Friday, May 20, 2011

Ver com os dedos, perceber com o corpo - Sobre João Queiroz


Falar do trabalho de João Queiroz é invocar todas as questões – profundas e intensas — que a história da pintura comporta. O problema adensa-se porque esse trabalho não remete exclusivamente para o universo das artes visuais e das questões da representação e da formação de imagens do mundo. As pinturas de Queiroz mostram-se enquanto espaços de revelação dos processos humanos da produção de sentido.

Falar em sentido é aqui falar em reconhecimento, o que em termos das artes visuais significa, originariamente, saber ver, compreendendo, as imagens com que se é confrontado. Deste face a face nasce um espaço preenchido pelo esforço da inteligência em dar nome àquilo que o corpo vê. Neste contexto (e as pinturas de Queiroz são um caso exemplar desta situação) as gramáticas do ver, pensar e imaginar fundem-se, impossibilitando uma demarcação do território ocupado por cada uma daquelas actividades. É neste sentido que Queiroz afirma em entrevista a Bruno Marchand publicada no catálogo da exposição: “Estas obras não são relatórios paisagísticos, não são topografias! O que me interessa é esse relação corporal que nós temos com a presença de outra coisa -- a paisagem -- e a forma como essa relação se pode desenvolver, aprofundar e transformar”.

A afirmação do pintor mostra não só que os objectos visíveis nas suas pinturas são formados pelo olhar, como valida a percepção de que aquelas paisagens (tema que a partir de certa altura domina a produção de Queiroz) não surgem de uma presença na paisagem mas são construções conceptuais, físicas e pictóricas. Não são topografias, nem registos, portanto não possuem qualquer validade para o grande arquivo do mundo, porque os lugares (e a pintura não é apenas um espaço de acontecimentos “representáveis”) remetem para um universo de relações em que um “um” se confronta com um “outro”: o olhar percorre a linha do horizonte pintado e experimenta uma certa desmedida ao presenciar algo que excede todos os poderes da sua inteligência e imaginação; nesse momento dá-se conta que existe algo que o transcende.

É este o contexto que permite a Queiroz afirmar: “Nós vemos com o corpo todo, e não apenas com os olhos. Os olhos são o instrumento privilegiado da visão, mas a visão é mais abrangente do que isso”. Esta expansão do campo da visão reflecte-se na gestualidade que se percebe nas suas pinturas: a cada pincelada, sente-se o modo como o pintor procura uma visualidade táctil, como se tivesse deslocado para a ponta dos dedos o seu centro perceptivo. Mas os seus dedos são também o centro do corpo: através deles, explode a maneira como o corpo se movimenta, mostra afastamentos, aproximações, hesitações, e todo o conjunto de forças que preside ao fazer da pintura. Neste sentido, o lugar da visão são os dedos e o da inteligência o corpo.

Esta apresentação sumária das “paisagens” de Queiroz mostra que, rigorosamente e como o título da exposição alerta, não se trata exactamente de paisagens. São Silvae, designação latina que condensa os sentidos de floresta, arvoredo, vegetação, plantas, materiais de construção, matéria, floresta de traços, esboço ou esquisso. A etimologia deste termo revela-se como uma descrição precisa do resultado da prática de Queiroz. Uma prática, porque procede não só de uma ginástica visual, e uma intensa disciplina da atenção, que se transforma em acção exercida no espaço de encontro com a matéria da pintura.

Uma exposição notável, que permite não só estabelecer a qualidade, força, coerência e enorme valor da pintura de João Queiroz, mas também posicionar a pintura como um campo exemplarmente fértil no conjunto das linguagens artísticas actuais.

No comments: