Tuesday, February 26, 2008

A sensualidade do pensamento - José Gil




José Gil (Moçambique, 1939) formou-se em filosofia na Universidade de Sorbonne, mas antes de partir para Paris iniciou em Lisboa uma licenciatura em Matemática da qual guarda o rigor e a beleza. É professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa e tem um vasto conjunto de livros editados em Portugal, Itália, França e Brasil. È conhecida a sua relação com o filósofo francês Gilles Deleuze, de quem foi amigo e aluno, e sobre o qual está a preparar um livro. Escreveu sobre Fernando Pessoa, a retórica de Salazar, monstros medievais, dança e pintura, recentemente publicou na Relógio D’Água o volume intitulado “A profundidade e a superfície – ensaio sobre o principezinho de Saint-Exupéry”. O MIL FOLHAS foi conversar com José Gil sobre o seu mais recente livro. A relação da filosofia com a arte, com a realidade e com a dança, Deleuze, o panorama filosófico português e a natureza singular do esforço filosófico são algumas das linhas que conduziram esta entrevista.

Mil Folhas – Como é que surgiu este livro?
José Gil – Há muito tempo eu quis fazer um ensaio sobre o “Principezinho” por causa de uma reacção da minha filha a um disco do Gérard Philipe que conta a história de Saint-Exupéry, ela ouviu o disco e ficou com uma angústia imparável a qual eu não era capaz de colmatar e quis perceber o que se passava. O ensaio esteve para ser publicado em França com um prefácio do François Chatelêt. Estávamos em meados dos anos 70 e neste ensaio eu estava numa passagem entre uma terminologia ainda lacaniana, muito tirada da psicanálise, do estruturalismo de Lévy-Strauss e já no campo de Foucault e Deleuze. Publiquei o ensaio agora porque o meu editor me perguntou se eu tinha qualquer coisa sobre o “Principezinho” ou se queria fazer um prefácio porque eles iam editar uma tradução portuguesa dessa obra, eu tinha este ensaio e pensei porque não? Passados todos estes anos reli o texto e verifiquei que cortando uma série de coisas, apesar de a terminologia e os conceitos que eu hoje uso serem diferentes, há uma ideia que me parece sustentável.
MF - A única ocorrência do nome de Deleuze é uma, na altura qual era a sua relação com Deleuze?
JG –Aconteceu-me uma coisa, que também aconteceu a muita gente, houve uma crise filosófica em França durante a qual muita gente emigrou da filosofia para outras áreas devido a uma espécie de desencanto e fastio com a filosofia que era ensinada - eu também abandonei a filosofia -, apareceu então um homem que era Deleuze e permitiu-nos pensar de outra maneira. Nessa altura eu estava na grande descoberta de Deleuze, ia aos seus cursos nos quais ele estava a experimentar o seu “Anti-Édipo”. Também me apercebi do perigo que é pensar demasiado perto: temos de entrar completamente num autor para depois poder sair dele. Não é que eu tenha saído de Deleuze, mas parece-me que nunca verdadeiramente entrei nele. A relação que tenho com esse pensador separa-se na ideia de corpo sem órgãos, sinto falta aí de qualquer coisa, quando penso Deleuze não coincido totalmente com ele. Por exemplo, a minha leitura da psicanálise não é semelhante à dele. Existe, de facto, uma relação forte, porque além de ter sido seu aluno conhecia-o pessoalmente e ele dá-me a possibilidade de pensar, ou tentar pensar, por mim próprio, compreende que o outro pode pensar. Neste meu ensaio crítico sobre o conto de Saint-Exupéry a ideia geral não é deleuziana, estruturalista, mas qualquer coisa que é uma passagem através de muitas disciplinas, daí possuir uma informalidade e uma descodificação actual.
MF - Acha que o conceito de mediação serve para falar do conto de Saint-Exupéry?
