Fios de ouro para guardar os corpos dos homens
Como escreve Fernando Cocchiarale num texto sobre a artista: “entre as tradições populares, cultivadas pelo realismo social, dominante na arte do país, que tornava os artistas reféns do passado, e a disciplina inerente ao construtivismo, que lhe permitia projectar o futuro, preferiu correr os riscos de apostar no novo.”
Pape esteve, com Lygia Clark e Hélio Oiticica entre outros, na frente do movimento de vanguarda (1950-1960) mais importante e mais fértil que a história da arte do Brasil conheceu. Tratou-se de um momento em que um colectivo utilizou sua raiz local e a sua história conturbada para entrar em diálogo com as dinâmicas criativas mais importantes que aconteciam nos EUA e na Europa e sobre esse encontro construir um discurso próprio, relevante e pertinente. Foi neste contexto que Pape abriu os seus trabalhos a contaminações de tal modo importantes que escapou à habitual sorte da arte feita no terceiro mundo. Não só um certo espírito do tempo lho exigia, mas a sua própria personalidade artística tinha como imperativo a acção de derrubar limites, inverter fronteiras, transformar o constrangimento em possibilidade.
O seu trabalho é universal e não se assume como comentário ou diálogo com as questões antropológicas ou sociais (ainda que sejam aspectos presentes) da sua realidade social. Os gestos de Pape expressam a valorização da experiência que rompe e rasgas qualquer fronteira: dos géneros, dos processos, da forma, da matéria, da nacionalidade, da língua. A metodologia foi a fusão, com consequências na produção dos seus objectos, entre a razão e a sensibilidade, o norte e o sul ou, como escreve Cocchiarale, o olho e o espírito.
As suas obras são lugares de transição: recusam uma denominação especial e exigem uma total integração no espaço de todos os dias, de todos os homens e de todas as coisas. Através deste aspecto Lygia Pape transforma-se numa espécie de poetisa: recorre àquilo que todos têm sempre ao alcance da mão para criar as maiores intensidades, perplexidades e alcançar as experiências mais radicais. É através do esforço continuo de contaminar a vida com a arte e, sobretudo, rasgar o corpo de culto e fetichista em que as obras de arte se fecharam e lá introduzir a matéria viva. E o artista é aquele que suja as mãos com as coisas da vida.
Os recursos que utiliza para a concretização deste seu método são sempre os mais simples e é por isso que são obras tão inesperadas. O espanto do desavisado espectador é sobre a possibilidade de se conseguir com tão pouco criar momentos de tão intenso espanto. Nas obras que agora estão expostas em Lisboa é esta a experiência a que é impossível ficar indiferente.
As suas “Tteias” parecem fios de ouro que desenham formas especiais no espaço, melhor são fios que criam o próprio espaço. Abrem zonas através das quais o nosso corpo orgânico pode penetrar e tomar consciência da sua dimensão espacial. É este mesmo corpo o elemento que permite criar as variações: do seu movimento nascem zonas de diferentes intensidades de luz e profundidade. A matéria é encantatória e não tem princípio nem fim: as suas extremidades diluem-se com o chão, com o tecto e com o nosso próprio corpo. Seguir as linhas é uma actividade que não tem fim, só conhece suspensões momentâneas: são lugares contemplativos que Pape nos deixou. Lugares onde é a vida que activa a potência que está guardada por delicados fios de ouro. Mas também somo nós que ficamos guardados no interior desses tecelares ancestrais: a nossa memória, as nossas imagens, a nossa história sensível.
Exposição até aos finais de Julho na Galeria Graça Brandão de Lisboa
Texto publicado com alterações no DN
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