Tuesday, February 26, 2008

Copiar, apropriar, criar - sobre Adriana Molder





COPIAR

Copiar é pedestre. Copiar é peculiar. Por um lado, copiar é aquilo que nos faz ser o que somos. Os nossos corpos assumem a forma da transcrição dos modelos proteicos, as nossas linguagens mimam sons privilegiados, os nossos ofícios repetem os protótipos… Copiar a célula por outra célula, a palavra pela palavra, a imagem pela imagem é transformar o mundo conhecido no nosso mundo.” Hillel Schwartz, The Culture of the Copy

As cópias sempre tiveram má fama. Copia-se num exame porque não se sabe, copia-se outro artista porque falta o talento, copia-se um estilo porque falta a voz própria, copia-se porque falta a moral. Copiar é visto quase sempre como um pecado por atentar a integridade de uma entidade superior - o original: o pressuposto é que a cópia mancha a pureza do modelo e constitui uma espécie de perturbação do equilíbrio que o mundo dos modelos, dos mestres, dos protótipos possuem. No famoso ensaio de Walter Benjamin (“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”) a questão é a de saber de que modo a reprodução – cópia legitimada e culturalmente aceite – das obras de arte tem consequências nos originais. Benjamin conclui que independentemente das cópias que se fizerem, isso jamais afectará a integridade e individualidade irrepetível do original porque cada obra, entendida como indivíduo singular e irrepetível, possuí uma “aura” que não se deixa reproduzir. O conceito de “aura” pode traduzir-se dizendo tratar-se do “aqui e agora” que cada obra de arte apresenta como sua condição, o que significa que cada produção artística é a cada momento a apresentação de uma lonjura essencialmente irrecuperável, um para lá espacial e temporalmente inacessível. E esta “lonjura” transforma-se no elemento que no interior de cada obra resiste a todas as tentativas de reprodução. No limite, trata-se da afirmação que nada pode substituir a experiência pessoal com cada uma das obras de arte, é um face-a-face que possibilita a reconstrução de outras regiões do espaço e de outros momentos do tempo.

Desvalorizar a cópia é afirmar o valor inalienável da originalidade e da novidade, contudo quando nos aproximamos daquilo que constituí a forma do “novo” podemos ficar numa situação embaraçosa. Verificamos que as condições do surgimento do “novo” requerem sempre uma espécie de olhar para trás, para aquilo que constitui a história desse gesto ou linguagem que tanto queremos criar. É assim que toda a produção parece ser reprodução e todo o original transporta a cópia de um outro original qualquer. A singularidade que a linguagem comum associa ao original e ao novo significa que uma das condições da verdadeira criação é a capacidade de distinguir-se e distanciar-se do meio envolvente. É uma espécie de rasgão com a história e com o contexto, um rasgar que, no final, se manifesta como alargamento dos próprios conceitos e, claro, da própria narrativa histórica.

Em termos artísticos pode pensar que ao objecto da cópia corresponde, regra geral, uma obra de valor inigualável: tratam-se de paradigmas técnicos ou poéticos. Assim, pode copiar-se para conquistar uma determinada técnica, um determinado conhecimento ou uma certa gestualidade (muito do ensino artístico começa pela cópia de obras exemplares). E aquilo que se copia surge aos nossos olhos como paradigma de uma qualquer actividade ou produto: exemplos de superioridade e excelência que se transformam em paradigmas. Deste modo parece que a cópia é um exercício mimético não de um objecto (pintura, escultura, palavra, etc), mas de um gesto inaugural, do momento que dá início a uma nova série, a uma nova vida. Esta repetição tem uma natureza musical: na música e na poesia – as grande artes do ritmo – a repetição faz parte da economia da construção de uma determinada cadência ou harmonia. Parece que da repetição dos gestos originários se solta qualquer coisa – a que não podemos dar nome – da ordem do educação do gesto, da visão e do gosto.

Esta longa abertura sobre a natureza da cópia não é uma justificação dos artistas que copiam. Serve antes para sublinhar que algumas vezes copiar não é só copiar, que não se reveste dessa aparente e primária simplicidade. O caso de Adriana Molder é exactamente este. Os seus desenhos partem sempre de imagens existentes, o seu génio é mais recriador que criador. Quer-se com isto dizer que a sua actividade artística revela-se, muitas das vezes, como potência de re-intepreteção e de re-visitação de figuras e personagens fixados num qualquer momento do tempo. Podem ser personagens de pinturas ou de filmes, seres imaginários que saem de livros de ficção ou mesmo criminosos famosos. O que todos eles têm em comum é o possuírem um corpo expressivo que interessa à artista. Mas a cópia não é a característica mais evidente do seu trabalho. O que em primeiro lugar salta à vista é o facto da quase totalidade do seu trabalho estar inserido na longa tradição do retrato. E não é por acaso que o retrato aparece aqui associado à questão da cópia: o pressuposto é que toda a arte é cópia e que todo procedimento artístico fragmenta e desconstrói retratando a realidade de que parte (pressupondo que as obras de arte têm outro motivo que não a sua própria história).

