Geometrias impenetráveis, sólidos estranhos e resistentes à natureza, ao organismo, ao corpo. Mas não é de estranheza que vivem estas imagens, mas da vertigem da pura representação e da criação de um espaço não contaminado ou habitado. Uma vertigem que é aquela de quem olha para o longe e vê esse local como sítio do inevitável acontecimento do outro, do estranho, do distante. Ver o que está ao longe e sentir que esse olhar nos é devolvido: é como se à distância todos os espaços tivessem a característica de olhar quem os vê. Uma devolução que tem como primeira consequência a transformação de qualquer espaço em espaço humano e a sua heurística é assumir que a geometria antes de ser euclideana é humana: o espaço, para ser espaço, precisa do olhar, senão é uma carapaça redundante, um vazio informe, invisível, imperceptível.
As fotografias de Candida Höfer são sobre as qualidade estéticas do espaço, os seus limites e sobre a relação que o olhar estabelece com as grandezas determinadas arquitectónica e escultoricamente. As escolhas que faz não são direccionadas por algum tipo de interesse documental, histórico ou cultural, como também não são bilhetes postais ou investigações sobre o mundo multicultural e global em que vivemos. O seu ímpeto é, antes de mais, puramente fotográfico: desenvolve um programa estritamente estético em que a objectividade fotográfica é o seu primeiro princípio e em conjunto com o qual existe a ambição de criar um registo objectivo, material e verificável das coisas mundanas. A sua preocupação com a qualidade do objecto fotográfico (os skill’s da própria fotografia) é uma constante, por oposição a uma certa tendência contemporânea de sobrevalorização da imagem em detrimento da própria fotografia. Mas note-se que não é uma obsessão técnica, ou, melhor, esta preocupação com a maior perfeição possível da fotografia destina-se à conquista de uma maior liberdade formal. Só o domínio da sua linguagem lhe permite criar inflexões, prolongamentos e intensidades inesperadas: o aumento do campo de trabalho só é permitido através do domínio das diferentes ferramentas com que trabalha.
Trata-se de um estilo e maneira de fotografar regidos por um olhar exaustivo para os espaços e pela descoberta do melhor ponto de vista, o que significa a descoberta do ponto material através do qual melhor se pode observar o mundo, as coisas e, no limite, nós próprios. Este é um local físico e não uma posição teórica ou abstracta sobre a construção do horizonte. O ponto de vista, com a sua carga subjectiva, afectada e patológica, é nos trabalhos de Höfer substituído por uma espécie de ponto de localização físico e material. Trata-se de assumir um determinado Standpunkt o qual designa o sítio geográfico onde se está fisicamente e do qual se pode observar aquilo que há. Este “sítio de onde se vêm as coisas” é um constructo, ou seja, é como se fosse um miradouro a partir do qual se tem uma visão ampla, alargada e sinóptica. A imagem que nessa posição se constrói abrange a totalidade genérica do horizonte: a linha que as construções fazem no céu, o traçado que as ruas realizam na planta das cidades, o modo como a luz penetra a malha urbana, etc. No caso da fotógrafa alemã tratam-se de espaços interiores que estão vazios. Tirando a própria arquitectura e mobiliário não existe mais vida nas imagens de Höfer (excepção feita para a sua série de 1992 sobre o Jardim Zoológico). O seu exercício de visão, depois transformado em objecto fotográfico, é um afundamento da perspectiva (e da objectiva) na camada visível dos espaços e desta espécie de ginástica mental surge (quase como se fosse uma pintura) uma extrema e delicada organização do campo visual.
Entenda-se: a preocupação com o tipo de organização e hierarquias que uma imagem exprime (seja esta a imagem da pintura, da fotografia ou do vídeo) é uma constante em qualquer fazedor de imagens. O primeiro exemplo histórico que temos deste “fazer da imagem”, ao qual corresponde hierarquizar, seleccionar, separar, é o da pintura, por isso esta disciplina serve como matriz. No caso de Höfer a escolha do local de onde fotografa prende-se, de facto, com uma determinada compreensão dos espaços com que se confronta. Por isso às suas escolhas (tempo de exposição, luz, máquina, lente) corresponde a eleição dos aspectos a valorizar nas imagens que produz e este quadro de valores pictóricos ou, se quisermos, pictográficos é o elemento que determinao objecto final (note-se a diferença profunda entre imagem e fotografia).
