Jorge Queiroz faz desenhos. Uma acção que se caracteriza por encontrar os seus fundamentos principais numa espécie de polaridade básica originária: sentido e sem sentido, lógico e ilógico, consciente e inconsciente, cheio e vazio, abstracto e figurativo, narrativa e fragmento. Tudo parte de um ponto de vista próximo do da Alice de Lewis Carroll, onde tudo é e não é ao mesmo tempo porque a lei fundamental é a da metamorfose: permanente transmutação das coisas umas nas outras, movimentos contínuos de aproximação à maior intensidade expressiva possível. Uma lei que se manifesta em termos das características formais, materiais e conceptuais de cada um dos desenhos: a nota dominante é o não haver lugares habituais (ainda que se possa identificar uma espécie de acção serial), e o próprio desenho estar continuamente a ser re-inventado, testado, levado aos limites. A luta (e estes desenhos são espaços de um certo tipo de conflito) não é por uma espécie de desmedida surreal, mas nasce de uma tensão constante (muito próxima da da poesia e de algum tipo de filosofia) entre aquilo que se pode dizer (desenhar) e aquilo que deve ficar sempre sem ser dito (aquilo a que jamais pode corresponder uma forma, imagem ou traço).
Os habitantes destes universos quase implausíveis, mas ajustados e logicamente possíveis, são seres mutantes e explosivos que habitam locais onde a geometria é invertida e a arquitectura, enquanto memória da ocupação e organização do espaço, transforma-se em irracionalidade, imprevisibilidade e acaso. A sua principal resistência é a qualquer tipo de discurso unificador que ambicione impor sistemas reguladores e ordenadores: a regra que conhece é a que surge no interior das suas próprias coordenadas pictóricas, formais e gráficas. Não conseguir identificar o fio da história significa a opção pela descoberta de lugares isolados dentro da própria possibilidade de sentir e de sentido: uma espécie de negação da genealogia (todos os elementos que compõem estes desenhos parecem sair, literalmente, do nada), dada a impossibilidade de proceder a uma regressão fiel até à origem dos acontecimentos do desenho.
Por isso o vazio faz tanto parte das obras como todas as inscrições no papel: corresponde à possibilidade do sujeito se movimentar e percorrer o espaço. Por um lado, equilibra a lógica de excesso e a abundância que formalmente caracterizam estes trabalhos, e, por outro, deixa espaço livre para a imaginação. A este vazio corresponde, sobretudo, o espaço de liberdade (que curiosamente é, neste contexto, ausência e solidão) necessário para que as faculdades humanas sejam activadas, excitadas, vivificadas. Surpreendente é o modo como à percepção deste excesso (parente do caos onírico, simbólico e surreal) se segue uma experiência de equilíbrio, harmonia e fusão com aquilo que os olhos vêem e a sensibilidade experimenta. Por fim, à estranheza sucede-se a possibilidade (em forma de evidência inegável) de que a ausência de narrativa é o elemento primeiro da construção do sentido.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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