Parece que não há construção plástica se não houver um procedimento célula a célula, imagem a imagem, palavra a palavra. Se pensarmos na relação entre um retrato e o modelo surge imediatamente a noção de cópia: o artista torna visíveis os traços fisionómicos de um determinado rosto, mas, sobretudo, acrescenta um ponto de vista, um modo de ver. Por exemplo, em “Copycat” (2003) a relação que a artista estabelece com a pintura flamenga do Museu de Arte Sacra do Funchal não é da ordem da simples citação ou comentário. Esta série tinha como pressuposto a colecção de pintura do museu e Adriana Molder escolheu personagens existentes nas pinturas – fragmentou, partiu, desmembrou – e escolheu os rostos e os elementos de maior intensidade expressiva. A relação destes desenhos com as pinturas que os originam é de tal modo complexa que é quase impossível reconhecer nos desenhos as figuras das pinturas. Estão em causa processos de fragmentação, isolamento e refiguração.

Num outro conjunto de trabalhos (“No Place for a Woman” de 2006) 3 personagens femininos de 3 filmes famosos (Laura do realizador Otto Preminger, Alice de “The Woman in the Window” do realizador Fritz Lang e a Madeleine/Judy do Vertigo de Hitchcok) são re-desenhadas. O central aqui não é o processo de recolha das personagens, mas o facto de já serem retratos dentro dos filmes a que pertencem: são retratos de retratos. Além do carácter figurativo implícito na fixação das intensidades fisionómicas de cada rosto já retratado, trata-se da radicalização do processo que leva do reconhecimento de uma figura à sua fixação numa imagem. Esta série transporta-nos ao limite máximo do carácter supostamente reprodutivo do trabalho de Adriana Molder. Percebe-se que não está só em causa a natureza da constituição das imagens, mas trata-se da possibilidade da própria representação: note-se que além de se tratarem de retratos de retratos, a artista deixa visível a moldura a qual não é um elemento ornamental do retrato, mas a afirmação da prisão em que todos esses personagens vivem.

Chegados aqui percebemos que chamar cópia ao método de Adriana Molder é redutor. Copiar pode ser um ponto de partida, mas o processo é a construção de um vocabulário plástico e fisionómico próprio feito a partir da condensação de imagens e da eliminação do excessivo: só fica retido no papel esquiço através da tinta-da-china os traços mais significativos, os momentos de um rosto com inegável eficácia expressiva. Podemos mesmo dizer que a partir de determinado momento a artista deixa de ver o modelo, o original que supostamente copia e fixa a atenção nos elementos essenciais desse ser – quase sempre um rosto -, por isso cada novo trabalho é a apresentação de seres únicos, singulares: sempre inesperados. A cópia perde-se e só fica o sentimento próprio daqueles que entram em contacto com o que quer que seja pela primeira vez.

Um processo artístico que, por um lado, reflecte o que os personagens que encontra lhe dão, mas que, por outro lado, é o reflexo da sua própria origem, da mão que lhe dá forma e lhe garante a vida. Por isso é que a esta a artista tudo pode servir como início do seu processo, porque o que interessa é o personagem que cada um dos seus desenhos consegue construir.






APROPRIAR: As caras que os outros têm

Já o disse? Aprendo a ver. Sim, estou a começar. Ainda é difícil. Mas pretendo aproveitar o meu tempo. Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorme quantidade de rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas os rostos são ainda mais, pois cada uma tem vários. Há pessoas que usam um rosto anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples; não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda está bom, afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? Mas então pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários rostos, o que fazem com os outros? Guardam-nos. São para os filhos. Mas também acontece que os seus cães saem com eles. E porque não? Um rosto é um rosto. […] Sentia pavor de ver um rosto por dentro, mas tinha um medo ainda maior de uma cabeça nua e em carne viva, sem rosto.” Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laudris Brigge



Este texto de Rilke apresenta aspectos fundamentais para a compreensão daquilo que é um rosto: primeiro afirma a quantidade enorme de rostos que há e que o dar-se conta desta multiplicidade resulta de uma aprendizagem da visão, depois que os rostos se gastam e cada pessoa pode ter vários rostos e, por fim, que sem um rosto a visão do outro seria uma experiência de terror.

