Que o rosto se pode transformar numa paisagem é qualquer coisa que todos os retratistas e alguns fotógrafos sabem, aliás essa é mesmo a sua matéria, o seu mote, a sua razão. Não se pode com segurança localizar as pinturas que agora se apresentam numa tradição da pintura ou identificar um mote que todas em conjunto desenvolvam. O que recriam é um ambiente cuja espessura é estranha, de difícil acesso: animais, paisagem, rostos humanos em transformação. O carácter humano, a confundir-se com o fundo da pintura, é dado enquanto metamorfose, movimento de aproximação à sua animalidade, a um carácter bruto e indistinto.
O homem e a sua máscara é outra das entradas nestes trabalhos de Miguel Branco. Mas máscara tem aqui o sentido nietzscheano de ser condição de expressão, a condição metafísica necessária para que o rosto possa aparecer. A pintura mais reconhecível enquanto retrato revela-se, no final da série, como a mais encenada, mais distante do elemento primeiro da fisionomia: reconhece-se no rosto que é máscara a fundir-se no fundo, a fazer-se parte do indiferenciado cósmico da pintura, a apresentação da natureza indistinta no homem. Se, por um lado, se pode transformar o rosto em paisagem que se contempla e onde se descobrem múltiplos acidentes que contam histórias e expressam vida, por outro, esse mesmo rosto pode ser visto como máscara funerária. Não que anime estas pinturas qualquer sentimento nostálgico, aquilo que elas têm como força configuradora reside na descoberta da não-forma, da não-figura como lugar de pertença do humano.
Estas pinturas de Miguel Branco são lugares inquietantes onde se assiste ao retorno do corpo à terra, ao leito, ao lugar indistinto a partir do qual todas as formas são formadas, esse imenso oceano cósmico e natural. Que a figura progressivamente se vá transformando no seu próprio fundo é, para além de uma relação pictórica, indício da polaridade constitutiva da fisionomia: aparecer/desaparecer, fazer-se/ desfazer-se, diferenciar-se/tornar-se indistinto. No limite, aquilo que o artista obriga a percepcionar é a anulação da multiplicidade e a sua transformação em unidade: o muito reconhece-se no UM e funde-se nele. O UM é o magma terrestre que tudo absorve, tudo integra, tudo desfaz e integra numa outra unidade, numa outra espessura orgânica.
A escala em que trabalha, quase um miniaturista, serve um duplo propósito: primeiro obriga à concentração, depois faz com que estes trabalhos sejam uma espécie de segredo que o artista nos conta ao ouvido. Os sussurros que emanam destas madeiras e destes seres atemorizam, mas por mais que se queira não se pode desviar o olhar. Está-se sob uma espécie de encantamento ou condenação: qualquer olhar reconhece nestas figuras o seu lugar de pertença, neste rosto reconhecem o seu próprio. O elemento inquietante nestes trabalhos é o eles não se erguerem enquanto lonjuras, mas como locais dentro do próprio corpo, novos órgãos que sem antecipação crescem dentro do contemplador. A posição, anímica e física, que as pinturas obrigam a assumir metamorfoseia aquele que vê em força, pura pulsão, energia irracional que irrompe do interior do rosto e se transforma no campo magnético que rodeia a fisionomia humana.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
O homem e a sua máscara é outra das entradas nestes trabalhos de Miguel Branco. Mas máscara tem aqui o sentido nietzscheano de ser condição de expressão, a condição metafísica necessária para que o rosto possa aparecer. A pintura mais reconhecível enquanto retrato revela-se, no final da série, como a mais encenada, mais distante do elemento primeiro da fisionomia: reconhece-se no rosto que é máscara a fundir-se no fundo, a fazer-se parte do indiferenciado cósmico da pintura, a apresentação da natureza indistinta no homem. Se, por um lado, se pode transformar o rosto em paisagem que se contempla e onde se descobrem múltiplos acidentes que contam histórias e expressam vida, por outro, esse mesmo rosto pode ser visto como máscara funerária. Não que anime estas pinturas qualquer sentimento nostálgico, aquilo que elas têm como força configuradora reside na descoberta da não-forma, da não-figura como lugar de pertença do humano.
Estas pinturas de Miguel Branco são lugares inquietantes onde se assiste ao retorno do corpo à terra, ao leito, ao lugar indistinto a partir do qual todas as formas são formadas, esse imenso oceano cósmico e natural. Que a figura progressivamente se vá transformando no seu próprio fundo é, para além de uma relação pictórica, indício da polaridade constitutiva da fisionomia: aparecer/desaparecer, fazer-se/ desfazer-se, diferenciar-se/tornar-se indistinto. No limite, aquilo que o artista obriga a percepcionar é a anulação da multiplicidade e a sua transformação em unidade: o muito reconhece-se no UM e funde-se nele. O UM é o magma terrestre que tudo absorve, tudo integra, tudo desfaz e integra numa outra unidade, numa outra espessura orgânica.
A escala em que trabalha, quase um miniaturista, serve um duplo propósito: primeiro obriga à concentração, depois faz com que estes trabalhos sejam uma espécie de segredo que o artista nos conta ao ouvido. Os sussurros que emanam destas madeiras e destes seres atemorizam, mas por mais que se queira não se pode desviar o olhar. Está-se sob uma espécie de encantamento ou condenação: qualquer olhar reconhece nestas figuras o seu lugar de pertença, neste rosto reconhecem o seu próprio. O elemento inquietante nestes trabalhos é o eles não se erguerem enquanto lonjuras, mas como locais dentro do próprio corpo, novos órgãos que sem antecipação crescem dentro do contemplador. A posição, anímica e física, que as pinturas obrigam a assumir metamorfoseia aquele que vê em força, pura pulsão, energia irracional que irrompe do interior do rosto e se transforma no campo magnético que rodeia a fisionomia humana.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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