Tuesday, February 26, 2008

o escultor com uma navalha na mão



Existem gestos que nos esmagam. São duros, secos e precisos como se empunhassem uma navalha que nos fere mortalmente e pela qual escorre todo o nosso sangue até nos transformarmos num cadáver exangue. É desta maneira que a escultura de Rui Chafes nos atinge. A ferida que deixa aberta é enorme e por ela saem todas as coisas que julgávamos saber acerca da escultura e do trabalho deste artista. As qualidades poéticas, formais e materiais são as de sempre, mas existe em Onde Estou? uma novidade: a escultura anula-se – enquanto objecto - e no seu lugar surge o confronto do corpo – que é o corpo de qualquer um de nós – consigo próprio, os seus limites, o seu espaço. Um encontro que encerra o horizonte e obriga a cerrar os olhos: a escultura transforma-se em impedimento, em impossibilidade, em sufoco. Não existem objectos, formas ou palavras: o ferro, negro como habitualmente, só irradia frio e silêncio.

Não se trata de um trabalho que se possa ver, mas é-se obrigado a experimentá-lo, a tomar-lhe o gosto: amargo e quase intragável. Trata-se de um lugar denso e negro, onde não há cor e só dificilmente a luz penetra. As enormes paredes são pontilhadas por exíguos pontos brancos, através dos quais nasce uma luz penetrante que anuncia um para lá dos limites do volume negro. Mas a quietude e silêncio dominam e só são interrompidos pelo som estrondoso dos nossos passos: parecemos seres penados cujas pernas são arrastadas ao longo de um caminho longo e tortuoso. Cada movimento produz um som e uma ressonância que se prolonga na totalidade do lugar: as paredes vibram e o corpo treme. A tensão é enorme e percorrer esta obra significa tentar encontrar a saída, a claridade, o exterior. Mas a escultura transforma-se no próprio do corpo daquele que a percorre e não permite a fuga: é como se ter um corpo fosse uma espécie de condenação para a qual não existe redenção possível e nós fossemos uma espécie de seres enjaulados nos nossos próprios corpos, nos nossos próprios olhos, na nossa própria pele.

De um ponto de vista formal, podemos caracterizar este trabalho de Chafes como sendo a anulação do exterior da escultura. Não existe nada para além da escultura – o espaço é a escultura, a escultura é o espaço e não há mais nada para além da escultura – e tudo – mesmo tudo – tem uma natureza espacial: o tempo mede-se pelos passos dados, pelo caminho percorrido, por aquilo que se inscreve na memória. Que o mundo possa ser a grande escultura – os deuses são os grandes artistas, primeiros mestres da criação – não é uma novidade, mas com Chafes o carácter divino é atribuído a tudo quanto há: à maneira de Novalis, tudo deve ser potenciado poeticamente, tornado motivo poético ou, como escreve Chafes no texto que acompanha esta exposição, trata-se de descobrir “que o silêncio não existe”. Poetar – acto de tornar qualquer coisa densa e significativa – é o primeiro gesto da criação e significa a conquista de um certo modo de olhar para as coisas que as vê como se fosse a primeira vez e que resulta no espanto de quem está em permanente descoberta e experimentação do mundo.

Onde Estou? é um momento tão essencial – porque preciso, sintético e poderosamente expressivo – que a forma é dispensada: a única coisa que rompe a aparente uniformidade e continuidade são os círculos rasgados na malha metálica. Essas formas oculares, feitas para os nossos olhos, não são instâncias de revelação mas devolvem sempre a escultura negra no confronto com a luz branca. Espreita-se por essas aberturas mínimas e descobre-se o branco da cale e da luz e o negro da escultura. Nos momentos mais felizes percebe-se alguma coisa da construção do espaço envolvente, mas na maior parte dos casos aquilo que se vê são pontos abstractos que se repetem ao longo da totalidade do caminho. A regularidade destes pontos lembra a cadência dos versos de um poema ou a sucessão das imagens num filme que convergem num lugar único. Mas também os podemos entender como marcos da vida e ver esta escultura como o caminho que, na solidão, o ser humano tem de inevitavelmente percorrer. No texto que Rui Chafes escreveu para esta escultura, estes são os ingredientes que, mais imediatamente, saltam à vista. Escreve o artista:

“Onde estou? Vê como tremo quando falo contigo. Não posso mais. “Não tenhas medo”, dizem-me. Mas aqui nem as palavras são necessárias. Enquanto espero, habituo-me à ideia da morte. Não tenho mais nada. O ar que respiro é venenoso […] Luto contra a parede, luto contra a porta, luto contra mim. Já não há lugar para o ódio nem para o sofrimento. Para tudo e para todos no mundo eu já estou morto […] Aqui aprendi a amar aquilo que nunca irei alcançar. Aprendi a amar os limites do meu mundo e também as paredes em volta do meu corpo. Na escuridão, aprendi a pensar com o corpo. Descobri também que o silêncio não existe. Lembro-me da ridícula liberdade concedida no mundo exterior: débeis criaturas acorrentadas, sem voz e sem olhos” e conclui “Dizes-me onde estou?

Este lutar contra as grades da nossa prisão (diria Wittgenstein) é feito das tentativas de dizer o que mais importa, de encontrar a palavra que salva e estar sempre a falhar, de tentar encontrar o caminho certo e cair antes de chegar a sítio algum. A experiência do falhanço é um certo modo de experimentar os limites, por isso nesta obra de Chafes parede, porta e corpo são elementos arquétipos porque são fundadores deste amor pela experiência do limite: aprender a pensar com o corpo implica a metamorfose do sentir em sentido, como se subitamente a inteligência ficasse localizada nas pontas dos dedos, na língua, nos olhos. O que implica uma espécie de transmutação do limite em limiar: não podemos domar o espaço mas podemos espreitá-lo e percorrê-lo, não podemos sair do corpo mas podemos dizer, significar, expressar para além o corpo. O texto que transcrevemos – e é preciso lembrar que a esculturas deste artista são feitas de ferro e voz – apresenta, com precisão, o horizonte em que se desenvolve esta obra e coloca a descoberto as perplexidades que Onde Estou? tem no seu coração sensível.

Partir para a experiência da escultura como se esta fosse uma prisão é motivado não só por uma compreensão daquilo que são as ferramentas expressivas do homem – voz, corpo, gesto – como pela clausura real numa prisão. Concerteza a proximidade do local da exposição do presídio de Roma não foi indiferente na construção desta obra, mas a experiência da clausura real – para muitos estar vivo é estar preso no mundo, num corpo, numa fala – é essencial no modo como Chafes desenvolve o tema dos limites da escultura. A navalha que referíamos no início é feita do exílio a que o artista, voluntariamente, se submete e que depois nos restituí sob a forma da experiência da solidão que a sua escultura potencia (sentimos a presença Genet e do modo brutal, porque verdadeiro e directo, como nos conta a vida). Experimentar a solidão é aqui o modo encontrado para o sujeito se sentir a si próprio: e esta é a experiência de sentir a própria vida como impedimento.

A luta contra os limites significa a conquista de novas zonas da sensibilidade: trata-se de rasgar a pele para se poder sentir mais. Mas o central nesta exposição
é a experiência de não se saber onde se está: em vão procuram-se substitutos que possam servir de orientação, mas só se encontra o silêncio assustador e o negro infalível do metal. E o artista transforma-se naquele que, com uma navalha aguçada na mão, segue na frente para abrir o caminho.

este texto foi publicado na revista Sexta, por ocasião da exposição Onde Estou? de Rui Chafes na Fondazione Volume, Roma, em Fevereiro de 2007

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