Impõe-se perceber a natureza particular de um rosto quando se quer perceber aquilo que seja um retrato. Dado o artista – aquele que fixa sob determinado suporte um rosto – não ser transparente ao objecto que representa, isto é, não repor tal qual a realidade que vê, mas fazer acrescentos expressivos e subjectivos. Trata-se da diferença entre aquilo que se vê e aquilo que se sabe: parece que as boas obras de arte são aquelas que conseguem fazer coincidir numa única imagem tanto a experiência da visão como a do conhecimento. A distância habitual entre esses diferentes ingredientes da experiência humana transforma-se numa experiência visual que é meio pensar, meio ver. Wittgenstein chama-lhe “visão de um aspecto” e descreve-a assim: “Estudo uma cara e, de repente, reparo na sua semelhança com uma outra. Vejo que não se mudou, e, no entanto, vejo-a de uma outra maneira. A esta experiência chamo reconhecer um aspecto” (“Investigações Filosóficas”).

O conceito de aspecto implica a possibilidade da existência de elementos expressivos – os tais traços de que é feito um rosto - de tal maneira subtis que podem ser imperceptíveis. Uma subtileza que não é sinónimo de pouca importância, trata-se daquilo que quando percebido confere um novo aspecto a um rosto, a uma paisagem, a um objecto, etc, um elemento crucial no modo como o olhar compreende o que quer que seja. O reconhecimento de um aspecto determina e altera não só as condições da visão, como aquilo que é visto. É esta espécie de jogo perceptivo e representativo que o trabalho de Adriana Molder está sempre a propor.

É neste horizonte que, por exemplo, os criminosos (“Galeria de Criminosos”, 2005) de Adriana Molder estão. Tratam-se de rostos, à primeira vista iguais a tantos outros, face aos quais a tentação é encontrar elementos denunciadores dos gestos realizados, sinais que depois de descodificados revelem o seu segredo. Se se pensar na gramática que o conceito rosto possui – por exemplo a expressão ‘dar a cara’ como sinal de verdade e honestidade; a visão do rosto como prova testemunhal num julgamento; ver um rosto e perceber uma mentira, etc. – torna-se claro tratar-se de um domínio público da expressividade humana, qualquer coisa cuja visão pode dar acesso a uma camada mais profunda de alguém, por isso é que se tapa o rosto como sinal de vergonha ou se desvia a cara como manifestação de distância.

Está em causa nestes trabalhos de Adriana Molder o movimento de detecção da fisionomia própria do crime e do criminoso aliado ao impulso de classificar o inclassificável e registar o que é impossível registar. O ponto de partida foi um conjunto de fotografias de identificação criminal feitas pelo inspector americano Thomas Byrnes em 1886 e publicadas num livro intitulado “Professional Criminals of America”. Fotografar e depois exibir o rosto de criminoso torna-se num desafio colocado ao cidadão comum em tentar reconhecer o irreconhecível, isto é, o crime existente numa expressão facial. É esta tarefa de reconhecimento e perseguição fisionómica que Adriana Molder toma como sua. Um problema que a artista coloca ao desenho, mas que se desdobra numa série de outras questões em torno da possibilidade de construir uma imagem daquilo que não possui uma imagem estável: pense-se nas fotografias de espectros e mediúnicas ou nas tentativas de Charcot em fotografar a histeria. No fundo, aquilo que alimenta e anima este tipo de discurso plástico e representativo é a questão sobre os resíduos que a vida deixa depositados nos traços de um rosto, qualquer coisa que a princípio parece indetectável, mas que depois se deixa capturar através de gestos subtis e contemplativos.

É isto que Rilke denuncia: a troca conveniente de um rosto por outro e o horror daqueles que não possuem rosto, que é um modo de dizer o horror daqueles que não têm elementos que lhes sirvam de apresentação, que sejam seus mediadores. Trocar de rosto significa igualmente uma alteração perceptiva: trata-se de uma mutação de aspecto – subitamente um rosto onde se reconhecia a beleza fica carregado de terror e temos de desviar o olhar. Está em causa um mecanismo da visão que encontra na expressão “ver como” a sua melhor formulação, trata-se de um ver que: “não faz parte da percepção. E por isso é como um acto de ver e ao mesmo tempo não é” (Wittgenstein). Podemos arriscar e dizer que este ‘ver como’ é uma espécie de categoria estética da qual os “ready-made” são a mais clara materialização: vê-se o rosto do criminoso como se fosse detentor de toda a beleza do mundo, vê-se a maior desdita e tem-se prazer nisso, vê-se um urinol como objecto belo, etc. E, acrescenta Wittgenstein, “quem tem experiência visual”, por oposição àqueles que simplesmente olham para os objectos, “cuja expressão é a exclamação, pensa também naquilo que vê” e, conclui. “por isso, a iluminação súbita de um aspecto parece ser meio experiência visual meio pensar.”

