Fotografia: substantivo feminino, do grego phôtóz ‘luz’ + gráphô ‘escrita. Processo técnico ou artístico de fixar imagens numa superfícies sensível à acção da luz; imagem ou reprodução fotográfica de alguma coisa; cópia fiel, reprodução exacta.
“Se ela [a fotografia] enriquece rapidamente o álbum do viajante e lhe devolve aos olhos a precisão que lhe faltaria à memória, se ornamenta a biblioteca do naturalista, se amplia os animais microscópicos, se reforça até com alguns ensinamentos as hipóteses da astronomia; se, enfim, é a secretária e anotadora de quem quer que na sua profissão tenha necessidade de uma absoluta exactidão material — até ai não há nada melhor. […] Mas se for autorizada a entrar pelo domínio do impalpável e do imaginário, naquilo que só vale porque o homem lhe associa a sua alma, então — ai de nós!” Baudelaire, Salão de 1859, trad. Pedro Tamen, Relógio D’Água Editores
As palavras de Baudelaire, contemporâneo dos grandes desenvolvimentos da fotografia, expressam não só uma enorme desconfiança relativamente ao entendimento da fotografia como linguagem artística, mas reconhecem na ‘imagem fotográfica’ um enorme potencial na construção de uma memória— exacta, material, intemporal – ou arquivo do mundo. Aos olhos do poeta francês a fotografia ainda designa uma ferramenta e não uma linguagem autónoma, com especificidades e qualidades “poéticas”.
O ponto de vista de Baudelaire não é de simples desprezo pela fotografia, mas protagoniza o receio da diminuição da actividade da imaginação (que ele baptizou como rainha das faculdades), isto é, que a fotografia ao parecer ser uma cópia fiel ou reprodução exacta da matéria do mundo pudesse substituir, anular ou empobrecer, o esforço criativo (artístico) em compreender o mundo, ou seja, aquilo que só depois da alma se lhe associar é possível compreender. É preciso chamar a atenção para dois aspectos profundos que este texto apresenta: primeiro, que não é uma possível que uma técnica por si só se transforme em objecto de contemplação estético e, segundo, que existe uma classe de coisas (as obras de arte) cujo valor reside não na sua capacidade representativa (uma espécie de modelos do mundo) ou no modo como ampliam o conhecimento, mas na forma como a alma lhe está associada.
O rigor e objectividade material que Baudelaire diz serem característicos da fotografia sabemos hoje serem polémicos (são amplamente conhecidos a manipulação do ponto de vista, a escolha de enquadramentos, a junção de elementos, para além das possibilidades que a fotografia digital e o ‘photoshop’ possuem) e o arquivo do mundo que a fotografia iria enriquecer está sempre em ponto de continua dissolução, desaparecimento e redefinição.
As principais alterações que a fotografia veio trazer não se localizam tanto no campo das artes (o qual tem como característica fazer da contingência uma possibilidade criativa e da transformação um impulso de desenvolvimento), nem na substituição (tão temida por Benjamin) da experiência vivida (face-a-face) por uma sua réplica, mas sim na transformação do conceito de documento, na fundação de um novo tipo de ruína (as pedras e os objectos que assinalavam modos de vida passados são substituídos por snapshots e vídeos no youtube) e, fundamentalmente, no modo como introduziram no quotidiano imagens não artísticas: “até ao último quartel do séc. XIX, as únicas imagens com que poderíamos conviver eram imagens artísticas: pinturas em igrejas, em casas aristocráticas […] Só a partir da reprodutibilidade fotográfica é que começámos a conviver com imagens não-artísticas, que passaram a ocupar a quase totalidade do quase-mundo das imagens, o que levou a que as nossas relações com as imagens só remotamente tivessem ecos artísticos.” (Delfim Sardo, “Estranhar”, in Silvae de João Queiroz, ed. Culturgest)
A “escrita pela luz” transformou-se numa linguagem comum que desfez o lugar habitual ocupado pelas representações pictóricas: o ser imagem deixou de significar uma conquista de um gesto especial que requeria aprendizagem e maestria (com consequências na formação da memória, do conhecimento e do exercício da visão) e passou a designar um acontecimento vulgar e um elemento comum na economia da vida humana. O ‘estar sempre rodeado de imagens’ implica essa ida da imagem para uma zona de quase invisibilidade: a sua omnipresença transforma o olhar em ponto de cegueira.
Se, por um lado, esta transformação despojou a imagem do seu lugar permanentemente artístico, por outro significou uma conquista essencial para certas linguagens artísticas, isto é, na passagem da fotografia de “ferramenta a paradigma” (Ricardo Nicolau, Fotografia na Arte, ed. Serralves/Público) a arte passou a poder relacionar-se mais rápida e eficazmente com certos objectos, bem como os artistas conseguiram introduzir nos seus trabalhos a temporalidade característica das sociedades pós-industriais: rápidas, fugazes, intensas, globais.
Não se pode aqui fazer um percurso através dos artistas que utilizam a fotografia como ferramenta e como linguagem. Gerhard Richter com as susas foto-pinturas é uma referência fundamental: pintar procurando alcançar a nitidez e referencialidade material que as fotografias comportam, apagando todos os vestígios do gesto criador ou da intensidade artística. Podiam acrescentar-se muitos outros nomes de artistas que se apropriaram da fotografia ou como metodologia de trabalho e registo ou como linguagem dominante. Utilizam indistintamente fotografia, desenho, pintura, escultura, filme: tudo lhes serve desde que consigam ai encontrar um meio de trabalho que seja adequado, ajustado, preciso. Ou seja, na contemporaneidade a fotografia deixou de designar uma classe de objectos conseguidos através da manipulação de uma técnica ou ferramenta, para significar um alargamento das possibilidades das linguagens artísticas, aumento do poder fazer/dizer/expressar artístico.
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Gostei!!
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