O prazer orgiástico de fazer arte*
Julião Sarmento tem um trabalho que se caracteriza por um uso variado da pintura, desenho, vídeo, escultura, instalação. Um conjunto heterogéneo de ferramentas através das quais constrói um universo em que a sensualidade, a sedução, a nudez feminina e o sexo têm um papel fundamental.
Não se pode dizer que o seu trabalho seja só sobre sexo, mas o desejo e a pulsão sexual são, indubitalvelmente, os motores principais do seu universo criativo. Sarmento não sabe identificar qual o elemento preciso que o atrai: “no sexo, tudo me atrai” disse ao Ípsilon. E, para tornar a questão mais objectiva, acrescenta que o seu interesse não é meramente artístico porque “nesta questão, como noutras, não existe um lado pessoal e um lado artístico. Eu faço parte do trabalho e ele faz parte de mim. Eu sou o que o meu trabalho é. E se me interesso por alguma coisa, o trabalho tem de espelhar isso e não há mais volta a dar. E o sexo é um dos motores mais importantes da vida. Quando o sexo é bom, tudo é bom. Não é?”
Mas o sexo não é para este artista um simples tema que explora no seu trabalho, mas afirma que a “pulsão artística é, de certo, modo uma pulsão sexual. Quando trabalho tenho um prazer orgástico. Para muitos artistas a coisa é outra, mas eu sou muito táctil. E por razões de prazer interessa-me o tema do sexo.” Sexualidade esta que não é sinónimo dos filmes porno americanos feitos em série e, por isso, é peremptório ao dizer “um acto ou representação sexual fora de contexto é vazio, é como os filmes porno série B em que só há Kens e Barbies todos rapadinhos, com rabos e mamas de silicone e sem subtileza nenhuma.” E o seu trabalho reflecte este gosto. Nas suas pinturas e esculturas o acto sexual é sempre acompanhado de um dispositivo ficcional e de um contexto a que podemos chamar poético.
É necessário esclarecer que esta necessidade de contexto e ficcionalização não significa a transformação do sexo em erotismo e do desejo carnal em sedução, numa espécie de estratégia de amenização do acto sexual. Até porque, como diz, “não gosto da sensualidade. A sensualidade e o erotismo não me interessam. No meu trabalho é tudo sexual.” Até nos casos em que as suas mulheres parecem só querer seduzir, como nas esculturas em que estão imóveis vestidas com um sensual vestido preto, elas são feitas “para chegar lá e pôr-lhes as mãos perna acima dentro do vestido.” Mas Sarmento esclarece: “obviamente que o erotismo faz parte da pornografia e eu gosto da mistura da pornografia com universos ficcionais. Porque realmente o que me interessa é o sexo como processo.”
Nos seus trabalhos está-se sempre a oscilar entre voyeurismo e fetichismo e entre os corpos que se podem ter e aqueles que nunca se pode tocar. Por isso é que o artista não sente qualquer constrangimento em usar imagens dos corpos das suas mulheres: “as minhas mulheres são objectos de desejo e não tenho qualquer pudor em expô-las. Porque quanto mais se expõe a nudez mais inacessível aquele corpo se torna. Uma dicotomia em que a uma grande exposição corresponde uma maior inacessibilidade do objecto.”
Um jogo entre ver e não ver, poder ter e não ter, proibido e legitimo, que Sarmento explora intensamente na sua obra. E foi esse jogo que o fez ir ter com o sexo e usá-lo como fonte iconográfica e tensional: “eu cresci num tempo em que relativamente ao sexo tudo era proibido. Uma vez fui punido com uma multa por ter beijado uma rapariga. E desde muito cedo o sexo era pornográfico, porque era proibido e perverso. O sexo livre dos anos 60 não tinha esta carga que dá ao sexo muita ‘pica’. A profunda distância do objecto de desejo tornava-o mais apetecível. Logo, tudo isso entrou muito fortemente no meu imaginário.”
Um jogo com o modo como a sociedade recalca e pune a exposição sexual, que Sarmento estende para o campo moral e social: “Eu gosto da perversão moral de poder transformar imagens proibidas em imagens que circulam em instituições e colecionadores de arte contemporânea. Interessa-me a ironia de através da força do meu trabalho estar publicamente em locais em que essas imagens nunca poderiam estar.”
O uso que faz do acto sexual não é uma singularidade de Julião Sarmento, mas como diz: “não sou absolutamente singular a este nível, há artistas que pensaram como eu penso e a história da arte está cheia de bons exemplos. Só que no passado, por razões históricas, era impossível assumir de maneira tão frontal a sexualidade. Eu hoje posso fazer o que faço, porque tenho mais liberdade de exposição. Não sou o único, nem serei. Imagino que tenha sido um escândalo quando o Ticiano [pintor italiano (cerca de 1488/90- 1576) que foi o principal representante da escola da escola de Veneza] pintou a sua Vénus de Urbino em que uma mulher toda nua está deitada numa cama a olhar directamente para o espectador. E o escândalo não é a nudez, nem é ai que está a enorme carga sexual dessa pintura, mas no modo como ela olha directamente para nós.”
*este texto foi publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público