Para que não restem dúvidas Hélio Oiticica é
um herói. E isto não significa dizer só que se trata de um artista cuja
obra foi capaz de inspirar toda uma tradição artística, mas igualmente dizer que é uma obra que revolucionou a visão sobre a função do artista e o papel das obras de arte no
contexto da tradição ocidental das belas-artes. À visão e gosto canónicos da
história da arte, Oiticica preferiu a favela, o ambiente tropical do Brasil, os
gestos espontâneos de quem dorme ao relento, preferiu o samba, a voz de Caetano
e a poesia sul americana, preferiu voltar à Amazónia não para descobrir o
folclore ou o típico-Brasil-para-turista-ver, mas, como lhe chamou, para
regressar à “Tropicália” a qual é um mapa da sua mente, da sua imaginação, da
sua sensibilidade. Mapa de Oiticica que, como os seus “Parangolés”, passou a
ser de todos e andou de corpo em corpo, vestido por cantores, poetas, outros
artistas e muitos outros e em sítios tão diferentes como dentro do museu, no
morro da Mangueira no Rio de Janeiro, em Londres ou em Nova Iorque. E esta é a
sua revolução, feita não para fundar uma nova política, nova estética ou moral,
mas movido pelo amor à arte e, sobretudo, pelo seu amor ao mundo ao qual não
conseguia chegar de melhor forma do que através do esforço criativo.
No seu diário, que o artista manteve activo
durante grande parte da a sua vida como registo dos pensamentos “que me afligem
noite e dia, mais ou menos imediatos e gerais” (22 de fevereiro, 1961),
Oiticica escreveu: “Não há maneira mais segura de afastar do mundo nem modo
mais seguro de enlaçá-lo do que a arte” (2 de Dezembro de 1960). Esta citação
de uma das “Máximas e Reflexões” do poeta alemão Goethe pode ser considerada
como o bom mote do trabalho do artista brasileiro: a sua obra constitui esse
movimento continuo de avanços e recuos relativamente ao mundo e um esforço de o
compreender integrando-o na arte. Um amor pelo mundo, pela arte e pelo Brasil
que atravessa toda a obra. E é este amor que cada obra de Oiticica mostra e que
a exposição “Hélio Oitica. Museu é o mundo” revela de uma forma surpreendente.
A exposição no Museu Berardo em Lisboa, e que iniciou o seu percurso em São Paulo em 2010, é “a maior
retrospectiva de sempre” de um dos nomes maiores da arte brasileira dizem os
curadores da exposição César Oiticia Filho, responsável pelo projecto Hélio
Oiticica no Brasil, e Fernando Cocchiarale. Não se trata de uma visão
cronológica ou histórica, mas da apresentação dos
principais problemas artísticos, poéticos e políticos que ocuparam o artista
durante toda a sua vida. E apresentar as obras de Oiticica não é só fazer uma
exposição, mas concretizar uma experiência exigente, repleta de elementos,
detalhes e muitas configurações.
Uma obra que não é só para ver, mas para penetrar,
entrar lá dentro e obedecer a um enorme conjunto de diferentes requisitos.
Trata-se de um ver exigente e, por isso, esta exposição exige que se ande
descalço, se molhem os pés, sujem os sapatos na areia e na gravilha, que se
conviva com o cheiro da matéria orgânica, das folhas de canábis, se ouçam as
araras tropicais, se atravessem labirintos e se leia deitado num ninho
de palha, que se entre em labirintos e em espaços exíguos, se vistam os
“Parangolés” e se dance nas plataformas dos “Penetráveis” e que o corpo,
enquanto lugar onde se reúnem todos os mecanismos humanos da percepção, seja o
único guia nesta floresta intensa e tropical de cores, formas e matérias.
Há quem, seguindo as intuições de Oiticica,
chame à experiência das suas obras “Delirio ambulatório” para designar a sua
estratégia estética em que a participação é a palavra chave. Palavra esta que
em primeiro lugar apresenta o modo como o artista trouxe para o museu e para o
contexto das artes a experiência quotidiana da favela e, depois, o modo como o
seu trabalho só se descobre usando o corpo, mas também como “é o próprio corpo que, ao
fazer-se obra de arte, se descobre a si próprio”, como dizem os curadores da
exposição. Os seus “Penetráveis” e “Parangolés” não designam obras a ser
contempladas, admiradas ou analisadas, mas expressam a ambição de fazer com que
a arte seja um espaço cósmico, aberto, penetrante. Espaços, como dizem os
curadores, “onde o indivíduo cria as suas próprias sensações sem
condicionamentos históricos ou visuais, ou seja, que encontre dentro de si
mesmo a chave para um ‘Exercício Exoperimental de Liberdade’ como propunha
Mário Pedrosa.” Este continuo exercício fez parte da sua oposição à arte e
sociedade burguesas: “uma oposição anarco-romântica na tradição libertina,
voltadas para a revolução comportamental individual” afirmam os curadores.
A oposição a esse ideia de burguesia foi
feita, sobretudo, através de dois meios. Por um lado, através da negação da
obra de arte como objecto de luxo e, por outro, através da entrada no mundo
mais marginal da favela. Gostos estes que acabam por contaminar todo o seu
processo de criação: com Oiticica o construtivismo, “torna-se análogo à
arquitectura popular das favelas” concluem Oiticica Filho e Cocchiarale. Uma
valorização do popular em detrimento do erudito que não significa uma relação
ilustrativa ou narrativa com a cultura brasileira, mas uma apropriação formal e
uma valorização do pensamento, métodos e materiais das construções populares. E
este é o sentido mais forte e originário dos seus “Penetráveis” e “Parangolés”.
