Tuesday, February 26, 2008

A pintura como coisa áspera




Fazer justiça às imagens é tarefa árdua, mas fazer justiça a uma pintura é da ordem da impossibilidade. As palavras – primeira instância de ordenação do mundo – são condição de visibilidade: “Fala para que eu te veja!” diz Hamann; mas quando toca à restituição da experiência de uma pintura as palavras recuam e parecem ficar ocas e em vez de um sentido preciso parecem ser ecos indistintos. Primeiro porque a pintura não é um objecto, nem é uma imagem, nem um conceito; depois porque as palavras são escravas do sentido e do significado e a pintura só é escrava de si própria. Mas não é um caso de autismo, mas de uma absoluta concentração, é o gesto intenso daquele que se vira sobre si próprio.

A pintura de Paulo Brighenti pode inscrever-se neste universo. A história da pintura é a história dos seus gestos: que guardam a possibilidade da repetição e da certeza que os sucessivos golpes sobre a tela abrem campos sensíveis e possibilitam a experiência. Não é uma pintura de personagens, mas de sombras e reflexos: é um reino aquático que está sempre a lembrar-nos que cada construção é, no fundo, uma ruína e cada rosto uma caveira. O pintor, afundado neste mundo de sombras e reflexos, é o grande reconstrutor: pacientemente recolhe, reconstrói e dá a ver.

“per aspera ad astra” (o caminho para os astros é feito de aspereza): é o mote daquele que reconhece que o tempo está do seu lado, que o tempo não combate as pinturas, mas fá-las existir e intensifica-as. O caminho que leva à pintura é áspero, porque é um caminho feito de coisas que não têm o brilho das superfícies polidas, mas a rugosidade natural de tudo quando existe. Aquele que mete as mãos nestas asperezas fere-se e sente diferentes coisas a conquistar espaço: tudo quanto há perfura-lhe a pele e conquista um lugar na interioridade a que cada pintura confere uma imagem. Por isso o pintor é aquele que se encontra quando se perde no exterior: é no momento de reconhecimento que existem coisas diferentes de si que se dá conta das linhas que desenham o seu território.

O sofrimento ligado às coisas ásperas tem origem na necessidade da escolha – supremo sacrifício - e da desagregação do visível: não há pintura sem desmembrar o visível, não há pintura se com um gesto não se decompuser – camada por camada – o véu que cobre e filtra o campo de visão. Por isso, ao pintor cabe a tarefa de imitar isso que vê: mas da cópia solta-se o original e da acção mimética solta-se o gesto poético e o campo da pintura transforma-se no local de síntese de todas as intensidades e profundidades do horizonte. Um campo feito de pregas e rugosidades.

“Radiohead”, título da nova série de pinturas de Brighenti, é um conjunto de perplexidades tornadas pintura: a maior delas diz respeito ao sempre misterioso acontecimento que é a própria existência da pintura. Nunca conseguiremos convenientemente responder à pergunta do ‘porquê’ da pintura, mas somente ao ‘como’ é a pintura e são os movimentos de redefinição e reposicionamento da imagem na/da pintura que Brighenti continuamente executa.

texto escrito para a exposição de Paulo Brighento na Galeria Baginski em Setembro de 2006, inédito

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