“Dantes o poeta existia para nomear as coisas: como se fosse a primeira vez, diziam-nos em crianças, como se fosse o dia da Criação. Hoje em dia ele parece existir para se despedir delas, para as recordar aos homens, terna e dolorosamente antes que sejam extintas.” Cristina Campo, Os imperdoáveis
Independentemente da relação problemática que a arte possa ter com a memória e com o tempo presente, ela realiza sempre uma subtil manipulação do tempo. Seja esta manipulação uma paragem do tempo ou um seu acelarar, a verdade é que o ingrediente temporal é essencial na mistura que qualquer obra de arte é. Sobretudo se estiver em causa a criação de imagens: trata-se de recriar aquilo que ao existir no tempo o qualifica, aquilo que transforma a abstracção do tempo num local – do pensamento e da sensibilidade – com características específicas, qualidades concretas que dão à linearidade do tempo ritmo, cor e forma. Cristina Campo fala do poeta como uma espécie de agente de interacção temporal que rouba à torrente avassaladora do tempo aquilo que ainda pode ser salvo e nós podemos esticar esta imagem e faze-la equivaler a todo o artista que encontra nas suas obras de arte a materialização da acção do resgate do esquecimento.
O mundo de Albano Afonso não é um mundo à beira da extinção, mas é um mundo que quase não existe. É um mundo de dobras, de campos escondidos e contra-campos, no qual dificilmente nos podemos orientar dada a sua natureza aquática, fantástica e espectral. Trata-se de qualquer coisa que é capturada entre momentos: aquilo que na mais remota hipótese se consegue fixar entre dois pontos distintos do tempo, entre um antes e um depois. Não sabemos se são fantasmas ou anjos alados que sobrevoam as nossas cabeças enquanto os tentamos estabilizar numa imagem: sabemos unicamente da dificuldade em fazer parar aquelas criaturas que livremente inundam o espaço. E trata-se mesmo de um inundar, porque é um processo que não conhece termo. Quando o artista liberta os seus seres eles inundam a sala como se fossem um fio de água que começa a correr e que depois já tomou conta de tudo e quando o queremos deter já é tarde de mais.
Sabemos que estas imagens são personagens vindos de outras camadas do tempo: sobretudo de pinturas que o artista reconquista na sua dimensão de luz e transforma em verdadeiros corpos de luz. A sua materialidade fica a dever-se não à mancha ou às diferentes sobreposições de tinta, mas à capacidade de irradiar luminosidade: um transbordar para fora de si próprios. Uma acção durante a qual percebemos que a claridade de que são feitos é uma fina mistura de sombras e luminosidade, escuridão e iluminação. Mas a claridade aqui em causa não é um fim em si própria, mas é o modo encontrado pelo artista de conseguir ver aquilo sobre o qual assenta a construção e a possibilidade de cada um desses personagens. Ao re-criar cada figura em pontos de luz é como se Albano Afonso estivesse a tentar identificar os pontos cardeais de orientação de cada um dos personagens que inundam as suas paisagens de luz.
Esta recondução da figura, ou mancha, a um ponto de luz não é uma recondução de toda e qualquer imagem ao “pixel”, mas cria a possibilidade de compreender que a visão é um acontecimento da luz e que a pele visível do mundo – com todas as suas cores e formas – só é possível por se inserir nesse fino equilíbrio entre as trevas e a claridade. Não é uma metafísica da luz que o artista ensaia, mas é um jogo de olhares e percepções que está continuamente a propor: a possibilidade que nasce destes trabalhos é que a própria luz pode abandonar a sua invisibilidade e ser ela própria uma forma ou uma cor. No limite pode assumir-se que os trabalhos deste artista são contínuos movimentos de transformação: homens que se transformam em luz e luzes que se transformam em cores. E estas permanentes mutações acompanham os murmúrios que cada personagem – primeiro carne, depois tinta e agora luz – diz ao ouvido daqueles que os querem ouvir.
No limite, aquilo que sintetiza todos estes acontecimentos é o conceito de paisagem. Mas não se trata do conceito habitual em que as obras de arte se parecem transformar em janelas que dão acesso ao que há para lá delas e assim ficarem reduzidas a uma espécie de intermediário. Paisagem significa aqui a entrada em contacto com os pontos cardeais da constituição de cada um dos corpos: uma operação discriminatória feita pelo olhar no fim da qual se conseguem identificar os pontos que qualquer figura necessita para se poder materializar.
“Todos eles têm bocas exaustas / e almas claras sem costura.”
