“A coisa do seu trabalho… é que é simples, não existe técnica, nem jeito, não existe investimento de esforço ou trabalho, não tem escola ou diploma. Podemos imaginar-nos a fazer o mesmo.” (p. 31)
É desta forma que Richard Prince descreve o trabalho do seu ‘colega’ Miroslav Tichy. Uma descrição que mesmo não sendo materialmente fiel, é precisa no modo como aponta para a simplicidade e naturalidade em que se inscreve cada uma das imagens do arquivo Tichy.
A princípio não se percebe o tempo destes trabalhos: vêm de longe, de um tempo ao qual já não pertencemos e no qual já não conseguimos permanecer. É um tempo lento, a preto e branco, cheio de grão, analógico, o qual cria uma distância em que as coisas surgem inscritas numa zona de indistinção entre o visível e o invisível, o poder ser reconhecidas e a figura abstracta, entre a solidez de todas as formas materiais e a fluidez dos corpos fantasmáticos e imateriais. Sobretudo, são imagens que já não comunicam qualquer objecto ou conteúdo, não apontam para qualquer referente, mas dão-se a elas mesmas.
As impressões imperfeitas, com grão, os enquadramentos muitas vezes incorrectos, atribuem a estas fotografias uma densidade muitas vezes impenetrável: os acontecimentos visuais e sentimentais que promovem não são imediatos e a leitura é difícil. Olha-se para elas e imediatamente nasce um sentimento de inactualidade e de não pertença à velocidade contemporânea da transmissão de imagens.
Miroslav Tichy nasceu na Checoslováquia em 1926 e estudou pintura na Escola de Belas Artes e até aos anos 40 pintava figuras abstractas e paisagens. Nos anos 60 abandona a pintura e começa a praticar a fotografia de modo auto-didacta, com uma câmara de cartão que ele próprio fabricou. Um gesto que revela um duplo significado: por um lado mostra uma opção estética, por outro significa uma posição política contra o programa cultural comunista vigente no seu pais. O abandono da pintura significa abandonar as imagens, os valores e os virtuosismos (e a linguagem) celebrados pela artes instituídas e pela elite artística dominante. Sublinhe-se: no seu percurso a fotografia surge primeiro não como arte (era a arte que Tichy queria negar), mas como técnica, interessa-lhe a simplicidade, a rapidez e o modo como as fotografias rápidas (snapshots) são formas eficazes de anotar e acompanhar o olhar. Foi assim que deu início à construção do seu espólio o qual tem hoje mais de 6000 imagens.
Há muitas formas de ‘entrar’ no trabalho de Tichy: são muitas portas que possibilitam o início de percursos e experiências de sentido. Uma delas é ver que às mãos de Tichy a câmara transforma-se em gesto ocasional e sistemático: tirar fotografias diariamente insere-se não numa lógica de arquivo ou de documentação, mas numa lógica deambulatória e ocasional. A fotografia torna-se numa forma de vida: é a fotografar que Tichy se relaciona com os outros, com a cidade, os objectos e consigo próprio. O “artista com a má câmara”, como lhe chama Carolyn Christov-Bakargiev, encontrou na fotografia a forma para a sua visão, pensamento e imaginação. Diz Tichy: “no princípio gastava três rolos por dia — ou seja, três vezes trinta e seis disparos. Não foi uma coisa predeterminada, mas correspondia ao tempo que o dia demorava a passar, à rotação da Terra…” (p.23)
A tal lógica deambulatória transforma as suas fotografias (que neste livro são reproduzidas em escala real) em anotações ópticas de um flanêur, passeante ou caminhante. A câmara é o bloco onde são anotados os detalhes que prendem a atenção: os pequenos pormenores da cidade, dos corpos e dos objectos que constituem a trama da vida urbana. Os seus temas são exclusivamente Kyjov (a sua terra natal para a qual voltou e da qual nunca mais saiu) e os seus habitantes, mas em vez de se concentrar nos monumentos, nos edifícios históricos, nos marcos da paisagem, etc., o seu olhar era desviado para o comum e insignificante. Nas suas imagens o banal transforma-se em magia, os objectos deixam de ser simples fragmentos do mundo para e surgem como algo grandioso e extraordinário: quase aparições.
Interessam-lhe os aspectos quase invisíveis e este ‘tema’ ou, se se preferir, esta direcção do olhar, significa a negação da visualidade vigente e dos ‘clichês’ culturais: não se encontram monumentos ou lugares históricos, nem sequer as imagens reconhecíveis pela comunidade a que Tichy pertencia. Assim, a fotografia foi o meio disponível para se situar naquele sítio que sentia ser seu, a forma de encontrar um lugar na paisagem à qual aparentemente não pertencia. Fotografava como forma de construir uma cidade para habitar: Tichy só podia viver na sua terra renunciando a ela e a fotografia foi a forma de renúncia que lhe permitiu lá permanecer e, assim, o seu mundo é feito de imagens.
A inactualidade das suas fotografias está não só na recusa do espírito reinante, mas também no modo como as figuras (sempre as mulheres que a câmara deseja e procura) surgem quase epifanicamente. São rostos e corpos desfocados que perdem a sua qualidade individual e a sua identidade e transformam-se numa espécie de fantasmagorias. São mais sugestões de figuras que formas reconhecíveis e identificáveis. Como diz Carolyn Christov-Bakargiev, é sempre a sugestão da “oposição entre o valor da singularidade e o da identidade […]. As suas imagens não comunicam nada, mas estão suspensas num estado de potência, fantasmas da fotografia, sempre à beira de nos dizer alguma coisa.” (p.24)
Os Gregos Antigos (nomeadamente Platão) não tinham nome para o poder humano de formar um certo tipo de imagens a que na modernidade se deu o nome de imaginação; assim, chamavam phantasia à faculdade humana de criar imagens que não tinham correspondentes exactos no mundo, a essas imagens chamavam phantasmas. Se se olhar para o trabalho de Tichy como lugares da aparição (e de criação) de fantasmas, percebe-se o modo como com ele se constrói um mundo: simultaneamente, recusa o mundo das imagens vigentes e cria uma realidade na qual se pode situar e a qual pode habitar.
Descobre-se, então, estar em causa não só a construção de uma estética e uma poética do fragmento (as mulheres e a cidade nunca surgem inteiramente: só parcialmente são entregues ao papel da fotografia), mas igualmente uma posição intensa sobre a relação complexa e equivoca entre a realidade e a percepção. Tichy torna real o dictum filosófico de que o homem pode escolher o ponto a partir do qual observa o mundo (como quem escolhe um miradouro para observar a cidade) e que essa escolha determina o que se vê, por isso é que o mundo feliz é diferente do mundo infeliz (Wittgenstein) e que não há factos mas só interpretações (Nietzsche). Com Tichy a imagem fotográfica deixa de ser motivo de infelicidade e desespero por não produzir senão imagens (uma arte dos mortos, nostálgica e a apontar para o que já foi), para significar a forma real da visão e da relação com as coisas do mundo.
O livro da Steidl é uma preciosidade não só porque recolhe um conjunto significativo de imagens deste autor, mas também por reunir um conjunto de textos que são um bom acesso às energias e tensões que atravessam este universo criativo.
Miroslav Tichy
Com textos de Brian Wallis, Roman Buxbaum, Carolyn Christov-Bakargiev e Richard Prince
Editado pela Steidl Publishers
328 páginas, 58€
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