JG – Exactamente. Pelo menos assim o entendi. O conto segue a lógica das narrativas de salvação, há uma lógica de pesquisa, de um percurso que tem vários níveis - o nível do corpo, do tempo, do espaço, do sentido e que se encontra sempre, com variações, nas narrativas de salvação. Aparentemente o que faço reduz-se ao “Principezinho” mas tem uma generalidade que me parece poder aplica-se a muitos tipos de narrativa. A lógica do discurso de salvação é uma lógica que se encontra de maneira exemplar em certos casos de paranóia, não há muita diferença entre a lógica que atravessa um discurso paranóico e a lógica num discurso sobre a transformação do corpo, a transformação do sentido. O discurso de salvação é esférico, escatológico, como a “Crítica da Razão Prática” em Kant, e vê no discurso moderno aquilo que é a fragmentação e não a totalidade.
MF - Os resultados a que chega neste ensaio estão circunscritos ao tipo de narrativa que nos acabou de falar ou podem estender-se a outro tipo de literatura? A dado momento fala na construção de um “diagrama afectivo” do conto, é possível fazer isso com toda a literatura?
JG – Aplica-se, sobretudo, ao “Principezinho”, porque este constituí um dispositivo dentro dessa lógica da formação de afecções e sentimentos extremamente fortes que fazem aquilo a que se chama o encanto do livro.
MF – Que lição podem os leitores tirar do seu ensaio?
JG – O meu texto é crítico, há uma maneira de descrever a produção de sentido que é uma construção que tendo uma grande generalidade, quase universalidade, aparece nos contos de fadas, etc., portanto a aplicação a outros domínios é pertinente.
MF – No seu texto percebe-se que o conto de Saint-Exupéry é o motivo, mas também existe qualquer coisa que se desprende do seu texto crítico sobre o próprio acto de ler, quando propõe, por exemplo, critérios para distinguir entre a ilusão e a verdade.
JG – A obra de teoria de literatura é a que eu não escrevi, mas que estava no meu primeiro projecto de tese e que reunia teoria da literatura e lógica do discurso metafísico. A ambição era descrever uma lógica que, com imensas variantes, pudesse ser utilizada como método de análise de uma série de domínios e narrativas. O sentido sai dessa lógica da salvação? Não. Acho que há uma outra maneira, o sentido é produzido com a ilusão da esfericidade desse conto metafísico. A ideia é sobre as possibilidades de construção do sentido e, ao mesmo tempo, mostro o modo como essa construção é artificial. Um dos nós deste pequeno ensaio é aquilo a que chamo a produção da falta, ora esta não é visível. Nós encantamo-nos com o “Principezinho”, mas se olharmos bem qualquer coisa de extremamente mórbido atravessa o texto. Há uma espécie de ternura mórbida que vem da morte e de tudo o que é valorizado: a maneira como se cativa, a maneira como a raposa ensina um certo saber, tudo isso resulta da produção da falta. Enquanto homens enternecemo-nos, o homem vale e adquire valor para um outro quando o outro dá tempo da sua vida.
MF – De que falta está a falar?
JG – Trata-se da falta ontológica que define a finitude humana. O que está em causa no “Principezinho” é o homem no seu desejo, nas suas relações humanas, na sua comunicação, no amor, na amizade, aparecendo como impotente, finito, mortal. Sendo definido como tendo a falta no interior do próprio desejo, do amor.
MF – Estratégias essas que culminam com a descoberta da sua própria morte e que é também o momento da redenção.
JG – É por isso que é uma lógica da salvação e não é completamente circular porque a morte do “Principezinho” deixa uma espécie de vazio.
MF – Também se percebe que no decorrer do texto há uma ideia de integração do mais negativo da vida humana, que é a morte, e como esse elemento se pode transformar em fonte de prazer A objectivação de todas as energias negativas numa forma positiva e objectiva a qual tem o aspecto da sabedoria a respeito da morte.
JG – Paga-se um preço por essa integração a que no conto se chama domesticação.
MF – Mas essa domesticação surge como necessidade da consciência da mortalidade, por isso tem de se encontrar uma forma de sair do isolamento desta ilha sem ligações que constituí cada ser humano e chegar ao outro. É nessa lógica que surge a relação do pequeno príncipe com a raposa e esse saber que se transforma numa técnica de domesticação que se parece com uma técnica ética ou mesmo relacional.