Não encontramos nestes trabalhos sítios habitualmente não acessíveis ou uma a perspectiva de tal modo excêntrica que nenhum de nós possa alguma vez ver desse modo. Não é a excentricidade e invulgaridade de perspectiva que estão em causa. O “sítio de onde vê as coisas” é comum a todos: todos nós poderíamos ser esse olhar que faz escolhas, a quem interessam certos pormenores em detrimento de outros, que se encanta com um tipo de cores, etc. Os “sítios” de Candida Höfer são lugares públicos de transmissão de conhecimento (museus, bibliotecas, teatros), de exercício do poder (instituições financeiras e governamentais), de entretenimento (casino de Lisboa). Não são escolhidos ao acaso: servem enquanto vestígios da civilização e da cultura, isto é, a arquitectura serve enquanto expressão de uma determinada ordem social, política e cultural. No fundo, estas fotografias são movimentos de detecção da ordem, dos padrões e repetições, o que é uma outra forma de dizer o serem sobre a lógica que preside à organização e consciência do espaço, relativamente aos quais, como diz Benjamin sobre Baudelaire, “o prazer do olhar celebra o seu triunfo”.
A objectiva serve como mediação entre o olhar e os diferentes lugares tentando detectar as semelhanças e as diferenças dos diferentes locais, o que transforma estes trabalhos num estudo visual sistemático. Nesta metodologia podem reconhecer-se ecos do casal Becher e do princípio tipológico que rege os seus trabalhos. Com eles Höfer aprendeu o exercício de arqueologia da arquitectura industrial, mas o seu olhar foi-se desviando quer do tipo de estrutura dos Becher, quer da própria arquitectura enquanto volume exterior a ocupar um espaço. Nos seus primeiros trabalhos nota-se a herança que recebeu e que a faz pertencer a essa espécie à escola de Düsseldorf, mas o seu olhar foi-se especializando: deixou o exterior e instalou-se no interior para própria arquitectura, dentro dos volumes e das grandezas espaciais. No trabalho que tem vindo a desenvolver (e a série sobre Portugal não constitui excepção) o seu olhar é aquele de quem vê de dentro. Uma escolha que se pode traduzir em profundidade da visão e na intensidade poética que esse vazio ganha.
Rilke, numa carta a Magda von Hattinberg, escreve:
“Sabes estou no encalço das coisas singulares. Gosto do Einsehen. Conseguirás medir comigo a maravilha de ‘compreender’ assim um cão, de passagem (não entendo por isto o ficar lado a lado [durchshauen], a simples ginástica humana após a qual nos encontramos no outro lado do cão, fora dele, tendo-o utilizado como uma mera janela sobre o que há de humano atrás dele – não, não é isto) – mas penetrar bem no meio do cão, nesse núcleo que o faz ser como é, nesse lugar dele onde Deus teria podido sentar-se, feito o cão, para surpreender as suas primeiras perplexidades, as suas primeiras descobertas, para se assegurar que o cão estava bem conseguido, que nada lhe faltava, que não se teria podido fazer melhor. É possível permanecer um momento no centro do cão, na condição de se ficar alerta e de se saltar para fora dele antes que o seu mundo se feche sobre nós, se não éramos cão dentro do cão, perdidos para tudo o mais.”
