Marat significa, antes de mais, o nome que se dá à impossibilidade de representar a vida sem a morte. A pintura que David faz do corpo assassinado de Marat tem uma dupla função: primeiro, põe em causa a compreensão do retrato e depois constitui-se como uma apresentação do corpo enquanto ser em metamorfose para a morte. Neste retrato fúnebre, o leito de morte é uma banheira em que o corpo delicadamente se separa da vida, onde se materializa um afastamento e se impõe uma distância. No limite, trata-se de um retrato impossível, o qual é considerado por Baudelaire como um poema visual onde a vida surge na sua feição mais cruel e no qual Marat desafia Apolo.
Estas considerações não são estranhas aos desenhos que Rui Sanches, inspirado por David, dedica “A Marat”. Este surge como motivo que conhece sucessivas aproximações, enquadramentos, imagens. O elemento central é o corpo na sua acção de desvanecimento sobre o qual são construídas as coordenadas de um lugar impossível: o lugar onde a vida se separa do corpo, o lugar onde acontece a morte. Em alguns destes trabalhos surgem sobre a figura uma espécie de diagramas, esquemas de integração do peso do corpo assassinado pelo punhal de uma mulher. É como se o artista ensaiasse dar à perda uma figura.
A escultura que convive com estes desenhos também é sobre a perda. “Orfeu” é o nome do cantor que com a sua lira e o seu canto encantava animais ferozes e desviava o curso dos rios; um dia perde o seu amor, Eurídice, e vai às profundezas do Hades para resgatá-la. A condição imposta pelos deuses é que Orfeu pode levar Eurídice desde que não olhe para trás, se não perderá para sempre o amor.
Quer a escultura quer os desenhos partilham a experiência da perda, da morte, do afastamento, da distância. Mas em ambos os casos as obras estabelecem uma relação erótica com o seu contemplador. Ainda que as estratégias nos desenhos e na escultura sejam diferentes, ambos conhecem na pulsão de Eros (irracional, imbatível, sensível) a sua forma.
Se nos desenhos o corpo parece desintegrar-se e desmaterializar-se, em “Orfeu” a lógica é a da acumulação de finas placas de contraplacado sobre as quais se ergue um corpo de gesso branco. As formas antropomórficas que nascem são fruto da relação que o corpo escultórico cria com o corpo do seu utilizador: corpos de matérias diferentes que se reconhecem um no outro. Este corpo é afirmativo no modo como se movimenta e ergue acima do solo. A indistinção entre o que é corpo e o que suporta o corpo é um elemento importante e que afirma a pertença de todos os corpos ao mesmo fundo, aos mesmos elementos, às mesmas raízes.
As referências históricas não têm no trabalho de Rui Sanches um papel determinante, mas servem como metodologia de revisitação da história da memória, dos momentos humanos de aprendizagem do sentido e da percepção. O seu programa não se funda num elenco dos clichés visuais da história da arte, estabelecendo-se antes sobre a sua destruição ao transformar em seu material uma certa tradição. O que lhe interessa são os motivos humanos que ficaram condensados nas histórias, nas pinturas, nas esculturas e que ecoam em todos os corpos e em todos os tempos. Este é o seu âmbito.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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