Tuesday, July 10, 2012

Dialogue, 2012, Instalação com postal e brinquedo, 18,3X10,3X20,3

Liliana Porter: a língua comum da arte e do humor*

Liliana Porter (n. Argentina, 1941) é uma artista singular. Fez exposições nos mais importantes museus do mundo, faz parte das colecções de arte que são referência e a sua obra é reconhecida pelo modo como através de situações cómicas e humorísticas aborda temas como o trabalho, as relações de poder, a história da arte, entre outros.
Chegou a Lisboa pela primeira vez dois dias antes de inaugurar a sua primeira exposição Portugal na Galeria Baginski e montou uma exposição chamada “Obras recentes” a qual reúne um conjunto de obras feitas entre 2008 e 2012.
Se o humor, o inesperado e a pequena escala são constantes nas obras que apresenta, formalmente as obras são muito distintas: há fotografia, desenho, escultura, instalação, vídeo. O ponto de partida são sempre relações entre objectos, artefactos, imagens, brinquedos que a artista gosta de colocar ao mesmo nível. Um conjunto de coisas tão heterogéneo que cria confusões que a artista pensa poderem libertar o olhar e que correspondem a um esforço de encontrar sentido para as mais vastas tarefas humanas.
Falou com o Ípsilon sobre o seu trabalho, sobre a sua herança argentina e sobre o modo como gostaria de fazer arte como o Borges escreveu. Uma ambição que não só reforça a ligação ao seu pais natal, mas é uma boa imagem para descrever o modo como gosta que olhem para as suas obras.