Este excurso por Wittgenstein destina-se a mostrar que no caso de Adriana Molder estamos sempre no momento de iluminação súbita. Os seus personagens são disso prova: não são indivíduos, mas personagens porque já são detentores de atributos cognitivos e psicológicos. E aquilo que percebemos é que não existe visão, mas apenas um ‘ver como’, porque a visão de qualquer imagem é já uma interpretação: interpretamos uma imagem e vemos as imagens como as interpretamos. Este é um dado antropológico fundamental acerca da nossa relação com a camada visível do mundo: olha-se para um rosto e não se vê um rosto, vê-se alegria ou tristeza, melancolia ou exaltação. O rosto do outro é apresentação de qualquer coisa diferente de nós e, simultaneamente, instância de reflexo do nosso próprio olhar: todo o visível devolve o olhar daquele que o reconhece. Tratam-se de fisionomias evanescentes: elementos que se percebem num objecto e que se podem perder.

Estamos aqui, partindo do trabalho de Adriana Molder, a tentar estabelecer um contraste e uma diferenciação entre a visão normal das coisas – uma visão contínua e quase indiferenciada, a tal visão que se assume como uma espécie de estado permanente e indiferenciado – e a percepção ou a iluminação de um aspecto. Este último ao ser uma experiência visual – por oposição ao acto de ver como quem não vê – na qual ao sentir se alia o pensamento, isto é, em que o gesto de pensar ganha qualidades estéticas e não abstractas. Com os rostos de Adriana Molder a experiência privilegiada é a da antecipação da percepção: porque cada desenho antecipa a abertura da acção de ver. Uma expansão do campo do visível cujo fundamento está localizado no modo como o olhar sente aquilo com se depara e como se sente a si próprio. Na experiência da percepção do aspecto o que está em causa é o colocar a hipótese do olhar não ser um mero mensageiro, mas ser uma instância de conhecimento e de contemplação. Por isso vemos as imagens como as interpretamos: não há lugar para uma distinção artificial entre primeiro vê-se e depois interpreta-se, primeiro sente-se e depois percebe-se o sentimento. A possibilidade é que à visão corresponda já actividade cognitiva e reflexiva. É certo que não se ordena o mundo, é certo que daqui não resulta da criação de sistemas classificativos e/ou de ordenação dos factos e fenómenos do mundo. Porém, à visão corresponde imediatamente um certo modo de pensar o mundo e a possibilidade do sujeito se poder orientar através do estabelecimento de diferentes regiões no visível.

Não se trata de um modo de ver que resulte na criação de um corpo de conhecimento positivo: no limite é a simples afirmação que não existe “o mundo”, mas sim “o meu mundo”. Ainda que esta compreensão corresponda a um ponto de vista solipsista – ver o isolamento do homem como característica inabalável e inalterável – ela possibilita que a relação com um qualquer outro seja possível através da experiência estética. Quer isto dizer: ainda que ver seja interpretar e que possam não existir factos e apenas interpretações, contudo podemos comunicar uns com os outros, podemos partilhar os nossos mundos e as imagens que deles construímos. No limite, e para retomar o sonho romântico e iluminista, a comunidade humana possível é uma comunidade estética.

Uma comunidade tornada viável, no entender de Rilke, através da mediação do rosto: o qual supõe uma profundidade que é o fundamento da própria ideia de humanidade e que transforma qualquer outro diferente de mim num meu semelhante. Mas o que está aqui em causa não é pressupor uma interioridade a que dificilmente se tem acesso, pelo contrário o pressuposto é que o rosto é o local do acontecimento da própria ideia de humanidade. O rosto está para o humano, como a palavra está para o pensamento: são entidades congéneres, co-naturais, possuindo ambos a mesma condição de possibilidade originária.

Adriana Molder não problematiza a possibilidade de uma comunidade humana, mas os retratos que desenha apresentam a possibilidade da relação de um ser com outro ser. Nos quais o outro não surge como um ponto geométrico e abstracto do meu campo de visão, mas como o fiel depositário da minha expectativa de encontro com um possível meu semelhante.




