O conjunto da obra de Ana Jotta é um verdadeiro enigma. As suas referências são várias e dificilmente se consegue encontrar um fio condutor que una as suas diferentes produções. Não é que seja um trabalho incoerente, mas cada obra é um ser singular, auto--referencial, autónomo. As suas pinturas, desenhos, esculturas e fotografias têm somente um centro originário, que é a própria artista. Mas que não é um corpo convergente: os seus trabalhos usam diferentes gramáticas e têm destinos diversos. Mas pode assumir-se que todos têm um ponto comum — a forma cuidadosa com que são executados. Talvez o desenho seja a sua matriz, a fonte de onde emanam todas as outras construções. Por isso o seu registo é o da inscrição da forma. A artista é aqui sinónimo de uma posição de escuta: ouve a forma e trata de lhe dar alimento — tinta, barro, grafite, cartão, tela. São obras cujo projecto são elas mesmas.
Nos desenhos e pinturas aqui apresentados o campo é o do jogo perceptivo, isto é, lidam com o fenómeno da visão na sua maior amplitude e com os exercícios que transformam o acto de ver.
A sua ‘cabeça pato-coelho’ é clara a este propósito: é uma figura dupla onde ora aparece um coelho, ora um pato. Que as duas figuras possam coexistir em simultâneo no mesmo espaço não é só significativo do ponto de vista da construção da imagem, mas também da adequação da visão ao pensamento. Aquilo que a artista sublinha é que a visão já compreende uma relação de adequação ao mundo, isto é, só se vê aquilo que se está preparado para ver, o que se quer ver. Este abismo perceptivo que Jotta evidencia também é revelador do modo como o olhar artístico se constrói: materializa figuras internas, projecta acontecimentos da visão sobre a matéria, cria zonas de sensibilidade de outro modo só existentes enquanto tensão interna.
Mas em nenhum dos casos se trata de um jogo cego ou de enganos. É o esforço de uma certa arqueologia do visível que tem como resultado mais imediato uma desmontagem do preconceito da objectividade e geometrização espacial: o campo visual antes de ser euclidiano é humano, e a primeira relação com as grandezas — e as manchas de cor são, de certa forma, grandezas dadas — é estética. Deixar-se afectar pelo visível é o mote que a cada momento é desenvolvido nestes trabalhos, e a cada percepção da figura externa corresponde a identificação de um lugar da interioridade. E, neste contexto, não se pode falar em erros, somente em cegueira, e esta é, deste ponto de vista, a maior condenação. Não se trata de estar cego relativamente à imagem do mundo, mas sim quanto aos aspectos — pedras de toque na organização do campo visual — que o mundo tem.
As intervenções que Jotta executa não são somente apropriações de trabalhos ou de imagens existentes — numa espécie de continuidade da sua estratégia do objet trouvé — , são sobretudo modos de agir, de interceptar, de tocar no modo efectivo como se vê, como se sente, como se pensa. Estes trabalhos colocam o seu utilizador ou activador perante a certeza que a relação com as obras de arte é meio ver/meio pensar, e onde as obras surgem como pontos de concentração e intensificação do corpo (porque o corpo é a melhor imagem da alma) daquele que as confronta.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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