Pode-se enfrentar os desenhos de Rui Moreira ou deixar-se levar por eles, perder-se nos múltiplos detalhes provenientes de um meticuloso registo de observação, atenção e dedicação. A experiência mais próxima é a daquele que sozinho percorre uma paisagem e se deixa levar pelos diferentes verdes, pelo contraste da terra com o céu, pelos desenhos que as montanhas e árvores realizam no horizonte. Os seres que se vê surgir nestas enormes folhas de papel nascem de uma espécie de exercício da memória: do olhar quando percorre um lugar, da mão quando acaricia uma superfície, da sensibilidade quando descobre um novo sentimento.
As figuras são ondulantes, estranhas e movediças. Não se deixam agarrar e a cada momento mostram uma nova face, um novo aspecto, um novo pormenor. A sua monocromia é um mecanismo de intensificar a concentração, de adestrar a atenção para os acontecimentos da figura. O acontecimento fisionómico é a categoria central destes desenhos, mas são acontecimentos criados pelo artista. O seu ponto de origem está num treino do olhar em detectar a geração da figura, em perceber como é que um ponto se desenvolve noutro ponto e noutro e noutro e noutro. Qualquer coisa que se manifesta não só na inscrição do sinal sobre a superfície, mas também no ritmo que imprime e é desejado, ambicionado pelo palco em que se transforma o desenho.
As figuras que Moreira apresenta lembram corpos ancestrais, aqueles com quem se aprende o primeiro gesto, com quem se trava o primeiro combate, com quem se aprende a primeira lição. As acções que parecem fazer são exemplares, rituais, míticas: devem ser repetidas e executadas por aquele que as observa, esta é a condição da sua contemplação. A sua expressão intensa dá conta do contacto com o mais fundo, com o que corre muito para lá do que se pode sentir, lugares a que só se tem acesso através de sofisticadas construções artísticas. A cada momento nestas figuras acontecem outras coisas: pequenos seres, quase invisíveis, que preenchem e criam o contorno das figuras principais.
Num outro desenho, a variedade formal sintetiza-se numa figura redonda, a qual surge como matriz planetária que é ao mesmo tempo apresentação da célula, do átomo, do infinitamente pequeno que suporta a vida, da mente como coisa redonda, do olho como porta de entrada. O modo como são construídas estas figuras conhece em Demócrito, que descreve o mundo como um conjunto de átomos e vazio, pequenas unidades de preenchimento e vazio, o seu melhor porta-voz. O modelo cosmológico dos atomistas compreende que aquilo que existe não pode ser imóvel e uno, mas depende de uma relação íntima entre o cheio e o vazio, o ser e o não-ser, e que as diferenças entre os átomos são a causa das diferentes coisas e que estas diferenças são três: “forma, disposição e posição; o ser, dizem eles, difere só em ritmo, contacto e revolução, dos quais o ritmo é a forma, o contacto é a disposição e a revolução é a posição” (Aristóteles, Metafísica, A4, 985b)
Este é um modo possível de compreender os desenhos de Rui Moreira. Também eles dependem de uma relação complexa entre o cheio e o vazio, o ser e o não-ser. E estes são os princípios que organizam os campos de visíveis que constrói. A poesia também conhece esta fórmula: enquanto arte do ritmo, ela depende da relação entre palavra dita e silêncio. De algum modo, as figuras aqui desenhadas são formas poéticas (não poemas visuais), porque intensas e preenchidas de ritmo e movimento.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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