Rainer Maria Rilke, Livro das Imagens
Sejam reflexos numa parede, fotografias ou pontos de luz, todos os trabalhos de Albano Afonso possuem a característica de estar continuamente em movimento. Mas não se trata de um movimento qualquer como quem se desloca na procura de um objecto ou na tentativa de alcançar um local, antes a sua natureza é aquática e tudo quanto aí existe move-se com a calma daqueles que já conquistaram o tempo, daqueles para quem o tempo deixou de ser problema. Por isso podem não mostrar o rosto e remetem-se ao silêncio: como o artista por trás da máquina fotográfica que aqui parece um instrumento alquímico. Um desaparecimento a que corresponde a possibilidade de uma presença continua: estar sempre a aparecer como se nunca se ausentasse, esta poderia ser a máxima daquele homem – anterior ponto de luz que agora se transforma em rosto construído com luz e gesto – que surge nalguns dos trabalhos deste artista. A sua presença é inquietante: não podemos decidir se se trata de um mágico, se de um feiticeiro ou de um muribundo no momento da ascensão da sua alma. As situações em que o encontramos são sempre de indecisão entre aquele que vai aparecer e aquele que se esconde, entre a inspiração e a expiração. A luz, que habitualmente é condição de possibilidade da visão, transforma-se em obstáculo, em ponto de cegueira, em obstáculo: um foco intenso é colocado à frente da cara do artista e impede que o possamos ver.
É interessante perceber neste grupo de trabalhos de Albano Afonso a instabilidade em que a figura do artista vive. Nuns casos a luz impede a visão da figura, noutros é a própria imagem que parece estar em processo de dissolução ou evanescimento. Não se consegue uma estabilidade pictórica que possibilite o reconhecimento dos elementos que constituem a imagem. Podemos estar face a múltiplas fantasmagorias que são os elementos centrais do território de Albano Afonso. Não se trata de tentar colocar em imagens o infotografável ou de criar uma nova categoria de presenças espectrais, aquilo que parece interessar ao artista – e é por isso que a utilização que faz da fotografia é tão importante – é criar imagens de tipo diferente das que se usam para descrever o mundo e os seus factos. No limite, assiste-se a uma tentativa de levar ao limite o poder representativo e expressivo do modo humano de criar imagens.
Estas presenças fluviais e transbordantes, são lugares de mistério e melancolia. Vivem da tensão entre ver e não ver, entre a aparição e a dissolução: e é esta polaridade que confere a cada trabalho uma energia muito particular. Partindo destas fotografias é possível estabelecer uma metáfora da natureza do trabalho artístico: o artista é aquele que se esconde atrás de cada uma das suas obras, aquele que possibilita as imagens mas que depois se perde nelas. Parece que Albano Afonso concordaria com Platão quando, pela boca de Sócrates no Livro X da República, descreve o pintor como aquele que anda por todo o lado “com um espelho” e dado transportá-lo continuamente cria todo universo – “criarás o sol e os astros no céu, em breve a terra, em breve a ti próprio e aos demais seres animados …” – cria entidades fantasiosas, produto de uma imaginação entretida em distorcer o real.
Para o filósofo grego este foi motivo para correr com os poetas e os artistas da cidade ideal, mas para Albano Afonso parece que essa é a razão de insistir e persistir na conquista de uma linguagem própria. Porque, como escreve Cristina Campo, “Todos os grandes quadros são pintados contra a pintura, aliás destroem toda a pintura” uma destruição que não significa atirar com a pintura, e toda a arte anterior, para o esquecimento, mas significa a conquista de maior amplitude para cada um dos gestos com que o artista constrói o seu mundo. Se para Platão a possibilidade de não existir “o mundo”, mas “o meu mundo”, e a arte reflectir esta condição antropológica e metafísica essencial, é o motivo para exterminar as obras de arte, para os artistas este é o solo originário onde a cada momento tentam regressar. Por isso é que Cristina Campo apresenta como critério estético de reconhecimento de uma “grande” obra o efeito de desestabilização da história do seu meio: o conceito sofre um alargamento e tudo o que pensávamos saber tem de ser revisto. O caso de Albano não é de destruição, mas sim o da ampliação de uma maior amplitude para cada um dos seus gestos expressivos.
É um mundo murmurante porque nada é excessivo e todos os seus elementos concorrem para o estabelecimento de um ponto de vista onde as maiores desditas são apaziguadas. Uma murmurar decorrente daquele que sabe que à desaparição da sua imagej corresponde sempre a sua própria desaparição, que ninguém sobrevive sem a sua sombra, o seu reflexo, a sua imagem. Estar vivo significa o estar sempre a projectar-se naquilo que há: projectamos sentido no que vemos e tentamos conhecer, projectamos sombras por onde quer que o nosso corpo ande e transportamos, como se fosse uma segunda pele, sempre a nossa imagem. E o fundo melancólico que podemos perceber no trabalho de Albano Afonso prende-se com a possibilidade de, um dia, tudo isso se poder perder e, como aconteceu a Peter Schlemil no conto de Chamisso, nunca mais podermos sair de casa. Trata-se num mundo transformado em murmuro porque tudo está constantemente a dizer coisas, a fazer exigências, a emitir sinais. Os dois versos que Rilke escreve sobre os anjos aplicam-se aos personagens de Albano Afonso: as suas almas são claras como a luz que delas irradia e as suas bocas estão exaustas do continuo murmurar, do continuo fazer-se sentido.
texto publicado no volume Albano Afonso, col. XS, ed. Dardo, Vigo, 2006
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