JG – Absolutamente. Podemos supor que essa técnica supõe uma positividade que integra o negativo, mas não o transforma completamente daí o que eu chamo a ternura mórbida que não desaparece da narrativa. Aqui há uma série de escórias que restam e permanecem como uma espécie de recalcado. Esta é uma obra cujo afecto primeiro é o de um homem finito, magoado e não a plena expansividade de um desejo ou a alegria sem ferida.
MF – Pode ficar-se com uma imagem da natureza humana deste seu ensaio?
JG – O que está em causa, mais do que visões do homem, é uma certa ideia de homem, uma ideia de humanismo e da posição do homem no mundo, na natureza, no cosmos. Mas não está em causa uma compreensão do homem moderno, este pensa-se através de processos: os homens são pontos de subjectivação desses processos, os quais tendem a produzir qualquer coisa. As figuras criticadas no conto são emblemáticas, mas não são críticas.
MF – Qual a pertinência deste texto para os tempos contemporâneos?
JG – Soube que o “Principezinho” era o livro mais vendido do mundo. Porquê? O livro é de uma complexidade extraordinária sob uma aparência de uma grande simplicidade, de uma narrativa solta, etc. De certa maneira, este conto construindo um imaginário, conceito que eu não gosto, englobante (relações de comunicação genéricas entre adultos e crianças, adultos e adultos, que abrangem o mundo inteiro, descrevendo, de uma maneira geral essa lógica da narrativa que está em tantos domínios e que é identificada como aquilo que produz sentido) não me admira que seja um dos livros mais lidos do mundo. Condensa qualquer homem: qualquer homem se reconhece ou se julga reconhecer naquela lógica – é uma espécie de mito dessa lógica. È um dispositivo de produção de afectos e afecções, sentimentos, não emoções ou acontecimentos emotivos, aparecem grandes planícies sentimentais envolventes e a captura é feita pelo contágio feito pelo autor ao leitor. Estes aparelhos de captura têm ainda uma grande actualidade. Falar da pertinência do conto é constatar é que ele é, quase universalmente, pertinente. O homem está na “doxa” (senso comum ou opinião) e, como dizia Heidegger, nós não começámos ainda a pensar.
MF – É só uma estratégia da narrativa?
JG – Da narrativa sim, mas também uma estratégia que se encontra nos processos humanos. Por exemplo, a imagem da mulher, a rosa caprichosa e coquete, etc, é uma imagem estereotipada e lamentável, no entanto é uma imagem standard que continua a ter a sua função. A tão importante técnica da raposa, vemo-la na produção da falta e no sacrifício em relações conjugais e amorosas, é ainda das mais universais. O amor é visto como aquilo que produz e atribui valor numa relação de uma pessoa para outra se qualquer coisa como o valor da vida de uma pessoa é gasto e investido na outra - isto é uma concepção da relação amorosa, afectiva, da mais egoísta que se pode imaginar, para além de extremamente banal. O amor é qualquer coisa que, como diria Espinoza, resulta do encontro com outra potência e desse encontro há um acréscimo de potência que produz alegria – isto é o contrário de Saint-Exupéry. Aqui existe a presença de uma morte mortífera e temos de falar de vários níveis, ideias e sentidos da morte: há várias mortes e uma delas é a morte mortífera que é a pulsão de morte, não é um querer a morte, é a paralisação daquilo que é vida. Há essa paralisação neste conto que é dada pela domesticação.
MF – O conceito de morte joga um papel fundamental neste seu ensaio. Na nossa vida a descoberta da morte tem um papel fundamental?
