Tuesday, February 26, 2008

sexo, sangue e morte - notas sobre Fassbinder




“Gostaria de construir uma casa com os meus filmes. Alguns são a cave, outros as paredes, outros, ainda, são as janelas. Mas espero que todos, no final, sejam uma casa.”
Rainer Werner Fassbinder



Não sabemos o que é ser da geração de Rainer Werner Fassbinder, e nem sabemos o que sentiram os seus contemporâneos quando viram os seus filmes. Surgiu à margem do sistema e foi, imediatamente, classificado como bandido. Nós que somos herdeiros de Fassbinder mantemos um convívio estranho e intenso com a sua obra, actualmente a ser digerida por museus e uma certa “intelligentsia”. A cada filme levamos um murro no estômago. A cada plano — lento, preciso, cirúrgico — sentimos que se passa qualquer coisa que não se atém ao plano da imagem, mas que se prolonga no modo como são convocados os nossos fantasmas internos, as nossas dificuldades e os nossos desejos absurdos. Qualquer coisa a que o nosso corpo responde e corresponde: responde porque aos estímulos do ecrã segue-se uma resposta física e corresponde porque existem nas nossas entranhas elementos que os ingredientes das imagens reproduzem tal qual. Há quem faça equivaler este efeito a uma leitura psicanalítica freudiana, mas aqui preferimos fazê-lo equivaler a uma rara atenção à constituição da matéria humana. Uma atenção que se materializa em imagem e em palavra, e que tematiza o modo como a construção da nossa identidade é um processo colectivo, ou seja, que o amor e a morte, os eternos motes de Fassbinder, são sentimentos que se descobrem enquanto prolongamentos da sociedade em que vivemos.


Para Christian Braad Thomsen, autor de um dos mais importantes livros sobre o realizador com o título “O amor é mais frio que a morte”, Fassbinder usa o ecrã como “um espelho deformador, que nos atira de volta para a sala de cinema, menos apaixonados por nós próprios, mas talvez com um melhor autoconhecimento”. Uma afirmação certeira porque sublinha que o essencial nesta obra é o facto de ela se assumir como ferramenta de autoconhecimento, mas, corrija-se, o espelho que representa não é deformador, antes constrói-se sobre a possibilidade de à imagem espelhada corresponder a verdade. Aquilo que se vê é doloroso porque equivale à visão do tecido da nossa interioridade, a qual tem como seu elemento originário o trauma, o choque, a violência, a morte. Todos os filmes de Fassbinder são, de algum modo, trágicos e funcionam como uma espécie de inversão do final feliz, tão ao gosto de um certo tipo de cinema e arte — como “Götter der Pest/ Os Deuses da Peste” (1969), só para dar um exemplo. Mas o seu ser trágico significa a transformação em conhecimento, materializado nos seus filmes, da identificação da vida como mortalidade e dos homens como heróis trágicos. Estes são aqueles cujas vidas se desenvolvem a partir da consciência da finitude, da impotência, do desencontro, do desajuste, do desamor. Vidas cujo momento axial é a descoberta de que vão morrer. O que significa não o último passo para a libertação, mas a derradeira experiência, à qual corresponde o nascimento do si-próprio (do self em inglês, selbst em alemão): simultaneamente descobre-se a personalidade e a morte, o indivíduo e a solidão, a pessoa e o isolamento. No limite, trata-se de saber que a cada um corresponde a sua própria morte, única, diferente de qualquer outra e sempre impartilhável. É um segundo nascimento — que em termos psicanalíticos pode ser equivalente à morte da autoridade do pai — regido inteiramente por Thanatos. Afirma Fassbinder:

