1. Proximidades e Afinidades
“A sensação esvoaça como um bando de pássaros, ofuscada pelo esplendor da mulher. E, do mesmo modo que os pássaros procuram abrigo nos esconderijos da folhagem da árvore, assim também as sensações se refugiam na sombra das rugas, nos gestos sem graça em insignificantes máculas do corpo amado, a cujos esconderijos se acolhem em segurança. E ninguém que passe se apercebe de que é aqui, nos defeitos e nas falhas, que se aninha a emoção amorosa fulminante do adorador.” Walter Benjamin, “Rua de Sentido Único”, in Imagens do Pensamento, Obras escolhidas de Walter Benjamin, org., ed. e trad. de João Barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.
Dedos que se cruzam, gestos que se cristalizam numa imagem e se transformam em momento de intimidade. Dois rostos aproximam-se um do outro e atingem num beijo uma espécie de zénite e máxima intensidade. Pequenos instantes perpetuam-se e ficam definitivamente registados num desenho que, contrariamente a todas as expectativas, se impõe como uma evidência. Tratam-se de imagens básicas e fundadoras da vida emocional e volitiva de cada ser humano que, quando vistas a uma luz diferente, se transformam em momento de pausa, de recolhimento. Não o recolhimento da experiência religiosa, antes o recolhimento próprio dos que vêem o fundo originário de um beijo que se dá, da palavra segredada ao ouvido ou do encontro carinhoso entre duas mãos.
Nesta nova série de trabalhos de Pedro Gomes (Moçambique, 1972) os motivos nascem de imagens avulsas transmitidas pela publicidade e pelo cinema. Uma recolha que é um ponto de partida para uma reconstrução ou mesmo re-figuração dos elementos que se acumulam nas imagens veiculadas através dos placards publicitários e ecrãs. Estas imagens são o resultado de um processo colectivo de condensação: correspondem e são reflexo dos ideais e aspirações de uma determinada comunidade, num determinado tempo.
Quase se poderia dizer que na série “Contacto” de Pedro Gomes se assiste à transformação desses produtos imagéticos da sociedade de consumo em momento contemplativo. Este momento significa que o artista se transforma em instância de revelação desses esconderijos que Benjamin nos fala. Pega na superfície plana que os rostos quase perfeitos dos personagens aparentam possuir e obriga-se, e obriga-nos, a uma alteração do olhar. Uma alteração tal que a imagem simples e sedutora fica metamorfoseada. Nestes desenhos, onde o ferro quente fere o papel, assiste-se à transformação do rosto num local por explorar imenso e desconhecido. Não por se acreditar que o rosto é uma paisagem, antes por ser a única forma de dar a ver aquilo que num rosto ou num gesto se esconde, esses espaços mínimos onde as sensações se amontoam e residem. Estes locais de escondimento são as tais falhas que conferem a individualidade de cada um.
A pele que cobre os ossos, músculos, tendões e ligamentos de um rosto tem nos seus defeitos, rugas e marcas aquilo que o faz ser único e irrepetível. Podemos chamar a isto a sua expressão própria, esse elemento inalienável que pode encontrar parecenças, mas nunca uma igualdade – aqui reside a sua individuação. E parecem ser estes elementos que Pedro Gomes quer destacar e para os quais exige um olhar atento que guarde na memória os infindáveis caminhos que percorrem e marcam as superfícies. Parece contraditório, mas esta atenção ao particular revela-se capaz de agregar e subsumir todas as proximidades e elemento afins. Por um lado, um mergulho profundo na singularidade de cada caso, por outro a criação de territórios (rostos, mãos, lábios) e sem género, despossuídos de identidade individual que agregam a seu redor todo um universo de possibilidades.
2. A escrita da imagem
“Só quando copiado o texto comanda a alma de quem dele se ocupa, enquanto o mero leitor nunca chega a conhecer as novas vistas do seu interior, que o texto – essa estrada que atravessa a floresta virgem, cada vez mais densa, da interioridade – vai abrindo: porque o leitor segue docilmente o movimento do seu eu nos livres espaços aéreos da fantasia, ao passo que o copista se deixa comandar por ele. A arte chinesa de copiar livros era garantia, incomparável, de uma cultura literária, e a cópia uma chave dos enigmas da China.” W. Benjamin, op. cit.