JG – Recorro às duas mortes de que fala Blanchot. Uma morte que é anónima, que acontece, e numa morte que me vai atingir e que eu vou possuir e que me vai paralisar, deteriorar, na medida em que eu sou detentor e sou definido por uma individuação, por um eu. Há realmente a morte de um eu e depois há uma outra morte que me acontece e esta eu posso vê-la de uma maneira completamente diferente. É uma morte mortífera, mas, de certa maneira, o que morre não morre. Ao passo que o desmoronamento do mundo inteiro pela minha morte supõe a construção de um eu e é a partir da transformação desse eu que há a redenção – o que faz parte da tal lógica da salvação. A descoberta da morte não é única, estamos longe ainda de saber ainda o que é isso. A psicanálise, através da castração, faz do momento da morte um momento crucial na formação do “self”, do si próprio. Verifico que, fora do campo psicanalítico e do psiquiátrico, a morte está do lado da obsessão e de uma sintomatologia clínica, enquanto que há uma morte nata que não é recuperada pela vida, mas que é uma morte que é um acontecimento que subsiste como acontecimento da própria vida e não como o que transforma ou acaba com a vida.
MF – Um dos nós importantes neste texto é o da linguagem.
JG – O que se conhece e o que realmente tem valor é conhecido pelo coração, é por uma relação afectiva infralinguística e não pelas palavras. Como se vê, estamos na “doxa” habitual. A palavra contém no seu seio todo um plano do ilocutório que é um plano das forças e dos contágios imediatos. Este tipo de ideia da linguagem é um velho clássico cliché.
MF – Existe uma boa imagem daquilo que seja a linguagem?
JG – O que me interessa na linguagem é a maneira como nós usamos a linguagem. A função da linguagem pode ser a de transmitir forças, signos que transmitem forças, por exemplo, um poema, um texto forte de propaganda, etc. No meu entender, a linguagem é um dispositivo próprio e extraordinariamente potente, porque é a única que pode falar de tudo e a mim interessa-me a sua relação com o extraproposicional, ou seja, a possibilidade de fazer entrar cada um de nós naquilo a que eu chamaria, depois de Deleuze e de Espinoza, a imanência. Longe de ser um meio de nos aproximarmos de uma transcendência, é um meio de poder indiferenciar-se com essas forças que ela arrasta consigo. Interessa-me a força da linguagem e não o sentido da linguagem ou da mensagem.
MF – Há pouco dizia que não começámos ainda a pensar. Então o que é a história da filosofia e a que é corresponde o esforço filosófico?
JG – Evidentemente que nós pensamos, que Platão é um génio, que a ciência é uma construção extraordinária do pensamento. Mas não é isso que está em causa. Quando Heidegger afirma “nós não começámos ainda a pensar” é porque constantemente pensamos segundo esquemas, situações, clichés, preconceitos, pressupostos e isso significa que ainda não pensamos por nós próprios, que o pensamento é produzido por qualquer coisa que lhe é extrínseco.
MF – Mas a descoberta kantiana não é a prova de que só podemos pensar assim? Que essa é a condição do pensar?
JG – Sim, mas isto significa que nós não pensamos o que devemos pensar para além do empírico. De um modo sumário, se nós pensássemos e começássemos a pensar possivelmente aquilo a que, classicamente, se chamou o mal desapareceria do cimo da terra.
MF – Para voltar a Saint-Exupéry, como é que surge a questão do mal?
JG – O mal surge porque há um equívoco entre os adultos e as crianças e entre os homens em geral. O equívoco principal é entre as palavras e o que se comunica infralinguisticamente numa comunicação de coração a coração. O equívoco das palavras é o que no “Principezinho” produz o mal: conduz aos conflitos com a flor, entre o narrador e o leitor, os tais conflitos que depois são resolvidos pela introdução do outro tipo de comunicação. O que me parece, é que isso é uma construção realmente banal, simplista, porque na produção desse equívoco há um mecanismo que é a produção da falta. Eu digo que o mal, tal como ele é pensado pelas narrativas de salvação ou na Crítica da Razão Prática de Kant, resulta da produção da falta. A origem do mal é uma pergunta impossível de responder, a haver resposta haveria a solução. Talvez o que chamamos o Mal, como conceito, deva ser problematizado de uma outra maneira, possivelmente não há o Mal como essência ou conceito, há um outro valor, outra maneira de olhar para os valores. Existe uma “Genealogia da Moral”, escrita por Nietzsche, em que ele mostra que os enunciados ‘tu és bom’ ou ‘tu és mais’ engendram-se de maneira artificial, são construções. Com isso aquilo a que chamamos mal é, por e simplesmente, uma manifestação da pulsão de vida que nela própria é boa. A força de vida que se manifesta numa agressividade não é ela própria boa ou má.
