Sunday, September 25, 2011

Julião Sarmento e o Sexo




O prazer orgiástico de fazer arte*





Julião Sarmento tem um trabalho que se caracteriza por um uso variado da pintura, desenho, vídeo, escultura, instalação. Um conjunto heterogéneo de ferramentas através das quais constrói um universo em que a sensualidade, a sedução, a nudez feminina e o sexo têm um papel fundamental.

Não se pode dizer que o seu trabalho seja só sobre sexo, mas o desejo e a pulsão sexual são, indubitalvelmente, os motores principais do seu universo criativo. Sarmento não sabe identificar qual o elemento preciso que o atrai: “no sexo, tudo me atrai” disse ao Ípsilon. E, para tornar a questão mais objectiva, acrescenta que o seu interesse não é meramente artístico porque “nesta questão, como noutras, não existe um lado pessoal e um lado artístico. Eu faço parte do trabalho e ele faz parte de mim. Eu sou o que o meu trabalho é. E se me interesso por alguma coisa, o trabalho tem de espelhar isso e não há mais volta a dar. E o sexo é um dos motores mais importantes da vida. Quando o sexo é bom, tudo é bom. Não é?”

Mas o sexo não é para este artista um simples tema que explora no seu trabalho, mas afirma que a “pulsão artística é, de certo, modo uma pulsão sexual. Quando trabalho tenho um prazer orgástico. Para muitos artistas a coisa é outra, mas eu sou muito táctil. E por razões de prazer interessa-me o tema do sexo.” Sexualidade esta que não é sinónimo dos filmes porno americanos feitos em série e, por isso, é peremptório ao dizer “um acto ou representação sexual fora de contexto é vazio, é como os filmes porno série B em que só há Kens e Barbies todos rapadinhos, com rabos e mamas de silicone e sem subtileza nenhuma.” E o seu trabalho reflecte este gosto. Nas suas pinturas e esculturas o acto sexual é sempre acompanhado de um dispositivo ficcional e de um contexto a que podemos chamar poético.

É necessário esclarecer que esta necessidade de contexto e ficcionalização não significa a transformação do sexo em erotismo e do desejo carnal em sedução, numa espécie de estratégia de amenização do acto sexual. Até porque, como diz, “não gosto da sensualidade. A sensualidade e o erotismo não me interessam. No meu trabalho é tudo sexual.” Até nos casos em que as suas mulheres parecem só querer seduzir, como nas esculturas em que estão imóveis vestidas com um sensual vestido preto, elas são feitas “para chegar lá e pôr-lhes as mãos perna acima dentro do vestido.” Mas Sarmento esclarece: “obviamente que o erotismo faz parte da pornografia e eu gosto da mistura da pornografia com universos ficcionais. Porque realmente o que me interessa é o sexo como processo.”

Nos seus trabalhos está-se sempre a oscilar entre voyeurismo e fetichismo e entre os corpos que se podem ter e aqueles que nunca se pode tocar. Por isso é que o artista não sente qualquer constrangimento em usar imagens dos corpos das suas mulheres: “as minhas mulheres são objectos de desejo e não tenho qualquer pudor em expô-las. Porque quanto mais se expõe a nudez mais inacessível aquele corpo se torna. Uma dicotomia em que a uma grande exposição corresponde uma maior inacessibilidade do objecto.”

Um jogo entre ver e não ver, poder ter e não ter, proibido e legitimo, que Sarmento explora intensamente na sua obra. E foi esse jogo que o fez ir ter com o sexo e usá-lo como fonte iconográfica e tensional: “eu cresci num tempo em que relativamente ao sexo tudo era proibido. Uma vez fui punido com uma multa por ter beijado uma rapariga. E desde muito cedo o sexo era pornográfico, porque era proibido e perverso. O sexo livre dos anos 60 não tinha esta carga que dá ao sexo muita ‘pica’. A profunda distância do objecto de desejo tornava-o mais apetecível. Logo, tudo isso entrou muito fortemente no meu imaginário.”

Um jogo com o modo como a sociedade recalca e pune a exposição sexual, que Sarmento estende para o campo moral e social: “Eu gosto da perversão moral de poder transformar imagens proibidas em imagens que circulam em instituições e colecionadores de arte contemporânea. Interessa-me a ironia de através da força do meu trabalho estar publicamente em locais em que essas imagens nunca poderiam estar.”

O uso que faz do acto sexual não é uma singularidade de Julião Sarmento, mas como diz: “não sou absolutamente singular a este nível, há artistas que pensaram como eu penso e a história da arte está cheia de bons exemplos. Só que no passado, por razões históricas, era impossível assumir de maneira tão frontal a sexualidade. Eu hoje posso fazer o que faço, porque tenho mais liberdade de exposição. Não sou o único, nem serei. Imagino que tenha sido um escândalo quando o Ticiano [pintor italiano (cerca de 1488/90- 1576) que foi o principal representante da escola da escola de Veneza] pintou a sua Vénus de Urbino em que uma mulher toda nua está deitada numa cama a olhar directamente para o espectador. E o escândalo não é a nudez, nem é ai que está a enorme carga sexual dessa pintura, mas no modo como ela olha directamente para nós.”