A proximidade destes trabalhos de Pedro Gomes com a escrita vem do próprio processo de trabalho, do manuseamento que faz na construção dos seus trabalhos e do modo como a mão que constrói formas se deixa, quase cegamente, levar pela figura que quer construir. O ferro quente fere o papel e essa ferida, voluntariamente infligida no corpo daquilo que há, é análoga à escrita e à relação que a mão, deambulando pelo papel branco, possui com o objecto da escrita. Basta pensar em todas as imagens que a nossa cultura reservou para o acto da escrita: a mão que cobre o papel de arabescos, a caneta que marca a superfície a princípio lisa e sem mácula e a deixa irreconhecível, etc. Para o que aqui nos interessa perceber, deve dizer-se que o modo particular de desenhar de Pedro Gomes pode ser entendido como uma espécie de escrita cega sem objecto determinado. Uma escrita que se deixa tomar e levar pelos ritmos formativos e vitais daquilo que a sua visão capta e a mão agarra.
Não são elementos novos nos trabalhos deste artista, pode detectar-se uma continuidade relativamente ao modo particular com que aborda o papel e os diferentes materiais. Se pensarmos nas suas montanhas ou nos rostos queimados de “Linha de Fogo” (2000) percebemos que o seu modo de desenhar atenta sempre à natureza particular daquilo com que lida e estabelece uma relação quase violenta com a matéria própria do seu ofício: queima, rasga, oculta, fere. Um ‘modus operandi’ negativo e redutor de eliminação do excessivo.
Em todos os casos e com qualquer dos métodos, tratam-se sempre de imagens pertencentes ao território dúbio da figuração (felizmente que depois do expressionismo já todos sabemos que a figuração possui um alcance mais vasto que o que a tradição anterior nos fazia crer.) Este território cujas fronteiras são inexistentes, mas que possui um limite definido pela expressividade própria dos materiais com que se tece, é, no caso do trabalho de Pedro Gomes, alargado: a escala das imagens é alterada até ao ponto da sua quase desfiguração e de um quase irreconhecimento onde a fronteira entre reconhecer uma imagem e a sua total indescernibilidade é ténue – um local cujos contornos são semelhantes aos do local onde a linguagem se transforma em silêncio e mudez.
Com algumas ressalvas pode falar-se de uma escrita da imagem em que esta está a ponto de se transformar em verso – a sucessão dos traços e a justaposição das linhas criam um universo de sentido onde a palavra é dispensada, mas presente e actuante. A metáfora que aqui se está a tentar criar diz respeito à possibilidade de um poema feito de imagens, sem palavras, apenas manchas e feridas a cobrir o papel. São diagramas pictóricos que se transformam nas marcas de uma caligrafia ainda por descobrir: é como se a cada composto de imagens pudesse corresponder uma realidade linguística e poética.
Trata-se de uma situação próxima do abismo, face ao qual o espírito fica irremediavelmente enleado em elementos que dificilmente domina e as dimensões do interior e do exterior ficam definitivamente misturadas e indescerníveis. Chegados a este ponto torna-se impossível distinguir entre uma imagem e um verso, entre uma cor e uma palavra, entre a cadência pictórica e o ritmo linguístico. Entra-se num plano onde o único acesso só é possível através da metáfora, um território onde o operador da visão é analógico: tudo é “como se”.
A visão une-se à imaginação por ser esta a única instância das forças da inteligência a poder fornecer as condições de legibilidade do visível. No caso onde este parece fugir a qualquer convenção só a imaginação, através de uma actividade intensa da criação de analogias e metáforas, possibilita o olhar: o procedimento analógico passa a ser condição da inteligibilidade do visível. Com estes novos trabalhos de Pedro Gomes estamos nesta situação.