MF – Falava da realidade que é urgente e que exige ser pensada. Como é que a filosofia se pode posicionar face a essa realidade urgente?
JG – A filosofia não pode, absolutamente, ser arrastada por essa realidade. Uma das exigências do pensar é que ele não seja arrastado pela urgência empírica, se damos valor ao transcendental, mesmo que modificado, então tentemos não ser arrastados por isso.
MF - Aos olhos dos não filósofos a grande falha da filosofia é a sua incapacidade em dar resposta aos problemas actuais, à vida tal como ela é vivida nos nossos dias.
JG – Cada sector da vida quotidiana precisa de soluções imediatas ou, pelo menos, criou-se essa ideia. A filosofia não existe para dar soluções, ela dá maneiras de pensar as quais, através de mediações, vão resultar em impactos extremamente fortes na realidade. Felizmente que a filosofia é inútil e que se pode pensar gratuitamente porque então pode pensar-se, essa gratuitidade ou inutilidade tem sempre os maiores impactos na realidade. Matem-se os filósofos, acabe-se com a filosofia e o mundo irá muito pior.
MF - O que trouxe da matemática para o pensamento filosófico?
JG – O rigor. A formação de matemática ensina-nos o rigor e a estética. Há uma estética das matemáticas que é extraordinária.
MF – Uma das suas preocupações é pensar a arte. Como é que surgiu essa necessidade?
JG – Pela atracção e pela atenção que eu tinha ao que chamo forças. As grandes formas são emissoras de forças e, simultaneamente, dispositivos de forças. A aproximação com a estética e com as formas foi através do problema do modo como é que as grandes formas produzem e captam forças. Uma grande obra, por exemplo, da antiguidade grega, um Rembrandt, etc., emite forças e que ainda hoje nos atingem. Como é que isto é possível? O campo estético é um campo de pensamento intrinsecamente especulativo. Por exemplo, nas escolas de dança, onde regularmente vou, encontro bailarinos sem nenhuma formação filosófica, mas possuindo uma capacidade especulativa que me deixa siderado. Porquê? Tem que ver com o corpo, com a maneira como eles constróem e desconstroem o corpo. A arte da dança é também uma arte de produção de pensamento, não é um pensamento por conceitos, mas é pensamento. Um filósofo pode ir lá e extrair conceitos e fazer dele um pensamento de conceitos, por conceitos. Eu encontro e formulo conceitos filosóficos a partir da dança porque o pensamento já lá está. Os bailarinos têm uma terminologia muito esotérica, muito estranha, que é preciso ouvir, falam de energia, de imagens interiores, coisas que para eles são evidentes e nós temos que dar rigor a isso. Verifico que há pensamento na dança através da passagem dos movimentos corporais para os movimentos de pensamento. Não é uma analogia, é antes a criação de um plano de imanência. Tal como já não há um ponto de fusão entre o corpo e o espírito no bailarino, também não existe diferença entre um movimento de pensamento e um movimento corporal, como mostrou Merce Cunningham. É uma imanência produtora de conceitos.
MF – O esforço conceptual fica sempre aquém desse movimento corporal?
JG – Ficamos sempre a perder, mas também ficamos a ganhar. O conceito não é uma representação e existem conceitos que absorvem o movimento da vida e há conceitos que é preciso abrir, são empurrados ou construídos pelo próprio pensamento e é isso que é preciso fazer. Deve-se não construir uma doutrina, mas ouvir os bailarinos. Felizmente, como dizia Platão, os artistas não sabem o que dizem e assim dizem mais. Ora, a conceptualização desses movimentos pode ser feita de duas maneiras: uma por absorção com o conceito reflexivo, que é conceito de representação, que é extremamente seco e depois há um outro tipo de conceitos que são aqueles que se deixam abrir ao próprio movimento que os leva. O conceito não é fixo, ele participa sempre do movimento do próprio pensamento para o qual ele contribui ou entrava, são esses movimentos do próprio conceito que temos de ter em conta.
