Thomas Struth (n. Geldern, Alemanha, 1954) é um dos fotógrafos vivos mais importantes. O seu trabalho é muito rigoroso e analítico, não cedendo a impulsos de inspiração ou à pressão do momento. Interessa-lhe usar a fotografia para construir um mosaico do mundo onde vive, por isso surgem na sua obra tantos temas diferentes: arquitectura, natureza, tecnologia, retratos de famílias ou imagens de visitantes de museu.
A fotografia foi um acidente na sua vida. Era estudante de pintura e em 1974 frequentava as aulas do importante pintor Gerhard Richter na Academia de Arte de Düsseldorf. E foi por pressão do seu professor que em 1976 se juntou à primeira turma do histórico casal Bernd e Hilla Becher e foi com eles que descobriu as suas referencias e com quem aprendeu a fotografia que ainda hoje pratica.
Em conjunto com Andreas Gursky, Axel Hütte, Candida Höffer e Thomas Ruff (todos ex-alunos do casal Becher) faz parte da chamada Escola de Düsseldorf que, de acordo com a história canónica da fotografia, se caracteriza pela objectividade das imagens que produz. Esta Nova Objectividade Alemã, nome pelo qual são tratados, caracteriza-se, genericamente, por uma abordagem documental à fotografia que procurava, através das possibilidades disponibilizadas pelos meios mecânicos da máquina fotográfica, representar o mundo de um modo claro e objectivo, em detrimento de interpretações, gostos ou sentimentos artísticos.
É nesta tradição iniciada nos anos de 1920 por Karl Blossfeld, Albert Renger-Patzsch e August Sander, que se deve contextualizar o modo como Struth entende a sua obra. A qual já não pretende documentar ou registar objectivamente o mundo, mas faz uso dos pressupostos técnicos, conceptuais e analíticos da herança em que foi formado.
A exposição antológica, comissariada por James Lingwood e agora apresentada no Museu de Serralves, é a maior exposição de sempre do artista e reúne trabalhos entre 1978 e 2010. Um conjunto impressionante de trabalhos entre os quais surgem relações onde a cronologia é o menos importante e sobressai um modo comum e próprio de olhar e de descrever visualmente o mundo. No dia da inauguração falou com o Ípsilon sobre esta sua exposição, a sua descoberta da fotografia e os assuntos da sua obra.
Como é que surgiu a vontade de fazer uma exposição retrospectiva?
Em 2002 fiz uma exposição num museu em Dallas e o Armin Zweite, na altura ainda director do K21 em Dusseldorf, achou que fazia sentido fazer uma grande exposição minha na cidade onde estudei e onde trabalho e vivo. Não quis fazer a exposição imediatamente e achamos melhor esperar algum tempo. Continuámos a falar e em 2007 começamos a trabalhar.
E qual é o sentimento em ver reunidos tantos trabalhos?
É maravilhoso. Quando se faz uma grande retrospectiva surgem sentimentos e pensamento muito diferentes e contraditórios, mas no essencial vê-los juntos permite ver a maneira como, por exemplo, os trabalhos antigos ainda fazem sentido no presente. Por exemplo quando olho para aquelas fotografias de 1978 de NY não penso que aquilo é o meu trabalho antigo, mas relaciono-me com uma certa ideia de prática pictórica que ainda penso ser válida no nossos dias. Não olho para esses trabalhos como quem olhar para uma relíquia de 1920 ou 1930.
Os trabalhos transformam-se quando são postos ao lado uns dos outros?
Claramante. Eu nunca vejo os meus trabalhos antigos com tanta atenção e em tanta quantidade como é possível nesta exposição integrando-os numa nova narrativa. Por exemplo, quando se entra nesta exposição vê-se um pormenor de um reactor de fusão e quando se olha para a esquerda vêem-se duas ou três pequenas imagens a preto de branco de Nova Iorque. E nota-se uma estranha semelhança entre a arquitectura da cidade e a arquitectura de um aparelho científico. E ao fundo surge uma grande imagem de Times Square. E estas relações que eu reinvento permitem uma redescoberta dos trabalhos.
Consegue-se reconhecer uma grande variedade de temas no seu trabalho. Tem séries sobre florestas, cidades, retratos de famílias, vistas de cidades, tecnologia. Consegue identificar quais são as linhas de força do seu trabalho e quais são os elementos comuns que unem toda esta diversidade?
São diferentes capítulos daquilo que acontece e daquilo com que qualquer pessoa na sua existência tem de lidar. Estou sempre a pensar nos aspectos mais gerais da existência.
Num texto do catálogo Armin Zweite diz que o seu trabalho “clarifica a complexidade do mundo”. É a isto que se está a referir?
