“O meu nome é Louise Josephine Bourgeois. Nasci em Paris a 24 de Dezembro de 1911. Todo o meu trabalho dos últimos 50 anos, todos os meus assuntos, encontraram inspiração na minha infância.
A minha infância nunca perdeu a sua magia. Nunca perdeu o seu mistério e nunca perdeu o drama.”
Nasceu em França, mas em 1938 depois de se casar com o historiador de arte Robert Goldwater mudou-se para Nova Iorque. A sua primeira exposição de pintura foi em 1948, mas a sua dedicação à arte só aconteceu depois de ter estudado geometria e matemática na Sorbonne. Encontrava naquelas disciplinas a segurança dos princípios inabaláveis e indiscutíveis, os quais constituíam para ela uma espécie de diques contra a instabilidade e vulnerabilidade da vida, do copo e das emoções.
Se os seus primeiros trabalhos são de pintura (muito influenciada pelos grupo dos Surrealistas e pelo seu convívio com Picasso) a partir de 1962 a sua carreira muda de direcção e passa a centrar-se na escultura. A sua participação na exposição “Eccentric Abstraction” comissariada por Lucy Lipard foi determinante neste recentramento da sua actividade.
Independentemente dos meios que utiliza, o seu trabalho foi o lugar continuo da convocação das diferentes camadas do corpo: a cada gesto vemo-lo surgir na sua dimensão sexual; são corpos que se mostram sempre não enquanto presenças heróicas, mas enquanto lugares vulneráveis, mortais e sensíveis. Como diz a artista: “No meu trabalho não estou particularmente consciente ou interessada com o erotismo. Ao nível consciente, estou exclusivamente concentrada na perfeição formal do meu trabalho. Permito-me seguir cegamente as imagens que se me sugerem.” (Statements, 1988)
Bourgeois assume o seu trabalho como palco de tensões inconscientes: são as imagens que lhe surgem, não são controladas, procuradas ou provocadas; tratam-se de imagens que se impõem à artista. Mas não são quaisquer imagens, são as imagens da infância, do pai, da mãe, das experiências primordiais de descoberta do mundo, do corpo e do seu sexo. São imagens-problema que no contexto do seu trabalho artístico ganham poder simbólico: “símbolos de um território privilegiado a que a maior parte das pessoas não tem acesso.” Território este a que a artista está sempre a regressar e que é constituído pela sua memória: “eu preciso das minhas memórias. São os meus documentos. Estou sempre a tomar conta delas. São a minha intimidade e tenho muitos ciúmes delas.” (“Sel-expression is sacred and Fatal”, 1992)
O corpo humano, nos trabalhos de Bourgeois, transporta sempre consigo um sentimento de temor e perda. Não há qualquer heroísmo (mesmo quando as suas obras têm escalas enormes e monumentais), mas compreensão da dimensão mortal e metafísica do corpo: “o tema do sofrimento é o assunto em que estou envolvida. Dar sentido e forma à frustração e ao sofrimento. Tem de ser dada uma forma abstracta e formal àquilo que acontece ao meu corpo. Poder-se-á dizer que o sofrimento é o resgate do formalismo.” (On Cells, 1991)
Percebe-se nas suas afirmações que o fascínio pela forma (que em termos plásticos se pode ver traduzido na exuberância das formas, cores e materiais que a artista utiliza) não significa nenhum tipo de formalismo, mas a forma é um modo de compreender o que acontece. Se o corpo é um lugar de ressonâncias e ecos, lugar da vertigem onde desagua o passado, então é necessário dotar os acontecimentos que o percorrem de uma forma: transformá-los numa palavra, numa imagem ou objecto. E note-se que a artista fala em forma abstracta e formal, ou seja, não se trata de um jogo mais ou menos harmonioso, mais ou menos cromático, com as imensas possibilidades do discurso artístico, mas do encontro entre um conceito (a tal forma abstracta que significa o esforço de compreensão) e uma forma plástica, material, visível, audível, legível. Só esta fixação formal e abstracta permite dotar a permanente experiência de perda, dor e queda, a que o corpo humano está sujeito, de sentido. Diz a artista: “No princípio o meu trabalho era sobre o medo da queda. Mais tarde transformou-se na arte de cair. Como cair sem me magoar. Mais tarde esta é a arte de aguentar.” (“Sel-expression is sacred and Fatal”, 1992) Esta ideia da suspensão, do permanente equilíbrio precário, invade todos os gestos da artista. O seu aspecto provocador fez parte de uma estratégia contra a aparente cristalização do pensamento e da arte.
A presença da infância no trabalho de Bourgeois não implica a permanente acção de olhar para trás, uma fixação doentia no passado, mas significa a recuperação da tensão que caracteriza a infância, daquele estado de permanente descoberta que resulta na experiência de continuo espanto com as coisas que existem. Para além deste estado de extrema receptibilidade e sensibilidade, importa para o trabalho da artista o facto de a infância ser o momento da formação de todas as matrizes emocionais e expressivas. Está em causa uma espécie de procura freudiana pela origem, pelas formas primordiais e fundadoras da humanidade: a recorrência de formas uterinas, casulos, falos e espaços que se parecem grutas, bem como a presença das figuras ancestrais tutelares indicam essa procura.
O retomar destes temas não faz do trabalho desta artista um lugar triste, melancólico ou depressivo. O que atravessa a sua obra é a procura do equilíbrio entre o presente e o passado, o trauma e a sua superação: enfrentar o medo e os lugares estranhos que constituem a intimidade e dotar esses encontro de uma forma partilhável e comunicável era a ambição da artista ou, como Bourgeois afirma, trata-se de “tentar controlar o caos”.
Fazer da vida a matéria do seu trabalho é o que melhor sintetiza o trabalho desta artista, mas não era a vida biológica que lhe interessava, mas a vida da intimidade, inconsciente e muitas vezes impronunciável. É como se Bourgeois tivesse estado continuamente a virar-se de dentro para fora, a transformar as entranhas em lugar de visibilidade e a dotar as suas realizações do poder mágico que só os símbolos possuem. Uma acção de transformação que transformou o corpo da artista no corpo inevitavelmente sacrificial: “a arte é o sacrifício da própria vida. O artista sacrifica a vida à arte não porque o deseje, mas porque não pode fazer nenhuma outra coisa.” (Statements, 1988)