MF – O que o cativa é pensar o concreto?
JG – Sim, mas não o empírico. O concreto está cheio de magia. A criança está no concreto e não no imaginário, ela está num plano em que o imaginário é o real, quando uma criança brinca está a devir e este devir são forças de transformação. O mais concreto é o mais ideal e o que chamamos empírico tem de ser pensado de uma outra maneira porque ele já é uma construção. O pensamento é sempre difícil, mas possui uma voluptuosidade própria, pensar não só dá esse fluir sensual, que não é um prazer masturbatório, mas também um poder que surge do descobrir qualquer coisa - o que é extraordinário. Mas um artista ganha muito mais, é mais transformador, mais rápido. O que me faz pensar são duas coisas: uma, que é geral a todos, é uma epistemofilia, esse querer compreender de uma certa maneira, que existe nos cientistas, nos filósofos, num artesão e, depois, por razões que têm que ver com a minha própria vida, numa certa época o pensar foi quase uma questão de vida ou de morte.
MF – O que é que resulta do encontro entre um filósofo e um artista ou da filosofia com a arte?
JG – Não sei, depende de cada caso e da singularidade do filósofo e do artista. O encontro faz-se no cruzamento dos estilos, quando o estilo filosófico atinge um ponto de potência formal, afirmação esta que pode parecer e é paradoxal, então estamos próximos de um estilo literário.
MF – A determinado momento no seu ensaio pergunta “como estar seguro da leitura correcta, como sossegar-se quanto à exacta apreensão do sentido da narração?”, como é que relativamente a todos os outros textos, literários ou filosóficos, podemos atingir esta segurança de correcteza de uma leitura ou de uma compreensão e quais são os limites dessa confiança no texto?
JG – A pergunta é de uma dificuldade enorme. Torna-se mais fácil no caso presente de Saint-Exupéry. A ideia de uma leitura correcta é de Saint-Exupéry e não minha. Há muitas leituras e não considero que exista uma única. A ideia de uma leitura correcta é académica, mas se pensarmos que uma leitura vai produzir num sujeito sentido e se vai desenvolver na sua própria maneira de pensar e produzir sentido, que já não está num determinado texto, pode dizer-se que esse pensamento está no autor que se está a ler.
MF – Escreve a maior parte das vezes em francês, isso é devido a uma má relação com a língua portuguesa?
JG – A minha relação com o português é impossível de explicar. Aos dezanove anos escrevia em português e tinha uma grande plasticidade na manipulação da língua. Aos vinte e quatro anos, em Paris, senti que um edifício inteiro se desmoronava e esse edifício era a língua portuguesa. A partir daí comecei a escrever em francês, mas nunca tão bem quanto escrevia português, havia limitações localizadas na invenção lexical, gramatical, etc. Mas agora estou a escrever novamente em português.
MF – E como está o panorama filosófico português?
JG – Nós estamos a sair de uma longa noite. O nosso passado e tradição filosófica é muito pequena, nem sequer é tradição. Agora estamos a ter muito bons académicos e bons pensadores da filosofia. Infelizmente não se dão condições aos aprendizes da filosofia para que eles possam investigar e pensar. Não há ainda, mas vai concerteza haver, “grandes” pensadores que nos indiquem vias de pensamento. A comunidade filosófica portuguesa é, infelizmente, inexistente o que tem que ver com a ausência de um espaço público que pense por ele próprio. O pior, o que entrava o pensamento, é que esta sociedade tem um poder entrópico, suga a produção de sentido. Estou a falar de Portugal, porque existem cidades inteligentes. Não é que Lisboa seja uma cidade estúpida, mas não existe aqui a tal placa pública que ressoe em toda a sua superfície e que metabolize, pela sua própria linguagem, o pensamento individual de cada um. Está-se muito isolado.

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