Thursday, March 27, 2008

Exposição Jorge Feijão na VPF





Sub specie aeternitatis*

Wittgenstein numa conferência sobre ética, fala do desespero que sentia quando tentava dizer alguma coisa que verdadeiramente tivesse valor. Este desespero era o sintoma da dificuldade em fazer com que a linguagem disse-se aquilo que ela nunca poderá dizer: o bem, o belo, a ética, a estética. Para completar esta imagem o filósofo, descreve esta tentativa em encontrar a palavra certa, a palavra que salva, como uma corrida desesperada contra as grades da nossa prisão.

Da metáfora de Wittgenstein toma-se a lição, ou aprofunda-se a evidência, que o humano é um ser numa prisão: preso à linguagem, ao mundo, ao campo visual. As grades desta prisão são constituídas pela experiência, a cada dia renovada, que o tempo tem um limite e o espaço é limitado. Nesta nova série de desenhos de Jorge Feijão existem duas prisões que não são para os nossos corpos, mas para a matéria, pulsional, erótica e muitas vezes grotesca, onde a arte vai buscar alimento. Matéria, em permanente metamorfose, que arde dentro das grafites, e invisível nas folhas de papel.

Nos outros desenhos também se experimenta o ‘estar-se preso’, aí o elemento de aprisionamento que impede a saída é o próprio mundo que, ao aparecer sub specie aeternitatis prescinde da nossa presença e assume-se como entidade regulada por leis internas de movimento: mas, neste caso, ficamos do lado de fora a querer sair do vazio, do infinito, do eterno e a querer entrar na plenitude mundana, na finitude, no tempo presente, na prisão que é o mundo. Este fez-se objecto de contemplação — por isso está pousado sobre um plinto —, ficou frio e o nosso amor só se pode expressar sob a forma de exercícios do olhar. Ver assim o mundo significa vê-o como objecto só alcançável através da contemplação e dos exercícios mais extremos da espiritualidade.

Esta contemplação é paradoxal porque a visão sub specie aeternitatis tem na experiência do limite o seu primeiro sinal e na prática artística este é um território fértil. No caso de Jorge Feijão os seus desenhos começam por conhecer um primeiro limite na folha de papel, depois na figura e, depois, no seu próprio gesto. Por isso muitas vezes os desenhos parecem querer fugir da superfície, outras vezes transformam-se em nebulosas, centros de acumulação de matéria e energia a que nada talvez possa corresponder. Muitos projectam sombras e transformam o ponto de vista do espectador em campo de escondimento, lugar a partir do qual só se podem ver vultos, sombras, fantasmas e nunca as coisas reais.

A cada desenho é o nosso olhar que, através da presença da negatividade introduzida pelas sombras e pelo sem forma, se vai purificando do excesso e, paulatinamente, construindo o local de onde se pode ver o mundo. O “biombo” de Jorge Feijão é um desenho-síntese porque corresponde ao reconhecimento da matéria humana como seres condenados a espreitar por entre as fissuras das camadas rochosas de que as coisas são feitas: ficamos sempre na sombra e mesmo a luz que recebemos é a que sobra do outro lado, aquela que é emanada pelo eterno que se esconde sempre atrás do “biombo”.

*literalmente, sob a forma da eternidade

texto escrito para a exposição de desenhos de Jorge Feijão na VPFCream Art de 27 de Março a 3 de Maio

Saturday, March 22, 2008

Borremans: Notável

Cine-pintura e o ponto de vista do pintor







Depois da apresentação no prestigiado De Appel em Amsterdão, apresenta-se agora no CAV "Weight” de Borremans, literalmente peso, que é uma exposição de pintura. É neste género que se inscreve o modo como olha para os corpos, gestos e objectos que compõem o seu campo visual. Tudo surge numa relação intensa com o espectador e inserido num lógica de composições pictórica.

Nesta co-produção entre as instituições holandesa e portuguesa, apresenta-se uma relação inédita entre vídeo e pintura o que faz desta exposição um momento singular no pensamento sobre a natureza daquilo que é a pintura.

