Wednesday, February 27, 2008

Leni Riefenstahl: o cinema heróico e o pacto com o diabo








“Usei tudo quanto tinha para conseguir o que queria. Nunca houve nada impossível para mim.” Leni Riefenstahl

É a personagem mais difícil de toda a história do cinema. Adolada, desprezada e motivo de combates intensos e apaixonados. Celebrada por uns, demonizada por outros. Só agora o estudo sobre a sua obra começa a assumir contornos mais científicos e menos políticos. Morreu a 8 Setembro de 2003, com 101 anos. Qualquer que seja a posição que se assuma são inegáveis as qualidades cinematográficas e o encantamento que produz as imagens por ela feitas.

Foi a realizadora de Hitler e do terceiro Reich, do primeiro encontro que manteve com ele em Maio de 1932 de conta que ele lhe disse: “assim que chegar ao poder, tem de fazer os meus filmes.” Encantado e enfeitiçado que estava com a dança de Leni à beira mar no filme “A Luz Azul” (1932). Nesta experiência “tive uma visão apocalíptica que nunca conseguirei esquecer”, escreve a realizadora nas suas memórias, ao que acrescenta que a leitura da obra de Hitler “A minha luta” “teve um forte impacto em mim. Confirmei o meu nacional-socialismo depois de ler a primeira página. Senti que um homem que podia escrever um livro daqueles tinha necessariamente de liderar a Alemanha. E fiquei muito feliz que esse tal homem tivesse chegado.”

Ainda que tenha nas suas “Memórias” (1987) assumido a adesão ao terceiro Reich, até ao final da vida reclamou a inocência e o total desconhecimento sobre os horrores que os seus protectores e financiadores estavam a fazer nos campos de morte. A sua biografia é cheia de histórias mal contadas, paradoxos e muitas mentiras, mas ficará para sempre na história como a única mulher realizadora a fazer parte da lista dos 100 melhores filmes de sempre da revista Time. A prova da eficácia da sua obra é a controvérsia que, ainda hoje, alimenta muitas discussões.

Helene Bertha Amalie "Leni" Riefenstahl nasceu em Berlin em Agosto de 1902, no seio de uma família de classe operária. Apesar da persistente resistência do pai, Leni conseguiu, com o apoio da mãe, começar a sua carreira como bailarina herdeira da nova dança de Isadora Duncan. No início dos anos 20 encontrou em Harry Soka, um banqueiro judeu, um protector, amante e mecenas. Para além das peles, jóias e dinheiro que lhe dava, financiou dois espectáculos de dança e, mais tarde, participou nas suas primeiras incursões no cinema.

Mas foi o seu encontro com Arnold Fanck que mudou a sua vida. Convidada em 1924 pelo realizador para o filme “A Montanha da Fé”, Fanck transformou-se no seu mentor e escreveu e editou muitos dos seus filmes posteriores. Factos que Leni quase sempre desmentiu e, em alguns casos, chegou mesmo a apagar os nomes dos seus colaboradores judeus da ficha técnica dos filmes.

A atmosfera e o envolvimento que se vê nestes seus primeiros filmes de montanha em que os personagens vivem relações de fusão com a natureza, com a beleza e com os ideais heróicos e puros, são depois transpostos para as filmagens dos comícios de Nuremberga. Para o influente critico e teórico de cinema Siegfried Kracauer, já aqui existia “uma espécie de idealismo heróico” que era “parente próximo do espírito nazi” já em luta pelo poder.

Mas foi com os filmes sobre os nazis, primeiro em “A Vitória da Fé” (1933) e depois em “O Triunfo da Vontade” (1935), que ficou famosa. Encomendas directas de Hitler, as quais segundo Riefenstahl, lhe valeram uma zanga definitiva com o ministro da propaganda Goebbels (apesar de alguns registos em que são afirmados contactos sociais entre os dois, alguns deles sugerindo um envolvimento amoroso). Nestes filmes o anterior ideal heróico que surge como a matéria a dar forma, agora corporizada no führer e no povo alemão.

Existem muitas questões sobre a encenação, os ensaios e sobre a direcção de arte, feita em conjunto com o arquitecto do regime Albert Speer, mas Riefenstahl sempre negou e afirmou tratar-se de filmes documentais sem carga ideológica. Mas o alinhamento dos soldados, Hitler filmado como se fosse uma estátua grega clássica contra um céu carregado e romântico, fazem das suas afirmações meras tentativas de distracção do essencial.

Mas é com Olympia (1938) que a sua carreira atinge proporções internacionais. Ainda que completamente ignorada na América, onde muitos refugiados já se encontravam e onde chegou na manhã seguinte à Kristalnacht dizendo que todas as notícias eram um exagero dos jornais americanos e um boicote dos intelectuais judeus, este filme é, segundo a própria, uma “manifestação sublime do espírito alemão.” Uma nova Alemanha pela qual Riefenstahl estava seduzida e que prova, como afirma Walter Benjamin, que “o fascismo é a estetização da politica.”

Oficialmente encomendado pelo Comité Olímpico Internacional, os filmes foram estreados em Berlim por ocasião do 49 aniversário de Hitler em Abril de 1938. Com ele estava a totalidade do panteão nazi: Goebbels, Goering, Ribbentrop, Himmler, entre outros. Relativamente a este filme, como a quase tudo na sua vida, Leni contou mentiras e sempre negou que o financiamento vinha do Reich e que o verdadeiro objectivo era construir uma imagem da Alemanha como um pais hospitaleiro, moderno, eficiente, uma nação pacífica de desporto e benigna.


