Tuesday, February 26, 2008

Álvaro Lapa*

Dificilmente se pode ser tão profundo como o são os desenhos de Álvaro Lapa. Através de um reduzido léxico formal, o artista consegue atingir as camadas mais profundas do sentimento, da percepção, do pensamento. Não se confunda a simplicidade aparente destes trabalhos com a falta de recursos; o seu resultado é um enraizamento do olhar nas coisas mais simples, e por isso mais difíceis. Que as pedras tenham vozes e que a Mãe-Terra tenha moradas para todos revela um mundo que se julga extinto, um contacto com a fonte de onde emanam todas as coisas que já só sob a forma de fantasma se julgava possível pressentir.

Que a beleza é o mais difícil é uma lição que se aprendeu desde Platão, mas aqui esta categoria surge como modo de dizer o lugar terreno onde o corpo pertence: corpo que é morada, que é voz, que é forma. A inscrição do corpo sobre a Mãe-Terra não é um apelo ecologista, mas uma necessidade de voltar ao pó, ao contacto, às cinzas. Poder-se-á dizer que a cada desenho Álvaro Lapa abre uma fenda na crosta terrestre através da qual se pode ver. Aquilo que se vê não é mais que o ponto de encontro entre a essência humana e a essência do mundo. A cada traço o artista redesenha os contornos do planeta, ao mesmo tempo que se descobre a si mesmo. A cada momento define a essência do desenho. Tudo se passa como se fosse um poema, onde cada linha só nasce da absoluta necessidade: nada é supérfluo e a sua economia é perfeita. A cada nova visão fica-se mais próximo da essência não só do desenho, como do ritmo do magma terrestre, do coração, da palavra.

Os campos que abre são verdadeiras clareiras onde o ser do mundo encontra o lugar do seu acontecer, um espaço em aberto onde se descobre a pura potência, o poder-ser tudo. Os desenhos de Lapa não são pontos de chegada, mas pontos de partida, locais de onde se parte para descobrir as linhas com que as coisas se cosem a elas mesmas e que depois se unem ao corpo do homem: tudo está ligado a tudo, tudo é feito da mesma matéria.

Escutar “a voz das pedras” é uma espécie de oração ao cosmos e ao dia que encontra nas mãos e no rosto que se recolhem para pensar em deus a sua melhor apresentação. Pensar no sentido do mundo é o outro nome para este deus que tem morada na terra e consegue ouvir as pedras. Não se chega a este local através de deduções e exercícios: ele só se torna presente numa revelação. O sentimento que atravessa estas paisagens não é de nostalgia, mas de familiaridade entre todas as coisas, com o homem no centro delas. Que a Terra seja o lugar de pertença do corpo é um facto que de tão primário se tende a esquecer, faz parte daquelas coisas que de tão presentes se tornam invisíveis e é o resgate desta invisibilidade que o artista parece estar continuamente a ensaiar.

Na série “Moradas da mãe terra” a sequência de 14 desenhos parece apresentar uma espécie de sequência cinética, os movimentos são sempre duplos: interior/exterior, inspiração/ /expiração, dentro/fora. Mas esta diferenciação é provisória, pois são termos de uma mesma relação e que depois são integrados. O movimento que se percepciona é sinal do dinamismo interno do que é vivo, do gesto significativo que todas as criaturas realizam.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

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