“Os meus filmes são muitas vezes criticados por serem pessimistas. Em minha opinião, existem razões suficientes para se ser pessimista, mas eu, de facto, não vejo os meus filmes dessa maneira. Eles desenvolvem-se do pressuposto de que a revolução deve acontecer não no ecrã, mas sim na própria vida e quando mostro as coisas a correr mal, faço-o para que as pessoas compreendam que isso é o que acontece se não mudarem as suas vidas. Se, num filme com um final pessimista, é possível tornar claro às pessoas porque é que as coisas acontecem assim, então o efeito do filme, no fim, não é pessimista. Nunca tento reproduzir a realidade, o meu objectivo é tornar os mecanismos transparentes, para ser óbvio porque é que as pessoas têm de mudar a sua realidade.” (em entrevista a C.B. Thomsen)


Que as coisas podem correr mal — lembre-se “Mutter Küster fahrt zum Himmel/A mãe Küster vai para o Céu” (1975) e “Faustrecht der Freiheit/O direito do mais forte à liberdade” (1974) — é certo e talvez nunca possam correr bem, mas pode converter-se este pessimismo em realismo através da atenção àquilo que motiva e origina a acção e os estados de coisas. O gesto de tornar claro significa, no seu vocabulário cinematográfico, a intensificação da totalidade das emoções e sensações e, sobretudo, um modo de filmar que anula as ilusões. E não esqueçamos que está sempre em causa uma tentativa de nos fazer pensar sobre nós próprios: obrigar o sujeito a dobrar-se sobre si mesmo e a tocar a matéria de que é feito o seu mundo. A sua máxima é a de, em palavras de Nietzsche, tocar o fundo da vida. Mas o ambiente dominante dos seus filmes é o de uma quase normalidade (personagens e situações que todos conhecemos do nosso quotidiano mais imediato), só que habitada por uma profunda consciência dos limites da liberdade, e dos seus constrangimentos sociais e políticos.


A intensidade do seu imenso trabalho — em 13 anos de carreira (1969 a 1982) realizou 37 longas metragens, três séries de TV num total de 20 episódios, foi actor em muitos dos seus filmes e em filmes de outros realizadores (Jean-Marie Straub, Uli Lommel, Werner Schroeter, François Ozon, entre outros), além de ter produzido muitos dos seus filmes, ter escrito ensaios (sobre Douglas Sirk, Claude Chabrol, etc), peças de teatro, etc. — é indissociável da Alemanha confusa e a refazer-se do trauma nazi: Fassbinder nasceu a 31 de Maio de 1945 e morreu a 10 de Junho de 1982, ou seja, nasceu três dias depois da rendição da Alemanha nazi e morreu sete anos antes da queda do muro de Berlim. Um intervalo de tempo em que se assiste na Alemanha à redefinição não só da ideia do próprio país, mas onde é colocada de um modo radical a questão sobre a viabilidade de uma vida em conjunto, isto é, a possibilidade da existência da comunidade humana.


Aquilo que se percebe nos seus filmes é que há uma tentativa, como ele próprio afirma, de descrever os mecanismos profundos destas inquietações. A premissa de que parte é que a história, interna e externa, não obedece a um modelo linear: não é possível entender a biografia de um indivíduo ou a história do mundo como se se tratasse de um rio que, à Heraclito, corre incessantemente e sem sobressaltos. As suas “histórias” entendem que o processo de formação não é linear, mas dá-se através de acontecimentos imprevisíveis, ilógicos e, a maior parte das vezes, irracionais. São momentos — traumáticos e chocantes — que rasgam o tecido social, político e humano. Uma visão que partilha as convicções mais profundas de Demócrito: o mundo é feito de elementos individuais, a que o Grego antigo chamava de átomos, Freud trauma e nós momentos de inesperado terror e desespero. São unidades mínimas de sentido, a que correspondem factos significativos e que podem alterar o curso das coisas (o tal rio impassível de Heraclito) — veja-se a “Der dritte Generation/A terceira geração” (1979). Deste modo, a história é, concluímos nós a partir dos seus personagens e suas tramas, não um processo em desenvolvimento, mas um conjunto de acontecimentos cujo verdadeiro alcance quase nunca se consegue perceber na totalidade (Hannah Arendt expressa esta convicção quando afirma que nada podia prever os campos de concentração nazis e o que eles protagonizam está para lá das possibilidades do entendimento humano).


