José Luis Neto, Caderno de Imagens, col. Ymago, ed. KKYM, 2012
REALISMO E VISIBILIDADE*
Esta é uma edição singular. Não só porque a
sua arquitectura é pouco comum — composta por fragmentos de textos justapostos
às reproduções das imagens —, como ao habitual estatuto e pompa das habituais
edições dos livros de fotografia, prefere os agrafes, uma capa em papel pardo,
uma impressão excelente num papel convencional. O resultado é um “caderno de
imagens” que não só reproduz um conjunto de trabalhos de José Luis Neto (n.
Satão, 1966), como a sucessão de fragmentos de textos de autores como Deleuze,
Blanchot, Proust, entre outros, estabelece uma posição acerca da fotografia, da
sua relação com o mundo, com os seus objectos e a sua actividade. As imagens de
José Luis Neto (JLN) dão origem a um conjunto de fragmentos que invocam
questões sobre o dispositivo, a percepção, a tensão figuração/abstracção
existente nas imagens.
A pertinência desta edição é incontornável,
porque traz para o centro do debate sobre a imagem, as suas teorias e políticas
o corpo de trabalho de um artista. O qual tem a característica de ser singular não
só no modo como se constrói e vai desenhando um programa artístico, mas
constitui uma firme posição no contexto da fotografia contemporânea. Desde o
seu início que JLN se dedica a fotografar folhas brancas, a fazer imagens de
fotografias antigas, de negativos, a manipular os mecanismos (motores e
películas) e a fazer uma espécie de meta-fotografia. Não porque o seu trabalho
fique além da fotografia, mas porque recusa as suas convenções e protocolos
mais correntes e, sobretudo, porque se afasta e perturba a relação essencial da
fotografia com um objecto. Ou seja, aqui a fotografia é o seu próprio objecto:
trata-se de uma espécie de gesto reflexivo ou, se se preferir, de uma tentativa
de auto-consciência.
Um virar-se da fotografia sobre si própria que
tem como consequência mais imediata fazer da maioria da obra de JLN — e as
séries reproduzidas neste “caderno” são disso um bom exemplo — uma investigação
acerca das condições de possibilidade da fotografia. A este propósito os
“curadores” do livro (João Francisco Figueira e Vítor Silva: são os responsáveis
pela escolha dos fragmentos dos textos que acompanham e dialogam com as
imagens) citam um passo notável do “Thomas l’obscur” de Blanchot: “O seu olho,
inútil para ver, ganhava proporções extraordinárias, desenvolvendo-se de uma
maneira desmesurada e, estendendo-se sobre o horizonte, deixava a noite
penetrar no seu centro para criar uma íris. Através deste vazio, era então o
olhar e o objecto do olhar que se misturavam. Não apenas este olho, que nada
via, aprendia a causa da sua visão. Ele via como um objecto, o que fazia com
que nada visse. Nele entrava o seu próprio olhar, sob a forma der uma imagem,
no momento trágico em que este olhar era considerado como a morte de toda a
imagem.”
Ver através de um vazio, aprender a causa da
visão, entrar no próprio olhar surgem como acções sinónimas, mas este vazio não
é um vazio total que tudo absorve e transforma em nada, mas este vazio é o
vazio referencial, ou seja, para este movimento do olhar as distinções
dentro/fora, interior/exterior cessam e em seu lugar surge o olho simultaneamente
como sujeito e objecto, imagem e dispositivo. Por isso, a este vazio não
corresponde a inexistência de objecto perceptivo, mas uma suspensão da relação
linear com o exterior como se o olho (que aqui serve como metáfora da fotografia)
visse aliviada a exigência de realismo e fosse destituída a ambição de
reprodução do real: “Em arte, e tanto em pintura como em música, não se trata
de reproduzir ou de inventar formas, mas de captar forças. É exactamente por
isto que nenhuma arte é figurativa. A célebre fórmula de Klee ‘não restituir o
visível, mas tornar visível’, não significa senão isto mesmo.”
Esta citação de Deleuze (Francis Bacon. A
lógica da sensação) sublinha a obra de arte como uma força que não representa,
nem substitui (ou seja, não é uma força de representação), mas que é uma
instância de aparição: uma força que cria a visibilidade, ou seja, a
visibilidade proporcionada pela obra de arte não reenvia para outro tempo,
outros objectos, outras paisagens. A obra de arte não é um meio através do qual
se vê, como uma janela com um vidro bem polido e transparente, mas é a própria
visão.
Este mini-itinerário conceptual e estético
pelo “caderno” de JLN não é cego às imagens produzidas pelo artista, mas
apresenta o carácter mais essencial e determinante do seu trabalho. O qual é
claro na recusa da figuração, não como opção, mas porque para JLN nenhuma arte
é figurativa: em muitos momentos as suas imagens parecem pinturas
impressionistas em que o branco é um elemento central e estruturante, ponto
central a partir do qual as manchas — que são as figuras e objectos dos seu
trabalho — se expandem e conquistam o espaço. E esta aparente abstracção não
constitui um desvio da fotografia da sua natureza, do seu objecto, da sua
ambição: porque “ verdadeiro realismo
significa: não representar objectos mas sim criá-los. Reproduzindo-os, apenas
os sublinhamos esteticamente e preenchemos um mundo incompleto com
interpretações e ficções.” (Carl Einstein, George Braque).
Este é o contexto que este “caderno” cria para
se poder ver/perceber/entender as duas séries de JLN: “High Speed Press Plate”
(2006) e “July 1984” (2012). As séries não se prolongam, mas contaminam-se
pelos problemas colocados e pela estrutura interna que constroem. Se na série mais
antiga há uma total ausência de formas, é o reino de manchas informes que dão
origem a paisagens mentais e profundas, na série mais recente surgem pessoas,
interiores de casas, situações concretas do quotidiano. Mas esta aparição não
significa assumir como tema das imagens esses objectos e o seu registo ou
arquivo, mas mostrá-los em situações de dissolução, corrupção e desvanecimento,
em momentos entre a visibilidade e a invisibilidade, a luz e a obscuridade.
Uma edição importante não só porque disponibiliza
trabalhos de um autor importante da fotografia portuguesa contemporânea (desde
2005 não era dedicada nenhuma edição a JLN), mas também porque coloca o seu
trabalho no centro do importante debate em curso e o assume como uma posição e
contributo pertinentes.
José Luis Neto. Caderno de imagens
Um edição com curadoria de João Francisco
Figueira e Vítor Silva
Col. Imago
Edição da KKYM
*este texto foi orginalmente publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público
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Sunday, August 26, 2012
Realismo e Visibilidade
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