*Conhecimento
Substantivo masculino; Formação de uma ideia, de uma noção da existência, da natureza, do valor de alguém ou de alguma coisa; apropriação pelo sujeito pensante dos objectos do pensamento; acto ou efeito de conhecer; acto do pensamento pelo qual se estabelece legitimamente um objecto enquanto objecto, distinto do sujeito pensante; consciência que cada um tem da sua própria existência.
“A arte pertence à natureza, a arte nasce do caos, ao dar-lhe uma forma imaginada, salva-o. O homem salva, pela figuração, a sua parte ancestral, de cada vez iluminando-a breve e ciclicamente, sem a anular. As obras de arte definem-se, assim, como modelos da natureza, modelos da noite imaginada, imagens vertiginosas da sua noite, ‘a noite salva’”, escreveu Maria Filomena Molder em Semear na Neve (1999).
Desde que se pensa a produção artística (uma história que tem a forma de um problema) que se questiona o modo como os objectos produzidos pelos artistas são objectos de conhecimento. Sabemos que as obras de arte pensam, na boa arte surpreende-se inteligência e condensação de um certo modo do saber do mundo: um saber não dedutivo, não analítico, mas, à maneira da poesia, um saber que transfigura, adensa e condensa. Mas a arte não pensa no sentido em que um filósofo, um matemático, um físico ou um engenheiro pensam uma questão. Sabe-se existirem contaminações entre os diferentes modos do pensar, mas é certo que em arte não se pode falar de um método científico, que procede da formulação e posterior validação de hipóteses, nem na heurística dedutiva e lógica, tão própria dos procedimentos filosóficos. E poder-se-ia continuar a lista das clivagens entre o tipo de conhecimento produzido pela arte e os restantes.
É importante a distinção entre conhecimento e sentido: o primeiro resulta da construção mental de um objecto, para o qual todas as forças da inteligência contribuem, o segundo, grosseiramente, diz respeito ao poder perceber aquilo que se pode sentir (um exemplo fácil: ler, compreendendo um texto escrito). Portanto, trata-se aqui de pensar a forma como as obras de arte são objectos que estabelecem com o mundo (a natureza) uma relação de revelação e aproximação de tal modo forte que passam a ser uma sua parte ou fragmento (esta foi a razão que levou Kant, Goethe, Schiller, Beuys, entre outros, a pensar a arte em relação com a natureza, ou seja, pensar a arte como um conjunto organizado de forças).
Poder-se-ia arrumar a questão dizendo que a arte, nas suas diversas modalidades, expressa o mundo, e que as obras de arte são as suas materializações, as quais permitem tornar acessível, comunicável e partilhável um objecto da expressão (e estes são vários, pelo menos tantos quantos os géneros artísticos e as obras de arte individuais). Mas isto não chega: o poder de revelação presente nos objectos artísticos não se esgota, se os entendermos enquanto mediação ou pretenso veículo de comunicação de uma ideia, gesto, ou qualquer outro conteúdo.
No texto citado, Molder descreve a arte com um modelo e esta descrição (nunca uma definição: sabe-se da impossibilidade em definir as obras de arte) é fértil e aponta para um tipo de conhecimento do mundo e da natureza distinto do registo material das ciências e dos grandes arquivos do mundo. Ser modelo permite manter, e sublinhar, a relação da arte com as imagens originárias do homem: as representações dos pintores permitiram, por exemplo, atribuir um rosto a Deus, dar expressão ao medo de morrer, ao Paraíso ou ao Inferno, etc. Ou seja, atribuíram uma forma à relação humana com o desconhecido, algo que uma investigação lógica ou material nunca poderá alcançar.
Esta produção de imagens (e poder-se-iam dar inúmeros outros exemplos) é exemplar, porque não determina nenhuma realidade -- por isso a arte permanece potência inesgotável na produção de sentido --, mas estabelece com o mundo uma relação de inédita proximidade. Não se trata, como no argumento platónico, de imitar aquilo que há, mas utilizando o existente (o permanente motivo artístico), dar-lhe uma forma na qual tudo surge a uma nova luz, a qual é capaz de iluminar e esclarecer subtilezas e aspectos a que o olhar habitual não tem acesso. Outras vezes, a arte consegue dar forma a uma inquietação ou a um temor e, assim, tornar esse sentimento em matéria comum de reconhecimento.
Voltando ao texto inicial: a arte pertence à natureza, mas, no contexto material e formal de cada disciplina artística, transforma-a num modelo e, assim, a obra individual surge como uma espécie de ideia com vocação universal: ambiciona ser válida para todos os homens, em todos os tempos e lugares. O conhecimento transfigurador que os géneros artísticos possuem, ao não ficarem restritos à transmissão de um qualquer enunciado, transforma-se em ocasião universal de formar um modelo daquilo que a linguagem comum e disponível pode apenas pressentir, mas nunca dizer.
É impossível não recordar as palavras -- que de tão esclarecedoras dispensam qualquer comentário -- que Hannah Arendt escreveu quando relatava o julgamento de Adolf Eichmann, um dos grandes responsáveis pelo extermínio de milhões de judeus durante o Holocausto: “Os juízes declararam que um sofrimento daquela dimensão estava para além da compreensão humana, que era matéria para os grandes poetas e escritores e não podia ser tratado numa sala de tribunal (…). Ao longo das intermináveis sessões que se seguiram, acabar-se-ia, contudo, por concluir, que era muito difícil contar esta história, que para contá-la -- pelo menos fora desse universo transfigurador que é o da poesia -- é preciso uma pureza de alma, uma candura e uma inocência de coração e de espírito que só os justos possuem”.
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