O Einsehen que fala Rilke é um acto de compreender com os olhos penetrando com este olhar o fundo das coisas. Não se trata de ginástica mental mas de uma certa forma de intuição que se transforma em conhecimento. E este estar “no encalço das coisas singulares” é omnipresente em Höfer e é conseguido através da precisão e rigor do seu Standpunkt. À primeira vista pode parecer paradoxal afirmar que se trata de salvar o singular quando se sabe ser um trabalho com um mecanismo de ordenação de acordo com certos critérios visuais. Mas este facto deve-se à natureza particular que Höfer detecta nos diferentes locais e nos quais os próprio objectos (decorativos ou, como é o caso das bibliotecas e dos museus, funcionais) participam das narrativas espaciais e se transformam, como diz Umberto Eco, em objectos eloquentes. Mas a ordem e classificação típicas do procedimento serial, também caracterizam o gesto de coleccionar. Diz Benjamin:
“o mais profundo encantamento do coleccionador é o de fechar a peça individual num círculo mágico em que ela, enquanto é atravessada por um último calafrio — o da sua aquisição —, fica petrificada. Tudo o que é recordação, pensamento, consciência, se torna pódio, moldura, pedestal, fecho da sua propriedade.”
No nosso caso, o calafrio da aquisição transforma-se no calafrio do registo, da impressão, da captura em imagem (na sua série sobre os jardins zoológicos a metáfora da fotografia como gesto de capturar, enjaular e preservar é levada a um limite muito significativo). O objecto fotográfico com Candida Höfer transforma-se nesse tal círculo mágico que impede os espaços de se despenharem no esquecimento. Estar no encalço do singular, do individual, do particular conhece na colecção a sua redenção: como diria Benjamin, é a sorte do particular.
Através das fisionomias arquitectónicas realizadas pela câmara os diferentes lugares transformam-se numa espécie de monumentos fotográficos, face aos quais, e para voltar a Benjamin, a modernidade se torna digna da transformação em Antiguidade. Os espaço que Höfer fotografa surgem como Antigos: nome que damos àquilo que não pode ser esquecido, ao lugar da memória, à acumulação e condensação poética das experiências. Por isso a arquitectura surge também como o abismo: antecipa e mimetiza a própria morte (aqui reside a crueldade destes trabalho). A ausência, tão característica destas fotografias, significa a sua inscrição na fronteira entre o silêncio sepulcral, à qual se acrescenta a frieza da pedra e do betão das paredes, a imobilidade das cadeiras onde ninguém se senta, das mesas que ninguém usa ou dos livros que ninguém lê. Esta ausência, em primeiro lugar, transforma o nosso olhar numa espécie de intruso, mas, depois, percebe-se como sendo fruto da atenção sistemática ao lugar e ao não querer transformar os seres humanos em elementos/objectos da narrativa da imagem. À ausência corresponde, sobretudo, a mais extrema concentração na espacialidade e nas sua qualidades sensíveis e uma espécie de exercício ascético da atenção.
O outro —espectador e grande intruso do universo de Höfer — só é possível enquanto presença anónima, invisível e impermanente. Mas a este desaparecimento dos elementos da vida privada não corresponde a inexistência de vestígios dessa mesma vida: estão lá e ficam na fotografia. Em termos espaciais, à não visibilidade da utilização e da experiência privada dos espaços não corresponde a sua anulação e invisibilidade. Por isso a ausência transforma-se numa espécie de plenitude através da sua capacidade em antecipar acontecimentos futuros e evocar o preenchimento do espaço-tempo. É inevitável que estes espaços fiquem cheios: a memória, aliada à imaginação, é uma espectadora indomável, imediatamente projecta o que é estar naqueles lugares, o que é pegar naqueles livros, sentar-se naquelas cadeiras e usar aquelas mesas. Uma memória involuntária e silenciosa que impede a transformação do lugar da fotografia em lugar místico ou metafísico, ou seja, distante da experiência que o corpo faz dos espaços que quotidianamente habita.
São imagens nostálgicas e não melancólicas, porque não dizem do desgosto e impasse que se pode sentir relativamente à vida (melancolia), mas da tristeza causada pelo desejo de querer estar lá a habitar aquelas lonjuras (nostalgia). Uma nostalgia experimentada não só pelo sujeito, mas pelas próprias imagens, porque, como diz Benjamin, “não são apenas os seres humanos e os animais que têm uma habitação, mas também os espíritos e sobretudo as imagens”. E os trabalhos de Candida Höfer são habitações para espíritos e imagens.
texto publicado originalmente no catálogo Procurar Portugal, ed. Centro de Artes Visuais de Coimbra, Coimbra, 2007
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