribui para a construção de um campo no qual a fotografia surge a uma nova luz, mais nítida, mais rigorosa e com maior alcance. Ela é espaço porque é potência, local onde acontece o sentido e onde o ser actual daquilo que apresenta volta a ser potência, por isso é especial: lugar de metamorfose, de magia, de transformação. Trata-se de um espaço especial, porque é sobretudo abertura. A fotografia nunca se constitui como fechamento, mas sim como umbral: desenha uma linha de demarcação para lá da qual, ainda que se pareça em tudo como aqui, tudo é ligeiramente diferente. A determinação da fotografia como espaço — e note-se que não se trata do espaço da fotografia — afirma a sua natureza própria, a sua singularidade enquanto técnica e ferramenta expressiva.

A fotografia é memória porque a sua luta é contra o esquecimento: a fisionomia que traça do tempo — caracterização do ser-assim do momento, está presa a uma actividade rememorativa, lembrar os mortos, honrar a herança que se recebe e prestar contas aos dias que passam. No limite, a fotografia enquanto memória está ao serviço daquilo que exige não ser esquecido, que não se pode esquecer, que não se deve esquecer. Por isso, a sua tarefa também é ética, política, moral.

Ela é um texto e o seu ser-assim exige que seja lida. A metáfora da leitura é muito conveniente quer à relação que a fotografia estabelece com o mundo, quer à posterior relação que os seus visitantes e ocupantes estabelecem com ela: nós lemos a fotografia porque ela transforma o mundo em matéria de leitura. Ser texto é exigir uma actividade incessante de descodificação e de inteligibilidade que excita e põe em acção a totalidade dos poderes da inteligência e da sensibilidade do sujeito. Trata-se de anular a passividade e o carácter lúdico e de entretenimento que a fotografia pode ter. Não se trata de um manifesto, mas do estabelecimento das condições sob as quais a sua visão é possível. 

Existe um outro aspecto que é preciso sublinhar relativamente à compreensão da fotografia como texto. Ao exigir ser lida, a fotografia exige um outro, exige comunidade, partilha, encontro. Este jogo de leitura tem regras: só pode ler aquele que domina a língua, que aprendeu a gramática, que sabe dar significado às palavras, que consegue estabelecer com o texto uma comunidade de vida. A diferença aqui é que a fotografia é feita de imagens e está-se em crer que não é necessária uma aprendizagem da visão. O trabalho de Blaufuks é, precisamente, o oposto: sublinha a necessidade do aprender a ver, do saber colocar-se no sítio certo para que entre aquele que vê e a fotografia se possa construir um lugar de encontro. Porque, no limite, a leitura é não só o reconhecimento da existência de uma outra voz, de uma outra vida, de um outro, como também estabelece a possibilidade de nos podermos encontrar com uma infinidade de outros. O mundo que o Messias há-de trazer tem a mesma natureza: não é uma total ruptura com a realidade tal como a conhecemos e concebemos, mas partilha a nossa natureza, as nossas roupas, as nossas casas. A surpresa é que todos podemos reconhecer e identificar esse mundo por dizer respeito a qualquer coisa que se transporta na interioridade: tem a natureza de uma evidência.

A fotografia é postal porque lembra o que está longe, encurta a distância, anula a ausência. Ser postal é assumir a natureza compósita e organizada por diferentes camadas e materiais da fotografia: feita de imagens pré-fabricadas a que se acrescentam elementos próprios, íntimos. Na imagem que é postal projecta-se e constrói-se o carácter único do indivíduo e assim o postal — reproduzido infinitamente e em série — torna-se em coisa singular e conquista a sua aura.

Por fim, assumir que a memória é uma imagem é re-afirmar que toda uma vida, todo o mundo e todas as coisas têm lugar nas imagens: de tudo é possível formar uma imagem, um símbolo, uma alegoria. E a imagem diz respeito ao núcleo de todo o pensamento possível. O mundo que há-de vir é também uma imagem que se inscreve no núcleo sensível do complicado fenómeno da esperança, do ajustamento, da concordância. O trabalho de Daniel Blaufuks apresenta, constrói e promete imagens e nesta sua actividade descobre a diferença entre as coisas, as dobras onde o olhar em conjunto com o tempo se aninham.




Publicado originalmente em Daniel Blaufuks, O Arquivo, Um álbum de textos, ed. Vera Cortês Agência de Arte, Lisboa, 2008

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