O filme, do princípio ao fim, é uma glorificação da perfeição física: ideal de princípios racistas nazis em que aqueles que são imperfeitos são doentes e devem ser tratados como seres humanos inferiores e excluídos. Uma espécie de tese darwinista em que os mais fortes não só devem prevalecer, como devem ser celebrados e adorados pela sua força e perfeição físicas. É este heroísmo que Riefenstahl encontra na origem grega dos jogos olímpicos e faz a mais original e surpreendente cobertura de um evento desportivo de sempre. Este “fascismo-fascinante”, como o cunha Susan Sontag, foi um momento de invenção cujos ecos ainda hoje se sentem. Independentemente da qualidade cinematográfica, das inesquecíveis as sequências de mergulho, os planos do esforço e tensão nos rostos dos atletas, etc, trata-se de uma peça de legitimação da “nova” Alemanha.

Como afirma Steven Bach, autor de uma das melhores biografias de Riefenstahl, “depois de manipular a imagem dos outros sobre si, Leni insistiu que a realidade confirmasse a sua versão… a transformação do vulgar em heróico, a seu tempo, haveria de se tornar a sua imagem de marca e o seu talento supremo.” Para o regime Leni fazia parte da muito bem oleada máquina de propaganda, a qual tinha um papel central, porque: “pelo uso sagaz e contínuo da propaganda, um povo até pode ser levado a confundir céu com inferno, ou vice-versa.” (Hitler)
A haver mérito neste jogo manipulador protagonizado pela preferida de Hitler, ele é sintetizado por Bach: “Com arte e jeito, ela casara o poder com a poesia de um modo tão convincente que rejeita qualquer comparação artística com tudo o que de remotamente similar tenha sido feito antes. A sua manipulação dos efeitos formais foi virtuosa, as suas inovações na técnica de filmagem e montagem estabeleceram novos padrões e mantêm-se exemplares na cinematografia.” E foi este casamento amaldiçoado que a perseguiu para sempre.

Depois da derrota da Alemanha, do seu processo de desnazificação no qual foi ilibada, e da sua prisão, Riefenstahl ainda tentou fazer filmes, mas foi só nos 70 que regressou com a edição de dois livros sobre os Nuba com quem nos anos 60 passou seis meses e obsessivamente os fotografou. Novamente, foi a perfeição, a força, a juventude, o heroísmo que atraíram a sua objectiva. E o resultado são fotografias de um beleza intensa, sedutoras, fascinantes, como diz Sontag: “os mais espantosos livros de fotografias publicados recentemente.” Estava-se já em 1975, mas ainda é a estética fascista que domina.

Até ao fim da sua vida trabalhou quase exclusivamente como fotografa: fez a cobertura dos jogos olímpicos de Munique para a revista Time, um retrato muito famoso de Mick e Bianca Jagger e passou a fazer filmes subaquáticos que não têm qualquer interesse artístico e não ser, nas palavras de um muito famoso critico, “belos papéis de parede.”

A questão ainda por resolver, de que Sontag no seu ensaio “Fascismo Fascinante” faz um primeiro esboço, é se podemos admirar a obra de Riefenstahl e, a poder-se, de que modo podemos olhar para ela? Perguntas estas que dependem da decisão de os artistas serem ou não seres morais. Para Riefenstahl a resposta foi, claramente, negativa.


O episódio mais negro da vida de Leni
Em Setembro de 1940, 270 ciganos internados em Maxglan foram alinhados para um escolha de figurantes por Riefenstahl. Ainda que tenha afirmado, com ataques de ira, que nunca tinha visitado esse campo, numerosos ciganos que sobreviveram e trabalharam no filme testemunharam que a viram e que “ao escolher os seus figurantes ela colocava os polegares e indicadores em forma de moldura para enquadrar os rostos deles como se estivesse a vê-los através do visor da câmara.” Uma cigana, Rosa Winter, afirmou: “estávamos todos ali no campo. E então ela chegou com a policia e escolheu as pessoas. Eu estava lá com muitos outros jovens e era a nós que ela queria.”

No local de filmagens as regras e as punições eram semelhantes às do campo. Os ciganos eram alojados em estábulos e os sete marcos diários que ganharam eram entregues ao Fundo Geral dos Ciganos em Salzburg, destinado aos “elevados custos que o campo implicava.” Regras semelhantes às do campo que Leni conscientemente concordou em cumprir.

Utilizou 23 ciganos vindo de Maxglan que Riefenstahl caracterizou como “um campo de bem-estar e cuidados.” Lembra-se das crianças lhe chamarem “tia Leni” e até prometeu levar uma das famílias com ela para Berlim e para a liberdade. Depois da rodagem do filme foram todos enviados para Auschwitz e dos sete membros da família, supostamente a ser salva pela realizadora, só um sobreviveu.

No fim da sua vida Leni insistiu em que “vimos quase todos os ciganos depois da guerra e eles lembravam a experiência como o tempo mais encantador das suas vidas.” Nunca se ouviu uma única palavra de remorso sair da sua boca, sempre se viu como a benfeitora dos ciganos e que “nenhumas dúvidas ou escrúpulos, nenhumas sombras ou receios obscureceram a minha actividade”, porque, conclui ela, “o artista não conhece senão uma luta – a luta pela perfeição do seu trabalho. Só conhece uma liberdade – a unificação da sua ideia com a sua criação.”


Steven Bach, “Leni – A vida e obra de Leni Riefenstahl”, trad. de Óscar Mascarenhas, Prefácio de João Lopes, Casa das Letras, Lisboa 2007

“A maravilhosa horrorosa vida de Leni Riefenstahl” de Ray Müller, Ómega Films, 1993

Filmografia completa

Um versão mais reduzida deste texto surgiu no suplemento DNGente do Diário de Notícias

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