Certas imagens e certas regiões da linguagem que não se prestam à pura e serena contemplação, (mas) exigem uma actividade intensa de descodificação, de decifração e tradução. As imagens e sinais linguísticos, mascarados de sinais de trânsito, que João Louro (n.1963) tem vindo a propor ao longo dos últimos anos do seu trabalho, inscrevem-se numa lógica de procura de sentido e de um lugar para o excesso de imagens que continuamente surgem e nos rodeiam.
Nas séries de pinturas genericamente intituladas “Blind Images” ou nas suas placas de trânsito “Dead End’s”, não é proposto nenhum tipo de narrativa. No primeiro caso, impera o brilho, como se de um espelho se tratasse. São pinturas monocromáticas só interrompidas pela aparição de uma legenda e pela delimitação territorial realizada pela moldura. No segundo, as placas metálicas, que habitualmente sinalizam as localidades que um condutor percepciona nas suas viagens, passam a ser habitadas pela poesia, pela filosofia e pelo mistério da própria linguagem. O resultado pode ser comparado a um mapa sempre incompleto e provisório: as localidade que indica são sempre provisórias e nunca se assumem como destinos finais. Os caminhos multiplicam-se na medida em que o condutor, o qual podemos assumir ser o próprio artista, se transforma no próprio caminho a percorrer: e os mapas que vai tecendo são os da sua própria interioridade. Pode mesmo assumir-se que estamos perante uma viagem feita de múltiplas paragens, mas em que nenhuma é definitiva.
Uma das exposições de Louro tinha o título de “Blind Runner” o que, ironicamente, implicava o paradoxo daquele que sem ver corre incessantemente, viaja sem nunca se deter. A pergunta inevitável é sobre como é que a cegueira pode ser um método para a construção de imagens? Nas suas “Blind Images” João Louro parte de uma imagem real retirada de uma revista ou de um filme (normalmente situações que fazem parte do património imagético da humanidade, seja ele social, cinéfilo ou artístico) e esconde os personagens e as formas: as imagens que recolhe são apagadas e fica unicamente a legenda, as palavras descritivas que, supostamente, tornam a imagem mais clara e precisa, ou seja, que a descodificam. Se por um lado, se trata de um contributo para o sempre crescente arquivo da humanidade e um impulso para salvar do esquecimento aquilo que pela sua natureza deve ser lembrado, por outro lado, trata-se do gesto de tornar cego o carácter iconográfico e representativo das imagens que tecem o imaginário colectivo.
Não existe aqui nenhuma tese acerca daquilo que é uma imagem, mas o artista sabe quais são os diferentes ingredientes de que são feitas e é da sua actividade que nasce esta consciência. Numa das suas placas de trânsito, a imagem é assumida como facto e como pacto, uma percepção só alcançada no momento em que quando confrontados com imagens que não representam nada, que não dizem nada, continuamos a experimentar um sentido. Esta transformação obriga o sujeito – transformado em espectador de fantasmas e entidades espectrais – a procurar por si próprio: é ele que forma as imagens, é ele que atribui o sentido, é ele que completa a experiência.
Nestas telas (é preciso não esquecer que para Louro as suas Blind Images são fotografias transformadas em pintura) brancas ou negras a preocupação com a superfície – tão própria de toda a história da pintura – nunca desaparece e em algumas situações sentem-se os arrastamentos e a perfeição minimalista transforma-se numa poética do inacabamento. Mas o vidro acrílico que cobre a superfície impede o mergulho e opera um certo afastamento do sujeito: a moldura, parte integrante destes objectos, constroem uma espécie de volume minimal.
Mas mais uma vez o paradoxo faz-se sentir, porque à distância imposta pelos reflexos corresponde a convocação, para primeiro plano, do corpo do espectador e do lugar que ocupa: subitamente estamos a ver-nos a nós próprios transformados em matéria principal daquelas obras. Confrontado unicamente com espectros, que sugerem paisagens e acontecimentos dos quais faz parte quem os vê, o sujeito transforma-se numa espécie de tradutor e interprete. Porque ao vazio das imagens justapõe-se a legenda; e é o espectador, abandonado e perdido nestas superfícies, que tem que resolver o enigma que é a relação entre a descrição da legenda e a imagem que não pode ver.
A legenda, que num primeiro momento parece ir desvendar o segredo da superfície reflectora, adensa mais o problema e torna a visão destes trabalhos num desafio de tradução e compreensão. Fica-se sempre sem perceber qual a relação que existe entre essa legenda de uma imagem supostamente real, que o artista tratou de esconder, e o campo cromático. Esse grau mínimo de narrativa e informação que a linguagem introduz são engodos, atrás dos quais se corre para verificar a possibilidade da sua verdade ou ilusão. Este jogo com a linguagem e as imagens transforma-se no caso de João Louro numa muito especial investigação sobre o estatuto da ligação, sempre pressuposta e problemática, entre aquilo que é dito, ou escrito, e o que é visto.
O trabalho deste artista pode mesmo ser entendido como uma exortação a que cada um, por si só, constitua o que à primeira vista parece ser tão simples: uma imagem. Mas a simplicidade é só aparente, imediatamente percebe-se que a construção da imagem – que retrata (depics), que representa, que apresenta, que simboliza – é antes de mais uma decisão e um acordo com certas características da realidade. Estão em causa uma ordenação e um juízo sobre a realidade.
O gesto virtualmente estético e exclusivamente poético descobre-se como político: atribui sentido e significado aos elementos que compõem a camada visível do mundo. Com a linguagem acontece exactamente o mesmo, por isso a utilização/manipulação da linguagem é outra das características permanentes do trabalho do João Louro. Os seus trabalhos são movimentos contínuos de descoberta da potência simbolizadora e metafórica da própria linguagem e das imagens que as próprias palavras formam.
A tensão que aqui detectamos resulta de levar ao limite os significados e de criar situações em que as palavras deixam de fazer sentido e aquele que lê, que procura informações/indicações/percepções, nas palavras fica perdido. É um jogo com o silêncio e com a incompletude: imagens que não são finalizadas, frases que não se completam, seres captados num momento de indecisão entre o aparecer e o desaparecer, etc. São estes intervalos – entre o dito e o não dito, o visível e o invisível – que constituem o lugar, por excelência, de João Louro e é neste espaço “entre”, uma espécie de intervalo produtivo, que o artista funda a sua prática artística.
Os seus trabalhos mais do que conceptuais são sobre a suspeita - não é por acaso que os autores que referencia nas suas placas de trânsito são os mestres da suspeita e da dúvida: Wittgenstein, Karl Kraus, Nietzsche, entre outros. Referências que não reenviam para um universo de erudição, mas são uma espécie de permanente cartografia das imagens e construções colectivas. Por isso as imagens de João Louro são locais densos onde a pele se torna mais espessa e difícil de penetrar e o sentido mais complexo. A intuição central – onde todas as obras de Louro vão buscar alguma coisa – é que o visível - na imagem, na linguagem, na forma e na cor – é detentor de sempre mais que aquilo que podemos suspeitar. Não se trata de um mecanismo psicanalítico ou estruturalista que procura a estrutura da estrutura ou o sentido do sentido. Trata-se antes de um procedimento em que se salvam as aparências do reino da indiferença e da insignificância.
originalmente publicado na ArtPapers, Janeiro/Fevereiro, 2007
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