3. A imagem publicitária e o desejo: a armadilha contemporânea.
“Moinho de Orações. Só a imagem que se oferece à vista alimenta e mantém viva a vontade. Já a mera palavra pode levá-la, quando muito, a inflamar-se, para depois continuar a arder em lume brando. Não há vontade plena sem a percepção precisa da imagem. Não há percepção sem activação nervosa. E a respiração é o seu factor de regulação mais preciso” W. Benjamin, op.cit.
Parece ser condição da contemporaneidade o viver rodeado por imagens publicitárias. São imagens com estratégia: incitam o desejo, promovem determinados produtos ou formas de vida que passam a ser motivo de ambição. Perante elas o homem das cidades, rodeado que está por uma imensidão de apelos e motivações, deixa o seu lugar habitual de cidadão ou transeunte, para se transformar num animal manipulável pronto a ser capturado. Presa da sua própria vontade, caracterizada pela infinitude de objectos que a preenchem e inquietam e pelo sofrimento que está sempre a promover, o ser de desejo que é o homem afunda-se numa rede de continuas necessidades e quereres. Com estes constrói um mapa da sua própria natureza que se revela labiríntico e sem saída: um emaranhado complexo de caminhos que não levam a lugar algum.
“Todo o querer procede duma necessidade, isto é, duma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para um desejo que é satisfeito, dez, pelo menos, são contrariados; além disso, o desejo é demorado e as suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta e é, parcimoniosamente, medida.” (Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, I vol., §38)
Estas palavras são reveladoras da armadilha que o homem cria ao próprio homem. Parece ser condição da nossa pós-modernidade o estar sempre prestes a sucumbir à tentação do desconhecido sedutor imposto pela máquina do negócio, da venda e do marketing. Espírito do tempo ou natural tendência do humano, o que dá que pensar é esta sempre existente tendência ao infinito, ao nunca completo e infindável espaço pelo qual o desejo se estende.
Neste encontro de mãos e lábios, as tensões próprias das imagens de grande e fácil consumo são apaziguadas – transformam-se no tal momento contemplativo – e surgem como paisagem sedutora e pacificadora. Aqui já não estão em causa géneros determinados ou indivíduos. A imagem cria-se e desdobra-se num plano que é o seu grau zero e no qual é a maior generalidade que se pressente. Dirige-se à maioria e ambicionam a generalização. Quer ser de todos e quer ser todos.
Nestes papéis queimados estão todos os homens vivos – isto é, todos os beijos e todas as mãos estão ali presentes. Esta espécie de metáfora permite ao artista não individualizar o sujeito: o que traz consequências à representatividade particular que estes trabalhos parecem mostrar. Os seres presentes deixam de ser indivíduos e transformam-se numa espécie de categorias visíveis – é como se aquelas figuras valessem por todos os que vivem, já estiveram vivos e os que hão-de vir. Com o nome tradição recolhe-se uma herança e deixa-se uma herança.
Está-se num terreno em que a intimidade e o desejo são construídos com base no exterior, numa espécie de derramamento nas ideias de consumo e satisfação que o mundo constrói e velozmente transmite – tudo se passa como se isso se conseguisse colar de tal modo ao corpo que passa a ser uma espécie de segunda pele, mais uma sua forma tão característica como todas as outras: um traço seu. A partir de determinado momento – que não conseguimos determinar qual – já não se sabe o que é originário e o que é construído com base na interacção continua com os haveres e ritmos do mundo. Redefine-se e redesenha-se a identidade, o género, o desejo.
“Poder-se-ia dizer: Aqui está uma imagem, mas não podemos dizer se está certa ou errada até sabermos o que é suposto ela dizer. Agora, a imagem deve lançar as suas sombras no mundo.” Ludwig Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916
Parecem ser estas sombras que Pedro Gomes quer possuir e estabilizar numa forma, ou seja, quer conquistar um instante que permita a compreensão. Não estão em causa críticas a um determinado sistema ou estado de coisas, antes é como se o artista fosse aquele etnógrafo (veja-se Hal Foster, “The Artist as Ethnographer”, The Rerturn of the Real) que assume os desejos, angústias e características do seu tempo como a matéria da sua própria criação – mas poderá ser de outro modo?
