Sunday, April 10, 2011

Joseph Beuys










Joseph Beuys (1921-1986) é um dos artistas mais importantes do séc. XX. Figura controversa e muitas vezes silenciado (Rosalin Krauss no seu célebre estudo sobre escultura moderna e contemporânea não o menciona), constitui um momento fundamental de deslocamento da questão (e da discussão) da arte para o campo amplo do conhecimento e da sociedade humana. Ou seja, trata-se de uma tentativa de pensar o objecto e gesto artísticos no contexto amplo da vida humana tal como ela acontece na superfície da Terra.

O esforço de Beuys foi, fundamentalmente, o de ampliar a influência da arte de forma a ela poder contaminar todas as áreas da actividade humana. Que todo o homem seja um artista significa, primeiro, que a arte, muito ao tom das cartas de Schiller, constitui a melhor possibilidade de ampliar os poderes e forças humanos: “cada ser humano tem uma consciência totalmente particular, uma possibilidade. E essa possibilidade não está fechada. Pode desenvolver-se para tornar-se maior.” (p.132) Uma ampliação que para o artista seria eficaz e real se a arte fosse a base da educação humana: “o que é preciso fazer […] é desenvolver um conceito de arte que não sirva a real politik do mercado, mas que se dirija por princípio à criatividade de cada um, e não viva só dentro do mercado artístico. Mas que viva em qualquer parte.” (p.147)

O livro que agora surge em português resulta de uma acção que Beuys levou à V Documenta de Kassel em 1972. Nessa exposição, o artista, já só interessado em realmente mudar a vida e em dar início a processos sociais transformadores e curativos das feridas/traumas dos homens, decide abrir um gabinete para a democracia directa. Durante os 100 dias que durou a Documenta discutiu diariamente com os visitantes temas tão diferentes como: educação, salário mínimo, política, planos energéticos, arte, cristianismo, etc. Tudo porque não só “conversar é uma arte”, como porque para o artista a primeira forma de escultura (pode dizer-se ser a sua forma originária) é o pensamento e a linguagem: “a Língua é o primeiro tipo de escultura. Se lês dás formas às ideias através de um meio de expressão. O meio de expressão é a linguagem. Dessa forma, deveríamos aprender a olhar o pensamento em si mesmo, as pessoas deveriam aprender a olhá-lo como um artista olha a sua obra, isto é: na sua forma, na sua força, nas suas proporções.” (p.122)

Trata-se de apresentar um conceito de escultura que não diz respeito a uma experiência de materialidade, mas à descoberta da plasticidade própria dos processos de pensamento e conhecimento (por isso não se pode pensar o trabalho de Beuys desvinculando-o de uma teoria do conhecimento que tem nos românticos e em Goethe os seus pilares). Assim, a escultura começa na acção de observar o pensamento, na captação de ideias e depois na acção de olhar para essas ideias e contemplá-las como quem contempla um objecto escultórico. A materialização numa forma (linguística ou material) é um momento segundo e decorre deste primeiro contacto.

Não se trata, como muitas vezes se crê, de uma total descrença nos objectos, mas de uma exigência ética e artística. A proposta é que a arte rompa com o egoísmo da autoria e o campo individual e se constitua como terreno universal no qual os seres humanos se tornam mais livres, mais autónomos, ou seja, que a arte seja capaz de lançar as bases da auto-determinação de cada um. Bases estas que aos olhos de Beuys significam conseguir criar mecanismos próprios que permitam aos seres humanos desenvolver os “órgãos” que lhe permitam compreender a arte. Órgãos estes sintonizados com as diferentes camadas que compõe a natureza do mundo e do homem. Trata-se de uma espécie de antropologia artística que forma uma imagem do homem a partir da sua criatividade, isto é, a partir da “capacidade do ser humano criar, ser criador, uma criatura criadora.” (p.120)

Nestas conversas descobre-se o humanismo de Beuys: uma profunda crença na potência do ser humano, uma potência de potência que permite ao ser humano ser mais. Um mais que não se caracteriza por um aumento material, mas por uma expansão das suas forças sensíveis e intelectuais. Este optimismo na natureza humana é o motivo da expansão da escultura para o campo da política e a transformação do objecto escultórico numa síntese material e espiritual do desenvolvimento do conhecimento e da ciência (é preciso não esquecer que Beuys chega à arte através da ciência: é o profundo estudo da biologia que o leva a procurar outras formas de representação e formação de conhecimento).

A presente edição do texto de Beuys traz para a língua portuguesa um conjunto de conceitos e provocações caracterizadas pela sua actualidade. Não para aumentar o número de ‘filhos’ do Beuys, mas para verificar como é possível uma arte política que não dispensa objectos, nem a procura de formas e matérias nas quais os bons pensamentos e a ideias certas possam ganhar forma. A introdução de Júlio do Carmo Gomes é um importante contributo para a compreensão do artista e para o seu posicionamento no panorama da arte contemporânea: uma visão sinóptica (um olhar em volta para o conjunto de todas as coisas que estabelece relações entre todas elas e que foi tão importante para Beuys) que vê e estabelece ligações e passagens entre todos os momentos (desenhos, objectos, acções, aulas) do trabalho do artista.

Cada homem um artista de Joseph Beuys

tradução e introdução de Júlio do Carmo Gomes

uma edição 7nós, 206 pág’s, € 14

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