Saturday, April 12, 2008

Julião Sarmento: abstracto ou figurativo?






O conceito "Sarmento puro" (pinturas com fundos brancos, sobre as quais silhuetas de mulheres são esboçadas, e onde a relação com a pulsão erótica é uma constante) sofre com estes novos trabalhos uma redefinição. A linguagem formal do artista sofre um alargamento de âmbito e a relação entre figuração e abstracção é abalada. Aqueles que olham para a pintura, e que habitualmente conhecem a tipografia acidentada das telas, sabem que esta distinção não revela algo acerca da natureza do acto do pintor, mas sim acerca do modo como o olhar humano "lê" as inscrições sobre a tela. Para os pintores, a pintura é sempre e só pintura, e nunca abstracta ou fugurativa, isto ou aquilo. Por isso é que Sarmento é veemente ao afirmar que mesmo que não se reconheçam imediatamente figuras elas, de algum modo, estão lá. Exige-se é um esforço suplementar para o reconhecimento da imagem.

A razão do abandono desta distinção prende-se com o facto antropológico de o olhar humano ser sempre fragmentário, parcial, abstracto. Esta é uma possível intuição do artista, face à qual o desejo pelo outro deixa cair a sua máscara sexual e torna-se em esforço de querer ver. Parecemos ouvir um múrmurio que diz: "deixa-me ver-te! deixa-me ver!" E é o nosso olhar enquanto desejo de visão que estas pinturas nos devolvem. É como se fossem um espelho, que sob a forma do desafio do reconhecimento daquilo que a pintura representa, espelham a natureza complexa do olhar humano.

Também o processo de trabalho do artista conhece uma nova formulação. As pinturas são construídas a partir de pequenos desenhos que depois foram serigrafados sobre a tela e que são acumulações das impurezas (pós, desperdícios, etc.) do atelier do artista. Um processo que é uma espécie de junção dos paradigmas da mecanização e do trabalho em série da serigrafia, com a vida secreta do atelier que deixa marcas e sinais secretos nos desenhos.

A serigrafia, trabalhada como original, transforma o espaço da tela numa zona de tensão entre aquilo que os olhos procuram e o que acontece no interior da visão. Os pontos que ocupam o espaço, as discretas manchas de cor e os textos citados são factores que excitam a imaginação a procurar referências a partir das quais se possa organizar a diversidade do campo visual.

A geometria destas construções são próximas das de uma paisagem. Mas esta é aqui um lugar interior que aquele que experimenta as obras tem de construir. Tal como os textos presentes, estas pinturas são para ser lidas, é preciso fazer sentido daquilo que o olhar percebe. A metáfora da leitura é fértil como figura para designar o esforço de visão a que o espectador é obrigado: da mesma forma que olhar para as letras impressas de um livro não implica a sua leitura, também o olhar passivo para estas pinturas não chega para a sua visão. E é na distinção entre "olhei, mas não vi" e "olhei e consegui ver" que devemos filiar o trabalho de Julião Sarmento. É na passagem de um paradigma a outro, na passagem de um estado a outro, que as pinturas encontram o seu ponto de maturação.

Se a figura feminina, e altamente sexualizada, está ausente nestes novos trabalhos, o desejo pulsional e erótico mantém-se. Expresso na formação de uma espécie de álbum das diferentes espessuras e tipos psicológicos e no desenho dos recortes topográficos de personagens que se pressupõe existir em cada pintura. O conceito de tipo é axial: cada pintura é um continente, um individuo, uma totalidade e cada uma cria um tipo de personagem diferente — ora é o psicótico, o aventureiro, aquele que deseja, aquele que foge, aquele que tem medo, aquele que procura. O espaço aberto — que funciona quase como uma fuga — é o lugar de construção por excelência: completa-se a pintura com o indíviduo que a experimenta, complementa-se o espectador no encontro com o outro representado pela pintura.

A palavra não é neste contexto um operador narrativo, mas poético. E serve ao artista como mecanismo de entrada em diferentes zonas de intensidade. É como se a linguagem tivesse o papel de condensar os sentimentos pictóricos que o outro possui e, assim, poder reconhecê-lo, vê-lo.

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texto publicado com alterações no DN
fotos: José Manuel Costa Alves

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