O ponto de partida da minha prática não é esse. Isso é muito metafísico. Eu não começo a trabalhar com ambições desse tipo. Mas essa clarificação acontece através da acumulação da observação que levo a cabo com o meu trabalho e das conversas que tenho com as pessoas ou através de ser uma testemunha do meu tempo. Existe sempre o desejo de definir o meu ponto de vista e o modo como me relaciono com o mundo e com aquilo que acontece.
E a fotografia é o melhor meio para esta descrição?
Para mim é. Sempre olhei muito para fotografias. Não sabia nada da história da fotografia, só muito tardiamente, quando fui aluno do Bernd Becher, é que conheci os trabalhos de August Saner, Walker Evans ou Atget. Mesmo quando estudava pintura, a fotografia fascinava-me. E levava elementos de composição das fotografias que via nos jornais e nas revistas para os meus desenhos e pinturas. Quando olhava para as fotografias estava a ver pintura e estava num constante interpretação pictórica da realidade.
Mas o que é o levou para a fotografia?
Olhando retrospectivamente, e esta é uma descoberta recente, consigo perceber que o meu interesse pela fotografia nasceu através dos álbuns de fotografias dos meus pais: aí descobri a juventude dos meus pais, dos meus avós, conheci os meus irmãos bebés e descobri-me enquanto recém-nascido e tudo isso foi uma experiência muito fascinante. E fiquei particularmente intrigado por um álbum do meu pai (que nasceu em 1919) quando ele tinha 18/19 anos e estava no exército nazi. E há fotografias dele em França, com uma arma na mão, no meio do campo a descansar das grandes marchas. E há um retrato que ele tirou num estúdio de fotografias em que ele está muito belo e tranquilo. E estas imagens fascinaram-me porque me davam informações muito contraditórias da vida daqueles tempos terríveis de sofrimento. Talvez se fossem outras pessoas eu não ficasse tão fascinado, mas o facto de serem pessoas da minha família obrigou-me a estabelecer uma relação fortíssima com estas fotografias. Esta foi a minha experiência iniciática: descobri o quão forte a nossa relação com a fotografia pode ser.
Mas quando é que descobriu que não era pintor, mas sim um fotografo? Quando é que decidiu deixar de ser aluno do Gerhard Richter e ir para a turma do Bernd Becher?
Quando tinha 22 anos e estudava com o Richter fotografava cada vez mais. E quis fazer um conjunto de fotografias de ruas, vazias, com perspectiva central. Não conhecia ainda ningu
ém da fotografia, foi uma coisa que surgiu espontaneamente: eu andava a pintar arquitectura com os dedos e quis ir fotografar pessoas na arquitectura. Depois descobri que não precisava de ter as pessoas na imagem, porque o humano está sempre presente na arquitectura: são pessoas que constroem a arquitectura deixando as suas marcas nos edifícios e por isso decidi fotografar Dusseldor vazia. Passados uns meses fiz uma exposição com estes trabalhos na academia de arte de Düsseldorf e o Richter mandou-me para a aula do Becher. E perguntei-lhe: mas de quem é que está a falar? E ele insistiu que eu desistisse da pintura e fosse para o departamento de fotografia.
É interessante notar que o sendo fotografo o seu professor de pintura seja um pintor que nomeia uma parte importante do seu trabalho como foto-pintura.
O mais interessante na minha relação com o Richter foi quando fui assistente dele e fiquei muito impressionado pelo profissionalismo e rigor do trabalho artístico. Não havia sentimentalismo artístico, mas uma prática muito conceptual e planeada. E ele tinha sempre fotografias há volta. Lembro-me de ver no estúdio imensas imagens que estão hoje fazem parte do seu Atlas. Um processo muito analítica e conceptual em que me reconheci.
Mas o que é encontra na fotografia que não viu na pintura?
Com qualquer obra de arte, peça de música ou de literatura, questionamo-nos sobre a sua validade não para quem as faz, mas para muita gente. E na minha prática artística perguntava-me sobre quais os elementos que precisava para fazer alguma coisa que tivesse valor e fosse interessante para mais pessoas para além de mim próprio. Porque se o meu trabalho só fosse interessante para mim, ele não teria qualquer valor, não podia ser bom. A pergunta a ser feita é sobre como é que se representa uma narrativa particular como um exemplo, com o estatuto de exemplar.
Isso parece afastar da sua prática a ideia, muito veiculada a propósito da sua geração de artistas-fotografos, de uma fotografia objectiva. E numa entrevista disse “não é possível tirar fotografias objectivamente e qualquer aproximação é inatamente sujectiva e, portanto, política.”