É interessante notar como é que muitos dos problemas que os filmes de Fassbinder levantam, em termos da relação do tempo com a história e do trauma com o indivíduo, são idênticos àqueles com que se vai debater alguma da fotografia e arte contemporâneas, nomeadamente através da colocação da questão, depois de descobertas as primeiras imagens de campos de concentração, da possibilidade de fotografar e/ou filmar os espectros, o horror, o sofrimento (três exemplos: Claude Lanzmann, Daniel Blaufuks e Mikael Levin).


Para além da natureza mais interna ao próprio fazer da imagem e do movimento, os filmes de Fassbinder são marcadamente políticos e críticos. Este é, aliás, o seu aspecto mais conhecido. E são filmes duros que não deixam pedra sobre pedra. Não existem tabus ou lugares proibidos. Por isso foi — e ainda o é e muito — um autor controverso, incómodo, que, às vezes, se prefere não ver. A sua estética, muito inspirada na experiência colectiva do teatro, forma-se no terreno da convicção política. E a sua sensibilidade, nada convencional, está comprometida com a totalidade da esfera política, e é esta que molda os movimentos e modos de sentir. A fisicalidade e sensualidade dos seus filmes — alguns deles são verdadeiras obras de acção — provêm da recusa não só da intelectualização dos sentimentos, mas da necessidade urgente de fazer coincidir a imagem com a convicção, o movimento no ecrã com o agir na sociedade civil. Do mesmo modo que não existia uma separação clara entre o autor e o homem Fassbinder, também não existe qualquer abismo a ser transposto entre o mundo dos filmes e o mundo da convulsão política, da necessidade, da proibição, da xenofobia, da desigualdade, da injustiça. Note-se que fazer cinema deste modo é desobedecer e contrariar as leis surdas e implícitas do mercado, sobretudo, na recusa fundamental em ceder à comercialização dos afectos.


Não é um mundo de sombras, mas de fantasmas reais que permitem a redenção. Esta, a ser possível, tem dois caminhos: o amor e a arte. E é da afirmação profunda destas duas energias, que muitas vezes parecem demónios, que nasce o impulso maníaco e obsessivo de fazer filmes sem parar. A estratégia é terminar com as ilusões, ainda que muitas vezes o mundo dos seus filmes pareça um sonho, mas não com a beleza. Só a falsidade da promessa de um mundo que corre suavemente como um rio e onde não há sobressaltos é que é preciso denunciar e aniquilar. Numa entrevista Fassbinder afirma:

“A coisa melhor que consigo imaginar seria criar um elo desses, entre uma forma de fazer filmes tão belos, poderosos e fantásticos como os de Hollywood que, contudo, não sejam totalmente optimistas. Fazer um filme alemão igualmente belo, grandioso e fantástico, mas que pudesse ser crítico. Especialmente porque muitos filmes de Hollywood não são pura e simplesmente optimistas, ao contrário do que se costuma dizer.” (Fassbinder em entrevista a C. B. Thomsen)


Trata-se da tentativa de fazer um cinema com a beleza de Hollywood que promete uma felicidade irreal e ilusória, mas sem a falsidade que essa promessa tem no seu centro.


Existem imensas possibilidades de entrar na casa que Fassbinder construiu, quase tantas quanto os seus filmes. Mas todos os problemas que toca — a substituição do afecto pela violência; a relação entre vítima e carrasco; a opressão política, social e amorosa; o terrorismo; a mulher; a homossexualidade; a prostituição; os ricos e os pobres, etc. — partem da convicção original, quer-me parecer, de que o cinema não é um produto de entretenimento, mas uma ocupação séria a ser entendida como veículo de libertação e revolução. E junte-se ao cinema o amor. Por isso, à semelhança da tragédia ática, o sexo, o sangue e a morte surgem como recursos principais, porque permitem tornar os seus conteúdos mais explosivos, mais legíveis, mais actuantes, mais próximos da carne que é feito o corpo (social e físico) de todos nós.


publicado originalmente em www.artecapital.net

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