Que os gestos com que o artista rasga o papel estejam em continuidade com os gestos quotidianos, parece ser um facto que desde que há arte e artistas se tornou claro. A descontinuidade do trabalho artístico reside na capacidade da criação de sentidos a partir do existente. O elemento perturbante, porque novo, é que esse gesto se constitua não como crítica ou disjunção, mas que venha apor e devolver ao real as imagens por ele próprio produzidas. Uma espécie de retorno, cruel e por vezes desumano, em que se verificam as assimetrias produzidas pelo homem enquanto agente de criação e enquanto prolongamento de um corpo social e biológico que o define.
Em “Contacto” existe esta consciência, porém ela é transformada em gesto redemptor. O horror da máquina fazedora de desejos, incompletude e sofrimento – a actividade publicitária e os ideais impostos através de imagens dominantes – é, usando como método a observação e o trabalho topográfico de recolha das características e acidentes dos terrenos onde se move, anulado. O ânimo entra não em colapso improdutivo, mas renuncia a qualquer movimento brusco ou desatento. Trata-se quase de um exercício ascético: o desejo é anulado e com ele o futuro – não desejar significa não exigir ao tempo futuro que venha, mas sim viver num ponto do tempo presente que se prolonga e se torna extenso.
5. Perturbações da escrita da imagem
“A escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma existência autónoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos reclamos e submetida às brutais heteronomias do caos económico. É esta a severa escola da sua nova forma. Quando há séculos, ela começou a deitar-se transformando-se de inscrição na vertical em caligrafia que repousava na inclinação da estante, para finalmente encontrar no livro impresso a sua cama, hoje recomeça, igualmente de forma lenta, a levantar-se do chão. Já o jornal se lê mais na vertical do que na horizontal, e o cinema e o reclamo forçam definitivamente escrita a assumir uma verticalidade ditatorial. E antes de os nossos contemporâneos poderem abrir um livro já um denso turbilhão de letras em movimento, coloridas, concorrentes, lhes caiu diante dos olhos, tornando muito mais remotas as possibilidades de eles se concentrarem no silêncio arcaico do livro. As nuvens de gafanhotos da escrita, que hoje já encobrem o sol do pretenso espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão mais densas a cada ano que passa. As renovadas exigências da vida dos negócios vão mais longe.” W. Benjamin, op. cit.
Re-fotografar, re-desenhar, re-capturar são algumas características dos trabalhos de Pedro Gomes. Neste processo de fazer um certo tipo de imagens, que ficam indelevelmente guardadas na memória, realça-se um poder evocativo. O espaço em que trabalha é um espaço virtual, sem dúvida, mas que transporta consigo as marcas da vida e dos locais onde ela é vivida. Num processo, levado quase ao absurdo, de prolongar momentos que pela sua natureza são inefáveis, instáveis e, na maior parte das vezes, irrepetíveis, este artista consegue encontrar um refúgio das exigências da vida dos negócios. Não se trata de fugir a um enquadramento temporal, nem de tentar criar uma ilusão de paraíso onde as expectativas são cumpridas e a estrutura de desejo apaziguada. Antes construir um local onde os tais habitantes das metrópoles encontrem o modo indicado da visão e da leitura das imagens.
O processo de verticalização da escrita que Benjamin identifica é acompanhado por uma alteração das condições de inteligibilidade e leitura dos visíveis. Essa verticalização é acompanhada por um acto de tornar mais público, mais sujeito e exposto as intempéries dos olhares e dos ritmos.
Seria interessante perceber, ainda que este não seja o local, de que modo a monumentalização das imagens e das palavras, que inundam a paisagem urbana, contribuí para uma redefinição não só da vida social, como da própria intimidade de cada um. Face a elas o olhar dirige-se para cima, para um local em que o seu aparelho perceptivo tem dificuldade em permanecer e aquilo que é registado é uma sensação de quase euforia: não existe nada de transcendência, apenas o adensar do conjunto de percepções e desejos. É como se estas imagens materializassem uma espécie de ideal de felicidade que a todo o custo se quer alcançar.
