Tuesday, February 26, 2008

Vazio, escultura e pensamento - sobre Miguel Ângelo Rocha




Sobre a exposição Imponderável de Miguel Ângelo Rocha, nos pavilhões 27 e 28 do Hospital Júlio de Matos em Lisboa, comissariada por Nuno Crespo







A escultura é corpo, é espaço, é tempo. O seu campo é de múltiplas conversões e metamorfoses: transforma o corpo em espaço, o tempo em espaço, o espaço em objecto. As formas que assume desenham os contornos do espaço e tornam-no consciente, perceptível, existente, real. As esculturas que Miguel Ângelo Rocha agora apresenta têm esta metamorfose no seu centro: fogem do carácter de objecto para se assumirem enquanto puras apresentações das qualidades espaciais, das suas zonas sensíveis, humanas, terrestres.

Em “Unless the room is empty” o gesto escultórico realiza-se não sobre uma lógica volumétrica e/ou geométrica — como tem sido habitual no trabalho do artista — mas desenvolve-se a partir do traço e da inscrição da linha no espaço vazio. É como se a linha se materializasse e a partir do seu natural desenvolvimento começassem a nascer formas, objectos, densidades e diferentes profundidades. São múltiplas direcções de desenvolvimento que abrem a escultura como lugar de tensão, pureza e quase imaterialidade. Se habitualmente se associa ao campo escultórico a presença, o peso e a gravidade dos objectos, este caso é o oposto. O peso e a matéria não são mensuráveis: a madeira de que é feita a escultura parece meramente indicar movimentos do ar, as diferentes formas que pode assumir: as suas torções, oscilações e variações.

São linhas que têm numa antiga mesa o seu ponto de origem e a partir desse ponto material ganham a liberdade, a rapidez e a fluidez a que normalmente se está habituado no desenho. Este seu carácter imediato é sinónimo da sua proximidade com o pensamento: torrencial, arrebatador, vertiginoso, que não conhece fronteiras e só limiares.

Na outra série de cinco esculturas, “Sculpture with incline” a matriz é a do abrigo, da habitação, da protecção. Não se trata de casas, mas o jogo formal é com a capacidade que a escultura possui de abrigar aquilo que acontece fora dela. A intersecção de planos cria zonas abertas que funcionam como uma espécie de rasgões no campo visual e fundem o lá e o cá, o deste lado e o do outro lado. Não são questões exclusivamente formais, mas gestos que acompanham a exigência de mobilidade do olhar e do corpo que envolve e interroga a escultura.

No vocabulário da física diz-se que são imponderáveis os fluidos que não têm expressão nos instrumentos de medida, ou seja, que não podem ser medidos ou pesados, matérias que não inscrevem a sua materialidade em nenhum tipo de instrumento humano. São imponderáveis as coisas que não podem ser avaliadas quanto ao peso, bem como as acções que não se podem prever ou antecipar. Estas esculturas estão nesta situação: são corpos subtis que se insinuam nas paredes, que criam aberturas e envolvem o espaço não enquanto objectos, mas como zonas de intensificação. A direcção incerta de onde provêm apresenta um destino igualmente incerto: imponderável.

Em todos os trabalhos apresentados, o vazio é um dos elementos decisivos: é uma das matérias com que o escultor trabalha, tão importante como a madeira que aqui suporta o pensamento, o gesto e a forma. Trata-se da integração da própria imponderabilidade no coração sensível da matéria, o que é uma outra forma de dar conta do espaço enquanto sentido externo do sujeito. O vazio é o lugar onde o outro pode surgir e acontecer, o seu lugar de integração e de pertença: é porque a escultura não é um campo determinado e totalmente preenchido que o outro é a sua condição de existência — possibilidade do pensamento, do sentimento, da existência. Não se trata de fazer depender o escultórico do assentimento externo, mas de transformar o objecto, a forma e as matérias em zonas onde a interioridade se reconhece a si própria.

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