Ainda que se trate sempre de pintura, as obras desta exposição têm nos objectos vídeo e pintura as suas materializações, porque mesmo os primeiros são assumidos, e percebe-se bem porquê, como filmes-de-pintura. A premissa é que o que determina estas obras — ocupadas com temas clássicos do corpo, suas máscaras e gestos — é que não existe qualquer tipo especialização num único meio, mas que o predomínio é o do ponto de vista da pintura. Fazem-se transições entre os diversos suportes e percebe-se que a questão deste trabalho não está na especificidade dos meios, i.e., no carácter problemático das diferentes disciplinas artísticas, mas na atmosfera que transita em todas as instancias de materialização do olhar.

Não significa que entre o desenho, a pintura e o vídeo se possa estabelecer uma relação de igualdade, mas entre eles podem fazer-se rápidas sucessões e transições onde aquilo que se apreende diz respeito a um determinado modo de fazer nascer as figuras. Este traduz-se, no caso de Borremans, numa arte que vem de longe. A atmosfera que envolve cada um dos “temas” dos seus trabalhos tem ressonâncias ancestrais, recebe ecos dos tempos em que o olhar se espantava com a possibilidade do gesto, inscrito numa folha ou numa tela, se poder transformar numa imagem, numa representação, num fragmento do mundo. No limite, trata-se do fazer antigo da pintura.

Como escreve Delfim Sardo no catálogo da exposição, está em causa um fazer que se radicaliza “no corpo e na sua representação, não a partir da metamorfose, mas sobre a sua alteração do adereço, do gesto, da atitude e globalmente assente sobre o carácter subtil, débil e por vezes patético do pormenor.”

Os filmes deste artista adensam a trama contemplativa destas figuras: são filmes circulares e hipnóticos, aos quais escapa a lógica narrativa habitualmente associada à imagem em movimento. O isolamento natural dos seus personagens — irremediavelmente sós e sem redenção possível — destituí-os de quaisquer qualidades psicológicas e a única densidade que lhes é possível vem da espessura da tinta, da iluminação da sua volumetria, do contraste entre fundo e superfície, ou seja, do seu interesse enquanto matéria para a pintura.

A frieza destas pinturas é a sua coroa de espinhos e de glória. Por um lado, assume a as figuras pintadas como máscaras metafísicas da morte — os personagens de Borremans inscrevem-se numa zona limiar entre a vida e a morte, o real e o fantasmagórico, o espectro e o orgânico —, diria Genet: trata-se de uma arte destinada à imensa comunidade dos mortos. Por outro lado, celebra a figura humana como tema imortal da arte, lugar do fascínio do olhar e que seduz continuamente o gesto do artista.




Weight
Michaël Borremans
Comissário: Delfim Sardo
Centro de Artes Visuais de Coimbra
De ter. a dom. das 14h às 19h
Até 8 de Junho

exte texto foi publicado, numa versão mais reduzida no DN

Sunday, March 16, 2008

Breviário de Estética




Benedetto Croce (1886-1952) é um dos nomes grandes do pensamento italiano, além de um conhecido lutador contra o fascismo. No volume agora editado em português, reúnem-se um conjunto de conferências, não dadas, pelo filósofo sobre os problemas da arte.
As relações entre arte, sociedade, política e pensamento são os fios condutores de cada um dos ensaios reunidos neste “Breviário de Estética.” A abertura, que não podia ser mais oportuna, é dada por um texto que tenta responder à pergunta “o que é a arte?” Longe de Croce tentar uma abordagem dogmática ele assume a obra de arte, qualquer que seja a sua forma, como abertura para explorar as leituras da arte como intuição, como acção, como demora. Mas é na polaridade entre forma e conteúdo que Croce sintetiza a sua resposta, a qual se transforma ela mesma num problema.
No limite, a arte diz respeito a um conjunto de problemas, questões e vivências cuja riqueza está localizada na sua heterogeneidade e multiplicidade de aspectos formais, materiais e intuitivos. Este “breviário” é uma das melhores introduções ao problema da equivocidade dos conceitos que se utilizam para dar conta da experiência artística.

Breviário de Estética

Benedetto Croce

Edições 70