*este texto foi publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público

Saturday, September 10, 2011

Pedro Diniz Reis e o Sexo




O FÉTICHE COMO ESTÉTICA








Bondage, fetichismo, SM, imobilização, voyeurismo são palavras comuns no vocabulário de Pedro Diniz Reis (n. Lisboa, 1972). Um universo eclético onde surgem trabalhos muito gráficos com letras e cores e uma forte ligação à música. Desde os seus primeiros trabalhos que surgem elementos relacionados com a sexualidade, entendida e integrada no seu trabalho não como sedução ou erotismo, mas como pulsão vital e atitude mental.

Refere o fotografo japonês Nobuyoshi Araki (n. Tóquio, 1940), conhecido pelas suas fotografias de mulheres atadas e em situações de SM, e os vídeos fetichistas de Betty Page (1923-2008). No primeiro agrada-lhe o rigor e absoluta entrega às cenas que fotografa, na segunda os aspectos voyeuristas, kitsch e desajeitados. É fascinado pela cena SM de Tóquio, pelo universo das dominadoras e o contacto com os espectáculos nos bares underground de Tóquio foi decisivo na definição de um núcleo importante da sua obra. Nesse universo, diz ter tido a sorte de conhecer pessoas que muito profissionalmente e, nos limites do respeito pelo corpo humano e privacidade, o levaram numa viagem “incrível” através de shows de dança, cordas, agulhas, ganchos e jogos de elásticos. Um universo onde só lhe interessam as pessoas que estão sempre a trabalhar para encontrar coisas novas.

Para o artistas todas estás práticas são uma espécie de requiem, pois não consegue dissociar a sexualidade da morte. E algumas das actuações a que foi levado pelos seus amigos de Tóquio “são o mais próximo que estive do sublime: a entrega das pessoas que participam e pelo rigor utilizado na realização destas performances” declara ao Ípsilon.

No sua obra existem dois trabalhos em que estas pulsões estão mais presentes e assumem maior expressividade. Um deles é a performance Shibatri em que lentamente vai atando uma mulher com cordas. Diz Pedro Diniz Reis: “Shibari em japonês quer literalmente dizer atar. E no contexto SM esta prática passou a significar atar pessoas.” Teve a ideia para fazer este trabalho depois de umas das suas primeiras viagens ao Japão. Regressou a Lisboa e começou “a fazer umas experiências e percebi que não ia conseguir fazer o queria. Deparei-me com questões de segurança e com o impacto que estas práticas têm no corpo dos outros. E decidi ir aprender com quem sabia. Regressei ao Japão e durante quinze dias fui ter aulas” contou o artista ao Ípsilon. E acrescenta: “Atraiu-me esta prática, não no sentido estrito do SM, mas enquanto experiência sensorial e prova de concentração, uma espécie de exercício mental.”

A sua abordagem a esta prática não é necessariamente ligada à sexualidade, porque para o artista trata-se de um “processo de meditação em que cada corda que se passo é um movimento de relaxamento. O que permite atingir outros níveis mentais.” Por isso, nas performances que faz não trabalha com pessoas com quem tem relações de intimidade, mas prefere procurar alguém que profissionalmente queira trabalhar com ele: “não faz sentido atar a pessoa e tocá-la de modo intrusivo e por isso vou colocando filtros que me permitam distanciar” afirma. E neste contexto o Shibari surge como uma escultura ou um desenho, porque a metodologia utilizada pelo artista permite a execução aquela prática com rigor e precisão: “no Shibari interessa-me o rigor metodológico o que permite não transmitir agressividade, nem tentativas de domínio. Interessa-me exclusivamente a performance no contexto artístico” afirmou ao Ípsilon.

Prefere não falar do papel que estas práticas têm na sua vida pessoal e assume tratarem-se de preferências estéticas e de elementos exclusivos de um projecto artístico. Mas não é só em Shibari que a pulsão sexual se faz sentir. Num outro trabalho chamado Uma história contada por um baterista, que é um conjunto de quatro performances, onde se tem uma bateria ao vivo e cada vez que o baterista dá um toque no tambor da bateria se tem acesso a um frame do filme. Visualmente alterna-se entre o negro e a projecção de fragmentos da imagem e quanto mais rápido é o ritmo da batida na bateria, mais avança a imagem. São quatro filmes diferentes que vão desde o puro fetiche, à dominação de mulheres e à utilização de agulhas.

Num deles uma mulher vai-se despindo numa dança lenta e sedutora, a partir de certa altura há um “twist” e ela obriga um homem, despido e imobilizado no chão sob os seus pés, a beber o champagne que lhe escorre pela perna e pelo salto dos sapatos. O homem, submisso, está prostrado no chão e está entre o prazer estático e o sufoco de quem se vai afogar naquela bebida. Um jogo de contrastes e de poderes que o artista explora intensamente no seu trabalho.

Pode dizer-se que com Pedro Diniz Reis estamos no contexto de uma pulsão sexual máxima num contexto ultra fetichista. As imagens originadas neste universo não são nelas mesmas fetichistas, mas assinalam as qualidades sensíveis desse universo do qual normalmente se desvia o olhar ou para o qua se olha Às escondias. Por isso as imagens de Pedro Diniz Reis não têm um valor sexual ou pornográfico, mas são puramente artísticas e os temas do seu trabalho assinalam fundamentalmente uma região e uma linguagem estética.