Tuesday, February 26, 2008

Eduardo Batarda



O imaginário de Eduardo Batarda implica, antes de mais, um salto nas profundezas da imaginação, no poder configurador que esta força da inteligência possui de dar forma àquilo que não domina. Não se trata de uma simples unificação, antes do estabelecimento de relações muitas vezes inesperadas entre corpos, objectos, roupas, detalhes roubados. O seu interesse é puramente visual, ou seja, trata-se de um artista que encontra na prolixidade das figuras o seu modo de construir imagens.

Os diferentes elementos pictóricos que utiliza, sempre variados e a fugir da repetição, criam entre si um ambiente familiar. Mas esta família é especial: quase nunca há parecenças directas, é preciso aguçar a vista e estar-se preparado para o detalhe, para a fissura que cada uma das suas figuras sensíveis apresenta como sendo o seu lugar. São quase sempre corpos que, através de acções inesperadas, se dão a conhecer enquanto limites: da forma, do traço, da fisionomia. As situações de desmedida em que Batarda coloca os seus personagens não são produto de uma fantasia sem limites, mas procedem de uma compreensão que é no limite que melhor se vêem as diferenças, que aí se dão a conhecer as fisionomias dos corpos que se amam e dos corpos da náusea, que não se querem ver, cheirar, tocar.

A escala que o artista utiliza deve-se, antes de mais, à construção de uma linguagem destinada a poder exprimir o carácter sempre único do corpo que concebe, que arrepia, que deseja. O riso que pode provocar dá conta da profundidade da sua intuição: feita mancha, figura, universo. O seu mundo tão próprio é regido pelas leis do desejo e da viagem: esta empreendida enquanto gesto de descoberta do eu e do outro, do encontro e do desencontro. As consequências políticas são inevitáveis. Está-se aqui a pensar sobretudo nos seus papéis. Aí, a anarquia da imaginação é total e encontra o seu sentido na capacidade de construir uma espécie de amostra de um mundo possível.

O carácter exótico com que se pode classificar estes seus trabalhos não os afasta de nós, mas transforma-os em espaços explosivos de relação com o erotismo que se teima esconder. Os falos grandes, as bocas abertas e famintas parecem sempre corresponder a algo daquele fundo inesgotável no homem de que fala Jünger.

Trata-se de um artista que é, sobretudo, um receptor: tudo o que lhe interessa faz sua propriedade, transforma a linguagem alheia na sua própria e o seu método reside num olhar que se constrói na tensão da criação de um inventário das formas orgânicas e de tudo que com elas se relaciona. Se o corpo é o mote destas aguarelas, é-o no sentido de ser o denominador comum de todos os objectos, de todas as cores. É o primeiro termo de comparação e de relação com tudo o que há. A violência que, aparentemente, envolve alguns destes seus trabalhos está relacionada com o modo desinibido como o desejo é apresentado: força primária configuradora dos gestos, orientador e primeira pedra do edifício humano dos valores. De algum modo, Batarda parte de um cliché visual e histórico (são conhecidas as suas obras em que se apropria de muitos lugares da história da arte) para construir um campo visual absolutamente seu: o sítio de onde parte é destruído e das suas cinzas nascem figuras de surpreendentes poderes encantatórios.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

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