A suavidade destes trabalhos de Pedro Gomes é sinal da sua origem. Não se tratam de desenhos românticos, mas conseguem através da dureza que os origina fixar-se num local onde o corpo afectivo é reforçado: as energias primárias são trazidas novamente para primeiro plano, longe das máscaras com que o progresso e a suposta civilização, positiva e materialista, lhe cobrem o corpo. “Contacto” é, deste modo, um conjunto de desenhos cuja composição, um tecido esburacado por um ferro quente, é uma imagem para falar do carácter incompleto e descontinuo dos nossos desejos e emoções.
6. Conclusão.
“A possibilidade de cada caso individual esclarece-nos acerca da essência do mundo.”
“No facto de haver uma regra geral, pela qual o músico pode extrair a sinfonia da partitura, através da qual se pode deduzir a sinfonia da estrias do disco fonográfico, e segundo a primeira regra de novo a partitura, nisso justamente consiste a semelhança interna destas estruturas aparentemente tão diferentes. E essa regra é a lei da projecção, que projecta a sinfonia na notação musical. É a regra da tradução da notação musical para a linguagem do disco fonográfico.”
L. Wittgenstein, Tratactus Logico-Philosophicus
Este ‘fenómeno’ que Wittgenstein apresenta continua a constituir, em parte, o coração do mistério da representação. Estejamos nós a falar de fotografia, de pintura ou outro modo de representação qualquer (a própria imagem projectada ou vista na televisão), como no caso destes novos trabalhos de Pedro Gomes, os mecanismos precisos que possibilitam a representação e a tradução dos objectos em imagem não são facilmente dominados – se é que algum dia esse domínio pode acontecer. Em todos os casos as imagens representam uma dada realidade, uma pessoa ou objecto. Conseguem-no em virtude da partilha, com o representado, de um ou mais elementos – ou seja, posso reconhecer o meu cão numa fotografia porque entre ele e a sua imagem captada fotograficamente existem elementos comuns: a certos elementos na fotografia chamo os olhos do meu cão, o seu nariz, a sua cabeça, etc. (veja-se sobre esta questão o livro de E. H. Gombricht, Art and Illusion).
Mesmo que sob o nome de iconografia ou convenção se pretenda explicar em profundidade este processo, existe uma pergunta que subsiste devido à sua pertinência e natureza irresoluta: trata-se simplesmente de uma ilusão? Ou de um processo histórico de estabelecimento de convenções que nos permitem viajar entre a representação e o representado e estabelecer afinidades e identidades? Porque não é devido à partilha de atributos biológicos que posso reconhecer o meu cão numa fotografia ou num vídeo (as imagens não são o cão), mas o facto é que se dá uma operação inegável de reconhecimento porque uma certa comunidade é estabelecida entre as duas realidades distintas. O cão não é composto na vida real pelos elementos que constituem uma imagem fixada em película, do mesmo modo que às reacções químicas que possibilitam a fotografia não corresponde nada na vida real. Ou será que corresponde? O certo, e esta é uma exigência lógica, é que tem de existir um elemento comum para que as transferências sejam possíveis.
Wittgenstein resolve bem estes paradoxos ao transformar o “quê” do mundo no seu “como”. Expliquemos: ao que há só temos acesso através das suas características visíveis e descritíveis, ou seja, que é no modo particular de expressão de cada coisa que a verdadeira natureza de um rosto se deixa ver.
No caso da série de trabalhos “Contacto” de Pedro Gomes parece que o caminho que ele pretende traçar é o que começa nessa estrada que um rosto e um gesto possuem para aí descobrir toda a potencialidade expressiva e figurativa que neles habita. Parecem trabalhos sem género e sem filiação evidente, mas podem inscrever-se numa lógica de atenção e mergulho no real e nas imagens que continuamente rodeiam e formam o quotidiano. Neste caso, parece que se está face ao gesto daquele que quer seguir o rasto que as coisas deixam – aqui trata-se de perseguir as pegadas, as marcas e os vestígios que as imagens massivamente consumidas deixam na memória e de perceber os sinais que imprimem na construção do desejo e da afectividade.
este texto, inédito, foi escrito a propósito a exposição de Pedro Gomes "Contacto", no Círculo de Belas Artes de Coimbra em Janeiro de 2005
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