Eu disse isso como provocação, porque me aborrece muito a discussão entre subjetividade e objectividade na prática da fotografia alemã. Claro que tudo é subjectivo: é a natureza humana, tudo está exposto a interpretação. E esta é a condição da visão e por isso toda aquela discussão é uma treta maçadora. Claro que existem imagens como as das câmaras de segurança a quais permitem detectar acontecimentos materiais objectivos, mas este assunto não me interessa nada.
E porquê a questão política?
O que quer que façamos assumimos um ponto de vista e as nossas práticas são declarações sobre o que sabemos e podemos fazer. Ao que se junta o facto de vivermos com amigos, numa cidade, num pais e agimos como cidadãos, até os monges vivem em comunidade. E todos os nossos gestos têm consequências políticas. É uma afirmação muito genérica, mas certeira. Por exemplo se se comparar o meu trabalho com os meus colegas como o Gurski, Ruff ou a Höffer, vê-se que temos olhares muito diferentes e procuramos coisas distintas e o simples facto de se se enviar cinco fotógrafos para fotografar uma mesma coisa todos eles voltarão com imagens diferentes: e isto é um facto político.
Se o seu trabalho não é uma tentativa de retratar o mundo objectivamente, se não é sobre as cidades ou a arquitectura, se não é sobre o tempo, podemos dizer tratar-se de imagens reflexivas?
É isso mesmo.
E decidiu fotografar as cidades quase sempre sem pessoas para evidenciar não estar em causa as coisas materiais ou factuais dos lugares que fotografa?
Nesses trabalhos eu estava interessado nas atmosferas desses sítios diferentes. O ponto de partida foi mais técnico: as exposições prolongadas não deixavam ter pessoas a andar de um lado para o outro. mas depois também porque descobri que os edifícios por si só têm características humanas: foram construídos por pessoa, que têm opiniões, um ponto de vista, que tomam decisões. E expressam-se através da arquitectura a qual evoca todos esses níveis de informação.
E porque o título Lugares Inconscientes que muitas dessas fotografias têm?
Foi uma decisão posterior. Fiz uma exposição em Bergen com essas imagens e precisava de um título que mostrasse os meus interesses e não a descrição das imagens do tipo: cenas de rua. O meu interesse era muito mais genérico e era sobre o modo como a arquitectura é uma espécie de pele das pessoas. Lutei durante muito tempo para encontrar o título certo. E aconteceu o mesmo com a série de fotografia de florestas a que chamei Novas Imagens do Paraíso. Aqui queria mostrar que não estou interessado em botânica, mas nas diferenças formais e orgânicas entre as plantas.
Na sua série dos museus a pintura regressa ao seu trabalho.
Sim, é uma coisa inconsciente. Usei a pintura por causa da sua carga histórica e para criar uma tensão entre o tempo histórico daquelas pinturas e o presente da fotografia. São trabalhos que constituem uma espécie de túnel temporal que me permite explorar as diferentes reacções que as grandes obras primas da arte provocam: por exemplo, muitas pessoas não sabem como se aproximar de uma obra de arte.
Os seus últimos trabalhos parecem muito abstractos, não se consegue reconhecer um objecto ou uma paisagem e parecem próximos do carácter pictórico da pintura.
A minha imagem favorita é aquela dos cabos em que não sabe para onde se está a olhar. Procurei dar um efeito físico a essa imagem e não só uma coisa cerebral. E é verdade que chego a estes trabalhos da tecnologia depois de ter trabalhado com as florestas e as suas construções visuais muito complicadas. E isso afecta as qualidades visuais.
O que é que lhe interessava na cara das pessoas na série Audiências?
Eu queria ser a obra de arte que devolve o olhar aos espectadores. E estava interessado em representar uma painel das diferentes reacções psicológicas de quando se vê arte: é cansativo, pode ser confuso, etc., mostrando que nem sempre se sabe o que fazer com as obras de arte, não se sabe o que significam ou o que dizem.
Uma última pergunta. Diz-se que existe uma competição entre os antigos alunos dos Becher e sobretudo entre si e o Gurski.
É verdade. É uma competição baseada em diferentes visões do mundo em que tentamos perceber quais são os trabalhos com mais força. Não é uma competição declarada, mas ela existe.
Mas trabalham no mesmo lugar, usam o mesmo laboratório e têm o mesmo moldureiro.
É verdade, mas não discutimos os trabalhos, nem andamos a ver o que cada um anda a fazer.
Qual é o seu fascínio com a tecnologia?
Fascina-me a capacidade que a tecnologia tem de moldar o mundo. E estes trabalho são expressões da confusão e complexidade do mundo em que estamos a viver.
www.serralves.pt
http://www.youtube.com/watch?v=9tiEbEiwhp4
http://www.youtube.com/watch?v=btPJtX3_ZIg
Entrevista publicada no suplemento Ípsilon do jornal Público
No comments:
Post a Comment