CRIAR: uma possível família humana



Se chamamos a um objecto belo, cremos ter do nosso lado uma voz universal e reivindicamos a adesão de qualquer um.” Kant, Crítica da Faculdade de Julgar



Os desenhos da série “Encontro Marcado”, que Adriana Molder apresenta no Museu de Belas Artes das Astúrias, são retratos de personagens que a artista descobre e dos quais se apropria. Metodologicamente nesta série o que é importante são as selecções que a artista fez dos elementos que compõem esta espécie de família. Sete personagens todos eles com características diferentes e peculiares. Não é evidente a razão pela qual estão na mesma sala. Pressente-se que existem elementos de união e de re-união, mas a sua detecção não é fácil e transforma-se numa espécie de jogo que a artista nos propõe. Quatro mulheres – constituindo cada uma delas tipos muito diferentes: uma sensível e frágil, outra forte e sedutora e duas irmãs mal amadas – e três homens: um guerreiro estabelecido, um libertino e um velho desencantado. Entre eles existe uma mesa: imaculada, preciosa na sua antecipação de um prazer. Percebe-se que só existem seis lugares para sete pessoas: antecipa-se uma disputa e uma inconveniência. O ambiente caracteriza-se por uma tensão entre a sexualidade, a agressão e o desejo surge enquanto motor e princípio de movimento que alimenta este conjunto. A familiaridade que se percepciona entre eles provém do modo como o ambiente marca as suas fisionomias e pela forma como cada um destes rostos reflecte não só a mesa como o desejo de aí estar sentado.

A mesa surge isolada, como se fosse um altar improfanável, lugar de culto ao qual só se pode aceder após uma muito rigorosa iniciação. O aspecto cerimonial deste “encontro marcado” lembra os rituais do atelier dos artistas e o carácter íntimo de cada uma das suas escolhas. Mas não é uma intimidade, como tão bem a artista percebe, que signifique o fechamento de cada uma das obras de arte no reino do gosto pessoal e particular, o qual dada a inexistência de uma lógica que o sustente não admite discussão. Trata-se de ver o carácter polimórfico e a multiplicidade aspectual de que é feita a arte.

O simbolismo de algumas desta figuras é intenso: o libertino – imagem de João César Monteiro no seu filme “Bodas de Deus” – come uma romã enquanto seduz uma virgem consciente da condenação moral dos seus gestos; o velho desencantado teima em fingir ser o Casanova de tempos idos (referência ao “Casanova” de Fellini) e insiste em truques de sedução que já só têm efeito nas pessoas erradas; um guarda saído de uma pintura de Frans Hals de 1916 (Banquet of the Officers of the St George Civic Guard, Frans Halsmuseum, Haarlem) tem um ar distante e assume que aquele é o seu lugar de pertença: fazendo-nos esquecer a viagem temporal necessária para que a sua presença possa ser real. As mulheres são presenças apresentam tipos psicológicos e representam determinadas formas de relação mundana, mas são mais discretas no modo como assumem os seus desejos. Mais poupadas na exposição da natureza dos seus sentimentos.

A sedução é constante e todos eles têm uma característica em comum: olham para nós. E o seu olhar parece ser um olhar de súplica e de sedução, como se coubesse ao visitante a responsabilidade de escolher quem vão ser os que vão ter lugar na mesa e quem vai ser o excluído. A sedução adensa-se e entre nós – espectadores impreparados – e eles – sedutores experientes e cientes da brutalidade dos seus poderes – nasce a certeza que não estamos num lugar isolado, mas que representamos a possibilidade de um género, de um tipo, de uma espécie. E a artista assume a sua voz não como um som isolado e descontextualizado, mas como podendo fazer parte de um universo, de um mundo, de um modo de vida.

Não existe nesta série de Adriana Molder – como em nenhuma das outras – a tentação de fechar um sistema ou de estabelecer coordenadas estéticas e/ou conceptuais. No limite, trata-se de desenhar os rostos que exigem ser desenhados e de saldar as dívidas para com os seus personagens. Cada série – e “Encontro Marcado” não é excepção – não funciona com uma estrutura fragmentária, mas estabelece uma lógica e delimita um sentido: trata-se de traçar os limites fisionómicos expressivos com a certeza que no limiar o seu confinamento sofre um alargamento, uma expansão. E cada desenho toca a possibilidade da própria representação e o modo como uma imagem é a potência – actualizada e renovada a cada instante – do dizer como as coisas são e como acontecem. Trata-se de uma potência pictórica que encontra na mancha a possibilidade de uma sua actualização e materialização.


publicadooriginalmente no catálogo da exposição "Encontro Marcado" no Museu de Belas Artes das Astúrias, Ovideo, Espanha, produzido e editado pela Presidência da República Portuguesa e comissariado por Nuno Crespo

No comments: