Tuesday, December 18, 2012

O mundo segundo Cézanne



Paul Cézanne, Auto Retrato, s.d.


Élie Faure (1873-1937) e Joachim Gasquet (1873-1921) são dois escritores pouco ou nada conhecidos em Portugal, são os dois da mesma geração, mas não têm uma obra conjunta, nem uma afinidade de estilo. O primeiro era médico, o segundo poeta. Une-os a vontade em compreender as grandes construções de inteligibilidade do mundo que se materializaram na arte e, no caso da presente edição, a admiração por Paul Cézanne. Não são dois textos apologéticos, mas dois olhares de alcance profundo sobre a obra do pintor onde se descobre que cada obra longe de representar o acontecimento retiniano, pictórico e cromático do mundo, se revela como um abismo face ao qual a pintura surge como gesto de exploração do profundo presente na superfície.
Ambos os textos são atravessados pela inquietação que irradia dos retratos, das naturezas mortas e das paisagens de Cézanne e pela admiração pelo génio do pintor, pelo modo como sempre esteve inteiro a cada nova pintura, repudiando escolas, fórmulas ou atalhos. O Cézanne que surge nestas páginas é um pintor destemido e animado pela bravura daquele que não teme ter de enfrentar a cada obra o desconhecido e começar sempre de novo.
O texto de Faure desenvolve-se entre o registo biográfico e o modo como são articulados naquela obra níveis diferentes de sensibilidade, intuições, cores, espaços. Trata-se de um retrato onde o mais importante é a indiscernibilidade entre artista e a sua obra: “desde há muito os habitantes de Aix se tinham posto de acordo a seu respeito: o senhor Cézanne era louco. […] Um nariz roxo, pálpebras caídas, vermelhas e lacrimejantes, o lábio inferior saliente, faziam-lhe o rosto menos marcial. Vestia como um burguês: fato preto, calças um pouco enrodilhadas, chapéu de feltro no Inverno, chapéu de palha no Verão. Muitas vezes com bolsa de caça a tiracolo.” (p.15) E umas linhas à frente acrescenta como conclusão deste esboço: “era um velho selvagem, cândido, irascível e bom.” (p.17)
No entanto esta abertura não revela o cuidado com que Faure nos faz descobrir as tensões vividas por Cézanne e o seu sentimento de desenquadramento relativamente aos seus contemporâneos. A sua curta estadia em Paris, onde contactou com Delacroix, Courbet ou Manet, permitiu-lhe perceber que não lhe interessava a conversa sobre a arte, sobre as obras, sobre o método, mas sim o contacto com as diferentes coisas que alimentam o espírito e olhar do pintor. Em Paris “declarava-se geralmente que a pintura estava muito simplesmente para nascer; que em breve a ciência permitiria a criação de um método verdadeiro; que o velho esforço dos homens tinha sido manchado por erros místico, e os tempos conscientes estavam para chegar. […] Ainda assim, quando os versos de Vergílio ou de Racine lhe subiam aos lábios, quando fugia bruscamente do grupo entusiasta onde o seu silêncio escavava desde há momentos um buraco, era para correr até à grande galeria do Louvre e deambular lá até à noite, dizendo de si para si que havia ali outra coisa, que antes destes homens outros tinham existido a dar à sua alma uma forma sensível que parecia incapaz de morrer.” (pp.23-24)
O “absolutismo positivista” dos seus amigos forçava-o a abrir o coração à exploração interior e, por isso, fugiu de Paris e regressou a sua terra natal onde, como escreveu, esteve empenhado em “fazer do Impressionismo qualquer coisa tão sólido e perdurável como a arte dos museus.” Declaração esta a que Faure acrescenta: é através disto que devemos definir a sua obra, porque ela não se descreve […]. É um ensaio primitivo sobre a arquitectura geral e permanente da terra, um seu pedaço transportado com profundos alicerces para a moldura de um quadro.” (pp.24-25)
Esta ideia do ensaio primitivo não revela um estilo, mas indica a necessidade de permanente contacto com o mais profundo e próprio da pintura. Cada obra não era uma paisagem ou um retrato, mas sempre uma direcção do espzanne﷽﷽﷽﷽﷽permite a Faure dizer que Cdapintor em estar em permanente contacto com o mais profundo e prundo de cada uma das suasrírito. É esta característica que permite a Faure dizer que Cézanne levava: “dentro dele o soberbo esboço de um mundo onde cada quadro só era uma etapa que ele atingia esgotado, e abandonava porém de imediato, desta vez com a certeza de o repouso estar na etapa seguinte, e a cada nova decepçãoo ganhando a energia para chegar mais longe. Nunca houve desdém mais magnífico pela obra feita.” (p.39)
Um aspecto essêncial deste texto, entre os muitos possíveis de enumerar dada a sua intensidade, é o modo como nele é destituída a questão da mestria, do bem desenhar. Se por um lado, o pintor Cézanne estava todo na tela, no desenho, na cor, por outro o elemento decisivo não se localizava nesse fazer da pintura. Diz Faure: “Não se desenha bem ou mal, não se escreve bem ou mal. Quando se desenha, quando se escreve, diz-se qualquer coisa ou não se diz nada, repete-se sem emoção palavras que outros pronunciaram a tremer ardentemente, ou vão procurar-se na forma e no espírito misturados das coisas alguns caracteres novos que em nós farão agitar sensações, tanto mais fortes  quanto melhor corresponderem às fontes desconhecidas que a evolução incessante do mundo todos os dias abre nos cérebros aventurosos.” (p. 46)
 Neste contexto as palavras de Cézanne são um necessário e importante complemento do modo como Faure lê a sua obra e o seu espírito e o texto de Gasquet recria três conversas imaginárias, as quais foram extraídas, diz o autor, “de uma centena que tive realmente com ele nos campos, no Louvre e no seu estúdio, juntei tudo o que pude recolher e o que pude recordar das suas ideias sobre a pintura.” (p.61)E são existem várias passagens impressionantes e reveladoras do modo como o pintor via e sentia a paisagem, sobre os apelos da natureza à arte e sobre o modo como o artista deve manter a sua vontade em silêncio. Perante a paisagem o artista é a consciência subjectiva dessa mesma paisagem e a tela a sua consciência objectiva: “a minha tela, a paisagem, ambas exteriores a mim mas uma caótica, fugidia, confusa, sem vida lógica, ora de toda a razão; a outra permanente, sensível, categorizada, a participar na modalidade, no drama das ideias… na sua individualidade.” (pp.64-65)
Através destas conversas descobre-se um pintor abandonado à lógica colorida do mundo e nunca à lógica racional do cérebro (p.78), porque para Cézanne os olhos são o lugar do pensamento. Uma elaboração metafísica e especulativa da pintura que não destitui Cézanne do seu ser pintor: “ali, à frente dos meus tubos, dos meus pincéis, não passo de um pintor, do último dos pintores, de uma criança. Transpiro coração e sangue. Já não sei nada. Pinto.” (p.89)
São dois textos notáveis não só pelo modo como apresentam e descobrem Cézanne, mas como através e com esse pintor constroem um mundo. E nesse mundo a pintura, que pode servir de metáfora para toda a arte, não é uma questão lírica, ornamental, excessiva, mas o movimento necessário de ordenamento das sensações, da experiência, do pensamento. A esta luz a obra de arte é a estrutura essêncial do mundo ou, como afirma Cézanne, a forma sensível da alma humana.

"Paul Cézanne" por Élie Faure Seguido de "O que ele me disse" por Joachim Gasquet
Trad. Aníbal Fernandes
Sistema Solar, 2012

*Este texto foi publicado no Ípsilon

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