Tuesday, February 26, 2008

José Loureiro*




As “bocas” de José Loureiro são um momento importante na história do corpo. Trata-se do momento em que os órgãos se autonomizam e, logo, ganham voz própria, vontade, identidade.
A sua autonomia é tão inesperada que num primeiro contacto, estas “bocas” são identificadas como pequenos monstros: que dizer de bocas que andam por aí, sem dono, autónomas, a reivindicar um lugar no mundo? Alguém devia informar as bocas, ou o pintor, que os órgãos pertencem ao organismo e que as bocas só num rosto têm lugar. Lembre-se a trágica história do pobre Schlemihl que vendeu a sombra e nunca mais teve lugar entre os vivos. O outro lado desta história é pensar-se no que é um rosto sem boca, um corpo sem fala: arrepiante.

A vantagem da pintura, bem como de outras artes, é não conhecer as mesmas leis a que têm de se submeter todas as outras coisas do mundo dos homens. As figuras e corpos da ficção, neste contexto, figuras e formas pictóricas, resultam de um processo de abstracção, não têm obrigações de verosimilhança, de causalidade, somente conhecem as regras do rigor estético, do ajustamento artístico: o seu mundo ajusta-se a este mundo e é tudo. As pinturas são um mundo porque são simultaneamente legislador e objecto da legislação.

No caso destas pinturas, elas deslocam os seus referentes — as bocas reais que falam, beijam, comem, dizem poemas, segregam saliva — para um contexto novo, autonomizam o fragmento e, assim, criam um plano novo de vida — aqui o fundo mágico e absorvente da pintura. Estas “bocas” são uma fatia de um corpo, fragmentos retirados à unidade. O corpo é uma totalidade organizada, sistema de finalidades sem fim, como diz Kant, e a ambição destes novos seres é conquistarem essa mesma autonomia orgânica e formal. Não se sabe se o conseguem do ponto de vista orgânico, mas enquanto formas elas conquistam um lugar e são celebradas enquanto instância visível de um certo tipo de sensibilidade. E é esta autonomia da figura que a boa pintura consegue sempre.

O ser-boca é nestas pinturas de Loureiro levado ao seu limite expressivo: são esticadas, deformadas, geometrizadas. O resultado manifesta-se enquanto resistência ao gesto destruidor: porque se o pintor é criador, também é demolidor. Neste levar ao limite da figura surge a capacidade da forma, agora autonomizada, conseguir criar um mundo só seu a que correspondem os diferentes planos e cortes efectuados pela pintura. Não se trata unicamente de pôr a figura a viver, mas da certeza que os ingredientes da pintura possuem uma inteligibilidade própria. A forma é deles dependente, o seu limite é o deles.

O lugar no espaço da figura pintada é um lugar que é conquistado no momento do nascimento da forma, da mancha. Os seus limites são os limites do traço, do papel. Não existe espaço antes da pintura: ele é formado com o gesto que pinta e reconhecido através da utilização que as figuras dele fazem. Por isso a estranheza inicial que se sente ao ver estas “bocas” irónicas transforma-se em reconhecimento de lugares, espessuras, possibilidades.

*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD

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