Vanda e Ventura enquanto heróis . Ou a ciência-ficção de Pedro Costa*
Nunca se sabe bem o que dizer de um cinema como o de Pedro Costa. A princípio parece ser uma espécie de anti-cinema: nega o texto, os actores, a produção e deposita nas mãos dos espectadores uma sequência de imagens (belas, sempre muito belas a lembrar as temperaturas, texturas e profundidades antigas) que não constituem uma narrativa tradicional, nem contam uma história. Também não é um cinema de tese ao gosto intelectual europeu, produzido para fazer demonstrações politicas, sociológicas, filosóficas ou poéticas, tal como não se situa na esfera do documental. Se fosse preciso sintetizar estes filmes isso só seria possível em termos da sua energia e, assim, ter-se-ia de dizer que estes filmes são um choque: sensível, cromático, sensual, ético, humano.
Pode pensar-se estar em causa um cinema político, porque tem todos os ingredientes para o ser: os personagens são imigrantes ou, como diz Jacques Rancière, deslocados, a acção passa-se numa bairro de lata, as pessoas consomem droga, vivem uma vida dura, demasiado dura. Mas depois não há policias, nem políticos, nem discursos sobre a pobreza, a globalização ou a integração..
O bairro das Fontainhas, bairro que Pedro Costa assume como um pequeno estúdio, não é a ilustração de uma situação socio-politica. Filmar as Fontainhas constitui um sinal da radical diferença desta cinema, porque esta escolha significa o acto de renuncia à composição de cenários para “poder contar histórias” (Rancière): e as que conta são as mais simples, cruas e directas, por isso, exigem tempo e espaços de pensamento. O bairro é para Costa o “espaço ideal para pensar”. E todos os seus gestos — lentos, muito lentos — restituem esse pensamento feito espaço: o plano fixo, aprendido com Ozu, e a certeza que “pode fazer-se um filme com uma lâmpada, um sofá e um ramo de flores” são o seu suporte. E é quando se perdem as certezas do suposto género a que pertencem estes filmes que começa o cinema de Costa, e ai, como diz Bénard da Costa, surpreendem-se filmes de rituais e mistérios
O plano fixo leva a que cada um individualmente descubra os movimentos e faça os travellings: porque não só “o movimento está na realidade e não na câmara”, mas tudo está sempre em movimento. A imobilidade é uma ilusão, por isso afirma “para mim não existem planos fixos.” E são as palavras e as presenças que introduzem variações à imobilidade aparente do plano e inscrevem acontecimentos nos corpos reais que a câmara capta. Não se trata de uma simples ideia de cinema-verdade, Pedro Costa ainda que tenha fé no cinema — e não em todo o cinema, mas naquele de Ozu ou dos Straub —, sabe que a realidade é mais forte e surpreendente que qualquer efeito cinematográfico, por isso o cinema está sempre ao serviço do real e das pessoas: “dos filmes as pessoas saem maiores, mais belas, mais...” diz o realizador.
Estão em causa contínuos exercícios de “aproximação ao segredo do outro” (Rancière). Por isso é que à magia do cinema (no sentido corrente e comum) Pedro Costa prefere uma mecânica de “memorização dos dias, das palavras, dos gestos, dos passos” e desta memorização surge “um terceiro que já não é o Ventura, que já não é a Vanda, que já não sou eu, que é e não é estranho às nossas vidas, e que caminha ao nosso lado ao longo de todo o filme” (Pedro Costa e Rui Chafes, Fora!Out! Fundação de Serralves, 2007). Ventura e Vanda são dois personagens dos filmes de Costa, forças essênciais que No quarto de Vanda (2000) e em Juventude em Marcha (2006) atingem a sua maioridade. E são existências que extrapolam a pura esfera cinematográfica e tornam-se reais, próximas do corpo sensível, tocam os olhos e ultrapassam-nos.
Ventura e Vanda são duas presenças heróicas e, como todos os heróis, não conhecem a redenção, o descanso, a felicidade ou o amor, permanecem num estado de permanente exílio, sempre estranhos, sempre distantes, sempre fora. E como todos os heróis não conhecem um final feliz. Ventura permanece, nas palavras de Ranciére, um “errante sublime, uma personagem da tragédia” e Vanda uma mulher maldita quase feliz, quase reabilitada, quase capaz. Mas é este heroísmo que impede o desvanecimento da sua presença, são pontos que rompem a indiferença e permitem que percebamos não estar sós.
Os personagens destes filmes não são bem personagens, porque Pedro Costa nunca pensou “numa personagem, verdadeiramente o que me interessa é a pessoa: Ventura ou Vanda. Nunca pensei nas personagens que eles podiam interpretar, foram eles que decidiram fazer-se personagens. É óptimo que se tenham convertido em personagens, porque isso significa que se tornaram exteriores a eles mesmos e começaram a procurar a memória das pessoas que conheceram, da mãe, do pai.” Um afastamento que possibilita a sua transformação em lugares de reconhecimento universal do outro.
Em Juventude em marcha Ventura tenta ensinar uma carta de amor: “nha chrecheu, meu amor / o nosso amor vai tornar a nossa vida mais bonita, pelo menos por mais trinta anos. / Pela minha parte, torno-me mais novo e volto cheio de força. / Eu gostava de te oferecer cem mil cigarros, / uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, / um automóvel, / uma casinha de lava que tudo tanto querias, / um ramalhete de flores de quatro tostões.” Estes versos, inspirados no poeta Desnos, , transformam-se nas nossas próprias palavras. Por isso, esta carta não é só de Ventura, mas também dos outros personagens, é do filme e, sobretudo, é nossa, transforma-se em matéria sensível: um corpo a tocar outro, um corpo que guia outro e lhe conta como o mundo é.
Vanda e Ventura são essenciais no método de Costa (porque existe um método na maneira como este cineasta trabalha: existe preparação, pensamento, um modo de montar e relacionar as imagens umas com as outras): é desta atenção (que tem a natureza de uma aflição) ao vivo que se alimenta a sua crença no cinema, porque é através dele que estas regiões humanas podem aparecer. E é esta origem da beleza das suas imagens: uma luz vinda dos rostos humanos, não detrás, não por cima ou ao lado, mas lá de dentro. Uma beleza ancorada no modo como mostra a luz que habita no interior dos corpos e nos ajuda a perceber que vêm de longe e estão cá desde sempre. E esta arte simples, tão dura como só a verdade o pode ser, é um menos que é mais: “é preciso que a arte seja menos para poder ser mais” diz Costa.
Neste contexto, pode dizer-se que estes filmes são “ciência-ficção” porque as suas bases residem não numa ideia/argumento/composição, mas num esforço de surpreender a intensidade, o entusiasmo, as coisas, os movimentos, os sons, as folhas das árvores, o mundo inteiro. E a ficção não é uma máscara ou composição, mas é a realidade tornada mais nítida, mais actuante, mais próxima. O cinema é, assim, uma espécie de filtro (ou poção) que desanuvia e torna mais nítida a visão, adestra-nos a notar as coisas como elas são e a perceber, como diz Vanda a Ventura, que “assim é a vida”.
*todas a citações do realizador são retiradas de uma conversa com Cyril Neyrat e publicadas em Dans la chambre de Vanda. Um film de Pedro Costa, col. Que fabriquent les cinéastes, Capricci, 2008
*texto publicado na edição de Dezembro da L+Arte
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