Formalmente, esta espécie de categorias significam a primeira uma estrutura
arquitectónica, muito inspirada na arquitectura popular e espontânea das
favelas do Rio de Janeiro, onde se experimentam cores, formas, espacialidades,
poemas, a segunda uma espécie de pano muito colorido que ao ser vestido e
utilizado livremente pelo corpo numa dança ou em movimentos avulsos cria e
sugere formas a lembrar não só os elementos da pintura construtivista e
neo-concreta brasileira (movimento artístico de que Oiticica fez parte), mas o
modo como os populares cariocas usam certas roupas e máscaras.
Estas designações fazem parte do esforço feito
pelo artista em encontrar (melhor seria dizer: fundar) novos vocabulários que
permitissem designar, expressar e descrever a ambição da sua obra . Não se
tratam bem de conceitos, porque para o artista “chega de intelecto. Só obstrui
a pura expressão cósmica. Cria leis e preconceitos. Dificulta o sentido do
sublime”, mas são expressões muito comuns na cultura carioca de 1960 com as
quais o artista não só queria designar as coisas que fazia, mas descrever as
experiências ambicionadas.
A explosão do “Parangolé”
Escreve Oiticica: “Tudo começou com a
formulação do Parangolé em 1964, com a minha experiência com o samba, com a
descoberta dos morros, da arquitectura orgânica das favelas cariocas (e
consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente as
construções espontâneas, anónimas, nos grandes centros urbanos — a arte das
ruas, das coisas inacabadas, do terrenos baldios, etc. Parangolé foi o início,
a semente.” Ao que uns anos mais tarde acrescenta: “Toda a minha evolução, que
chega aqui à formulação do Parangolé, visa a essa incorporação mágica dos
elementos da obra como tal, numa vivência total do espectador, que chamo agora
‘participador’. […] O ‘vestir’, sentido maior e total da mesma, contrapõe-se ao
‘assistir’ […]. O vestir já em si constitui numa totalidade vivencial da obra,
pois ao desdobrá-la tendo como núcleo central o seu próprio corpo, o espectador
como que já vivencia a transmutação espacial que ai se dá.” (Anotações sobre o
Parangolé, 6 de Maio de 1967)
Esta ideia é clara enquanto síntese do esforço
criativo de Oiticica, mas trata-se de um avanço relativamente aos seus
“penetráveis”: “parangolé” não é só uma coisa para se usar/vestir, mas a
condição da sua existência é assentar sobre a pele e tornar-se corpo, parte
indissociável daquele que o usa. Uma intimidade de tal modo forte que “parangolé” se torna corpo e o corpo
“parangolé”. E não se trata só de uma ideia de participação ou utilização, mas
de um gesto de redenção não só da arte, como da pintura. E, sublinhe-se, da
pintura e não do quadro.
A revolução de Oiticica não está unicamente no
encontro do quotidiano, na romantização e mitificação da favela, mas também na
negação do quadro enquanto, segundo o artista, forma artística morta e na
recuperação da pintura enquanto forma vital: “Já não tenho dúvidas que a era do
fim do quadro está definitivamente inaugurada. Para mim a dialética que envolve
o problema da pintura avançou, juntamente com as experiências (as obras), no
sentido da transformada pintura-quadro em outra coisa (para mim o não-objeto),
que já não é mais possível aceitar o desenvolvimento ‘dentro do quadro’, o
quadro já se saturou. Longe de ser ‘a morte da pintura’, é a sua salvação, pois
a morte mesmo seria a continuação do quadro como tal.” (16 de Fevereiro de 1961)
Estas palavras antecedem os desenvolvimentos
posteriores de todo o seu trabalho (os penetráveis, parangolés e as grandes
instalações) e iluminam surpreendentemente toda a obra porque colocam
Oiticica na tradição da arte, como aquele que recebe a herança da pintura e a
transforma, altera e desenvolve. O seu trabalho não corresponde a uma saída do
campo artístico, mas ao seu desenvolvimento e expansão em direcções totalmente
novas e supreendentes.
Uma das instalações apresentadas na exposição
em Lisboa é “Tropicália” a qual funciona como síntese ou, como disse o artista
numa entrevista a Guy Brett em 1969, “é uma espécie de mapa de condensação de
lugares reais. Tropcália é um tipo de mapa. É um mapa do Rio e é um mapa da
minha imaginação. E um mapa no qual você entra.” E chega-se a esta mapa através
de um percurso que começa nas primeiras pinturas feitas pelo artista aos 18
anos e mostra o modo como o espaço da tela, da bidimensionalidade se foi
tornando insuficiente para a sua ambição de estar no mundo e trazer mundo para
a arte. “Tropicália” é esse grande mapa da atmosfera da mente do artista
carioca, da inquietação do pais do sul, da intensidade do corpo e do convívio
apaixonado com a rua, os outros e a exuberância da natureza tropical.
*uma versão deste texto foi publicada no suplemento Ípsilon do jornal Público
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