Corpos de fogo, ferro e palavra. Assim poderia começar uma descrição do trabalho de Rui Chafes. As suas esculturas são pedaços tirados à terra, bocados do cosmos terreno e celeste com os quais o artista realiza uma minuciosa descrição da ocupação do espaço. O seu interesse não é puramente humano; trata-se de tornar terrenos seres incorpóreos e criar lugares onde os corpos não se submetem às habituais leis da gravidade, criando as suas próprias condições de existência. A sua estratégia formal e conceptual passa por um jogo com o peso e a leveza, a gravidade e a graça, a opacidade e a transparência.
Independentemente do seu estatuto de corpos, as suas criaturas — que são madrugadas e manhãs, luzes e escuridão, clareiras e campos de escondimento — são sobretudo pontos de intensidade, topoi poéticos: momentos de potenciação do campo da acção humana. A figura matricial é sempre o corpo humano na sua dimensão múltipla, nos seus aspectos de matéria, forma e invisibilidade. São locais de partida através dos quais se toca no frio que envolve todo o ente vivo. São gestos que rodeiam, como um halo sagrado, e protegem o coração, ao mesmo tempo que o expõem ao mundo. São abrigo e casa materna onde o homem se pode recolher, lugar sagrado onde o coração se pode dar a si próprio.
Não se pode pensar o trabalho deste artista sem ser numa estrita relação com a camada mais profunda da realidade: as suas esculturas são seres da profundidade, corpos alados. O local que habitam inscreve-as em zonas onde o silêncio é mais forte que a palavra, são como sondas que detectam os deslocamentos e oscilações do magma terrestre. Mas trata-se de um silêncio que não anula a palavra, a qual é aqui entendida como esforço humano de compreensão. Estas esculturas são, sobretudo, formas de pensamento tornadas sensíveis, tangíveis: é o pensamento a entregar-se na forma de corpo. Dar nome — e todas as esculturas de Rui Chafes têm nome — significa a necessidade de compreender o visível, de identificar a intuição. Mas a nomeação não é sinónimo de um programa de racionalidade, mas sim um gesto poético. Aliás, só a palavra poética convém a estas formas, porque só elas podem conter o universo que é aqui apresentado: fazer poesia com o fogo, escrever sobre o aço incandescente — esta é a imagem que convém a estes corpos.
Um esforço que não obedece a critérios puramente formais, mas orgânicos. Exigências que têm de se cumprir quando se seguem os vestígios do que está vivo. O escultor transforma-se não num demiurgo, mas num caçador nómada, as suas presas são meio anjos, meio bestas, que só conhecem a forma quando são presas nas tiras esvoaçantes e leves do ferro. A sua solidão é o espaço de silêncio e imobilidade necessários para poder levar a cabo a sua tarefa. No final dá-se outra metamorfose: o caçador torna-se na sua própria presa e faz de si mesmo o caminho a percorrer. A metáfora da caça é conveniente a Rui Chafes e é sob o signo do viajante, solitário e intenso, a sós com a dor e a morte que transporta dentro de si, que todo o seu trabalho se desenvolve. Neste seu universo, todos os elementos têm uma localização precisa, geométrica: a única lei que conhecem é a necessidade orgânica de manter a vida, de suportar a carne, a voz e o sopro que é a alma.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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