Como pensou esta exposição para Lisboa?
Como é a primeira vez que exponho em Portugal, decidi não fazer obras grandes que fossem difíceis de montar e transportar e que tocassem os temas a que estou sempre regressar na minha obra, como por exemplo a questão da casa ou o trabalho. A casa presta-se a muitas leituras e metáforas: pode ser o lugar onde se está protegido, onde não se precisa de mais nada, etc., e gosto de usar temas de tenham esta riqueza e possibilidades.
Como surge a ironia?
As minhas obras por vezes dão vontade de rir, mas é um humor que não é exclusivamente gracioso, mas ambiciona tocar em temas essênciais. Por exemplo, naquela obra [Diálogo, 2012] em que uma pequena ovelha está a conversar com o postal que reproduz uma pintura renascentista, a questão é sobre a possibilidade de diálogo e uma forma de falar da relação entre tempos distintos: o da ovelha e da pintura. Interessa-me muito a maneira como coisas diferentes e contrárias se conseguem relacionar não só ao nível dos objectos, mas as pessoas ou a tristeza e a alegria e sinto que este jogo nos ensina qualquer coisa que eu não sei bem dizer o que é.
E não há questões políticas e sobre o poder?
Também, há sempre questões politicas. A relação entre personagens tão diferentes como as que surgem nas minhas obras pode traduzir-se numa ideia de esperança de diálogo livre e de entendimento comum.
E porque é que os seus personagens estão quase sempre a fazer coisas aparentemente inalcançáveis?
Essas obras pertencem a uma série chamada “Trabalhos Forçados”: são pessoas face a tarefas que os superam. É uma metáfora para tentar entender o que é que estamos a fazer neste mundo, porque viver é sempre uma tarefa que parece superior às nossas possibilidades. E depois o humor surge da consciência que somos completamente ignorantes e nos estamos sempre a equivocar.
Não se trata da impotência do homem face à imensidão das coisas que tem de fazer?
Não só de impotência, mas também de esperança. Eu sou optimista e penso que não é importante saber se chegamos ou não à solução final. E o erro e falta de compreensão é importante porque é o que nos faz continuar a procurar, se tudo estivesse em ordem parávamos e ficava tudo estático. E o desafio é encontrar a ordem e a harmonia no meio da confusão. E ganhar significar ser feliz, mas ser feliz não é só estar contente, mas é um chegar a termos com o que nos acontece, a um bom acordo com o que nos rodeia.
Isso não é uma valorização excessiva do trabalho?
O trabalho é uma imagem para falar acerca do sentido da vida e serve para tomar consciência do difícil das nossas tarefas. Não estar louco significa o esforço para encontrar uma ordem na vida através da execução das nossas tarefas, por isso dedicar-se a um trabalho faz parte desse esforço de sanidade.
Essa dimensão do fazer também é algo que valoriza no seu trabalho artístico?
Não, nas minhas obras essa dimensão é quase inexistente. No fundo, as minhas coisas são quase todas encontradas. O fazer é mental e está ao serviço de uma ideia que essa sim dá origem às minhas obras.
E o uso dos objectos como é que surgiu?
Há sempre uma ideia a que eles se juntam e uso-os porque não têm classe social, todos têm o mesmo valor e status independentemente do preço que custam. E esta simultaneidade do diverso é uma coisa que me fascina. Vou recolhendo objectos muito diferentes e sem saber bem porquê e depois há um momento em que o seu uso se torna evidente. E gosto da escala pequena dos meus objectos porque obriga o espectador a ter de se aproximar das obras, a curvar-se.
E o diálogo com a história da arte como é que aconteceu?
As obras de arte são objectos da realidade como outros quaisquer e fazem parte do vocabulário das experiências que fazemos com o mundo. Na minha obra “Magritte” (2008) eu coloquei a reprodução de uma obra de Magritte em que um homem está de pé e em baixo a legenda diz “homem sentado” e eu, como se não tivesse percebido a obra, sentei a pintura numa cadeira. É como se estivesse a corrigir o Magritte. E na separação que este artista faz entre a palavra e o objecto tomei consciência que se as coisas não tivessem nome nós lhes daríamos muito mais atenção e as veríamos melhor: as coisas sem nome são mais misteriosas e exigem muito mais atenção. É como conta o Garcia Marques nos “Cem anos de solidão”: o mundo era tão recente que era preciso assinalar as coisas com o dedo. E o que o Magritte fez foi não tornar evidente o estranho da realidade.
E os outros artistas que convoca no seu trabalho?
Uso-os porque não é preciso estar sempre a fazer tudo desde o princípio. Se alguém já pensou certas coisas posso usar a suas obras e partir daí. E gosto de criar confusões com as obras dos outros.
Mas ao criar essas confusões pretende libertar o nosso olhar?
O nosso não sei, mas pelo menos o meu. São pequenas descobertas que faço com o mundo. O que me interessa são as ideias e o que mais gostaria de ter feito na vida era fazer artes visuais como o Borges escrevia.
Como o Borges?
É o meu universo. Ele diz as coisas que eu gostava de ter dito.
Essa relação faz parte da aprendizagem artística que fez na argentina?
Eu nasci na Argentina e vivi em Buenos Aires até aos 22 anos e foi lá que estudei arte e foi nesse contexto que aprendi o meu modo de pensar artístico.
Modo de pensar artístico?
Sim, em arte pensamos de uma maneira oblíqua: há uma lógica habitual que tem de se destruir.
Foi por isso que escolheu ir estudar arte?
Na verdade eu não escolhi, a minha mãe e a minha tia é que acharam que uma menina como eu devia ir estudar arte. Por sorte a coisa correu muito bem, mas foi só quando deixei a Argentina e fui para o México que um professor veio ter comigo e me disse: és uma artista e vais fazer uma exposição. Até ai nunca tinha tido nenhuma pressão exterior.
E quando foi para Nova Iorque?
Eu cheguei a Nova Iorque em 1964 e queria fazer uma grande viagem entre os EUA e a Europa para ver museus. Mas nunca mais sai de Nova Iorque. O ano em que cheguei foi intenso e logo no primeiro dia fui a uma festa e conheci duas raparigas que estavam à procura de casa e fui viver com elas. E fiquei por lá a fazer gravura. Vendi imensas gravuras. Um ano depois casei-me e arranjei logo uma galeria. Pode dizer-se que me correu tudo muito bem. Nos EUA aprende-se a ter imensa liberdade e há espaço para toda a gente. Quando vou ao Buenos Aires toda a gente olha para mim, em Nova Iorque quase ninguém sabe quem sou. Por isso foi tão importante ter ficado.
Não continuou a estudar?
Não, continuei a fazer a minha obra e uns tempos mais tarde fui dar aulas.
Nunca pensou voltar à Argentina?
Tenho um contacto muito próximo com o pais e o meio cultural, mas voltar a viver não. E quando lá vou sinto-me em casa, mas em Nova Iorque também. A diferença é que em Buenos Aires todos os ritos me prendem muito: se não se põe a camisa certa toda a gente olha e perco a liberdade e anonimato que tanto gosto em Nova Iorque.
Nos anos sessenta não sentiu qualquer descriminação por ser uma mulher do sul?
Se eu fosse norte-americana a vida ter-me-ia corrido melhor. E é verdade que quando se olha para o meu currículo nas exposições colectivas em que participo aparece sempre: artista latino-americana. E não há forma de fugir disto.
A sua herança argentina está muito presente no seu trabalho?
Eu acho que sim. No vídeo “Matinee” que mostrei na Old School da Susana Pomba é clara essa herança. E depois continuo a pensar em espanhol e tudo o que aprendi quando era criança continua a expressar-se na obra. Não é um elemento racional que trabalho na obra, mas sinto que sou muito Argentina e é dali que recebo as minha as experiências. Nós os latinos não somos literais como os norte-americanos e este modo de dizer oblíquo está muito presente no que faço.
E o seu riso? Sempre foi tão presente ou foi conquistado ao longo do tempo?
As minhas primeiras obras eram muito secas. Eu era muito séria, minimal, conceptual. Mas para sobreviver o humor foi muito importante, uma aprendizagem que recebi do meu pai. E depois a estrutura de uma piada é muito semelhante ao modo como se pensa uma obra de arte. O que é que nos faz rir? Começa a contar-se uma coisa normal e de repetente vem uma coisa que não tem nada que ver com a história que se estava a contar e essa intromissão faz rir. Com a arte a situação é a mesma: o que dá origem à arte é uma lógica ilógica, uma lógica diferente, oblíqua, mas que está mais próxima da realidade.
Quando pensamos no sue trabalho pode pensar-se em coisas como ilógico, confusão, mas a obra faz sempre sentido.
Sim, claro. As obras criam um sentido própria e são claras. É impossível que as coisas não signifiquem. E a simplicidade e facilidade das minhas obras são meramente aparentes. Num conto o Borges diz “o prazer estético é a eminência de uma revelação”, quer dizer não é a revelação: a arte é acerca da revelação, por isso tem de ser simples.

*texto publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público

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