Composições cuidadas que se revelam como lugares de espanto. A sua genialidade está no modo como consegue a cada pintura construir um mundo novo, um universo consequente e autónomo. A estratégia criativa é a de uma luta permanente contra o anonimato do habitual-habitável, uma espécie de gesto de salvação do esquecimento para que continuamente se atira o quotidiano. Os motivos na obra de Ruy Leitão são imensos, tantos quanto o olhar consegue abranger. Herdeiro da cidade frenética, fábrica de imagens rápidas sem tempo para contemplações, os seus trabalhos são uma cuidadosa elaboração de tudo quanto a vida de todos os homens e de todos os dias dispõe ante o seu olhar.
Ainda que viva da e na abundância de cores e formas, o seu gesto é preciso e exacto no modo como apresenta os seus objectos, que se transformam em ponto de desenvolvimento de mais cores, mais formas, mais composição. A acumulação de elementos obedece à necessidade interna de cada coisa: as coisas saem de dentro umas das outras, multiplicam-se infinitamente e há sempre mais vida. As relações entre as coisas não se podem antecipar, mas nascem de uma consequente ocupação do espaço da folha ou tela e da atenção aos pequenos pormenores.
No seu conjunto, a obra de Ruy Leitão é uma meditação sobre a pintura. Tudo lhe serve como ponto de partida: alfinetes, peças de vestuário, corpos, animais. O seu esquema integrador de ideias é um poderoso artifício de condensação e síntese que tem como resultado mais imediato um enorme estímulo das faculdades da visão. A integração que faz das diferentes famílias de objectos forma uma espécie de quadro de parentesco onde as parecenças são conseguidas à custa de relações de adequação formal e cromática. O movimento que se experimenta em cada trabalho é fruto desse ocultar/desocultar que é a sua linguagem primeira.
Mas não só de preocupações estéticas vivem estes trabalhos, que são simultaneamente campos de afecto e sensibilização. São pequenos pontos concentrados de energia que se prolongam entre o corpo do desenho e o corpo do espectador, locais de co-pertença: o espectador pertence ao desenho e o desenho ao espectador. Trata-se de uma relação de conveniência que não conhece desconforto nem afastamento. A visão transforma-se no lugar onde acontece a intuição e todos os mensageiros do sentir se reúnem no lugar da sensação visual. O animal da vista conhece um seu igual e com ele estabelece uma afinidade.
Podem-se retirar muitas consequências dos trabalhos de Ruy Leitão, aprendizagens perceptivas, gramaticais, pictóricas, composicionais. São, sobretudo, portas para regiões da vida humana impregnadas pela intensidade do estímulo visual, rápido, inclemente, irreparável. Que o desenho era a sua forma de vida fica atestado nos blocos A4 e A5 que deixou e, enquanto tal, não conhece a imobilidade das fórmulas abstractas, mas está possuído pelo poder ver tudo, querer ter tudo ali, à mão. Baudelaire baptizou a imaginação de rainha das faculdades por poder ser análise e síntese; no caso de Ruy Leitão, ela é o mundo inteiro: local onde acontece o próprio acontecer.
*texto publicado no catálogo da exposição "Corpo Intermitente", comissariada por João Silvério, no Museu de Angra do Heroísmo, Açores e produzida pela FLAD
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